sábado, 27 de setembro de 2008

Stephen Toulmin: Lógica e Jurisprudência

«Para quebrar o poder dos antigos modelos e analogias (da lógica), vamos tratar de nos munir com um novo modelo. A lógica ocupa-se da solidez das alegações que fazemos, da solidez dos fundamentos que produzimos para apoiar as nossas alegações, da firmeza do suporte que lhes damos, ou, para trocar de metáfora, com o tipo de precedente (no sentido em que os advogados usam este termo) que apresentamos em defesa das nossas alegações. A analogia com o Direito, implícita neste modo de expor o problema, pode, desta vez, ser muito útil. Assim, deixemos de lado a Psicologia, a Sociologia, a tecnologia e a Matemática, ignoremos os ecos da engenharia estrutural e da collage nas palavras "fundamentos" e "suporte", e tomemos a jurisprudência como o nosso modelo. A lógica (pode-se dizer) é jurisprudência generalizada. Os argumentos podem ser comparados a processos judiciais; e as alegações que fazemos e os argumentos que usamos para "defendê-las", em contextos extra-legais, são como as alegações que as partes apresentam nos tribunais; e os casos que oferecemos para provar cada uma das alegações são jurisprudência consagrada, para a lógica, num caso, e para o Direito, no outro». (Stephen Toulmin)
Em 1800, nas suas famosas lições sobre lógica (semestre de Inverno de 1765-1766), Immanuel Kant definiu a lógica nestes termos: "A lógica é uma ciência, não segundo a matéria, mas segundo a mera forma; uma ciência a priori das leis necessárias do pensamento, não relativamente a objectos particulares, mas (relativamente) a todos os objectos em geral; portanto, uma ciência do uso correcto do entendimento e da razão em geral, não subjectivamente, quer dizer, não segundo princípios empíricos (psicológicos), sobre a maneira como pensa o entendimento, mas sim objectivamente, isto é, segundo princípios a priori de como ele deve pensar". Definida como ciência das leis gerais necessárias do entendimento e da razão em geral, a lógica é considerada como um fundamento para todas as outras ciências e como a propedêutica de todo o uso do entendimento, que não pode ser vista como um organon das ciências, porque se abstrai inteiramente de todos os objectos, e que constitui um cânon, porque trata das leis necessárias do pensamento, sem as quais não seria possível fazer um uso correcto do entendimento e da razão. Kant não aceita reduzir a lógica à mera crítica, a arte de disputar, "utilizada por certos espíritos tagarelas, com o fim de produzir artificiosamente toda a espécie de aparência", de resto um uso da lógica "indigno de um filósofo", porque, antes de poder ser crítica, a lógica é um cânon que poderá ser usado posteriormente como "princípio da avaliação de todo o uso do entendimento em geral", mas apenas no que se refere à "sua correcção" meramente formal. Ora, dado pensar que a lógica incorpora as formas de pensamento, sem as quais não podemos pensar correctamente, Kant foi levado a depositar uma grande confiança na lógica aristotélica: "A Lógica actual deriva da Analítica de Aristóteles", "o pai da Lógica", que, desde então, não sofreu "mais alterações", e, "nos nossos dias", continua Kant, "nenhum lógico grangeou fama, mas também não precisamos de invenções novas para a Lógica, porque esta contém tão somente a forma do pensamento". Os lógicos nunca perdoaram Kant por ter negado "uma história" da lógica (Robert Blanché), embora I.M. Bochenski que dedicou toda a sua vida de trabalho a escrever uma história da lógica formal tenha dado razão a Kant: o cálculo não permitiu à lógica matemática "superar todas as formas mais antigas da Lógica" e, mais adiante, Bochenski afirma mesmo que o cálculo dispensa os lógicos matemáticos de "um trabalho mental que lhes seria fundamental". Isto significa que a história da lógica não é a exposição progressiva de lógicas distintas, mas a exposição de "formas distintas de uma Lógica".
A obra de Stephen Toulmin (1958), The Uses of Argument, é a tentativa de impugnar o programa lógico, assente na ideia aristotélica de que a lógica deve ser uma ciência formal (episteme), do qual decorrem dois efeitos "nefastos" para a própria lógica e para a Filosofia: 1) o desvio da atenção do problema da aplicação da lógica e 2) a substituição das questões relativas à aplicação da lógica por questões provavelmente insolúveis e comprovadamente inconclusivas. Esta impugnação do programa lógico decorre, conforme relata Toulmin, da evolução das posições de Wittgenstein. O seu problema principal era a explicação das relações entre a Proposição (Satz) e o Estado de Coisas (Tatsatche), entre a Linguagem e a Realidade, embora Wittgenstein tenha focado fundamentalmente questões sobre sentido e linguagem. Numa primeira fase, a função primordial da linguagem era, para Wittgenstein, "representar" (darstellen) a realidade, isto é, fornecer imagens (Bilder) de factos. Porém, sem mudar a questão central das suas pesquisas filosóficas, "Como é antes de mais possível uma linguagem com sentido?", Wittgenstein abandona mais tarde a primazia das proposições em favor dos jogos de linguagem, que, caracterizados em termos comportamentalistas, adquirem contextualmente sentido, em virtude da sua inserção em formas de vida. Quando recusou a existência de uma linguagem privada, Wittgenstein mais não fez do que rejeitar a ideia de que a produção de sentido ocorre no mundo privado da experiência individual. Em vez disso, Wittgenstein defende a ideia de que a produção de sentido ocorre no mundo comunitário e interpessoal das interacções públicas, "sendo este evidentemente o mundo em que já John Dewey, George Herbert Mead, Miguel de Unamuno e Mikhail Bakthin" situavam o sentido. A consequência mais profunda desta concepção foi precisamente a desvalorização do papel da validade formal no conhecimento humano e a restauração da retórica por Perelman e por Toulmin: as "questões sobre as circunstâncias em que os argumentos são apresentados, ou sobre a audiência a que se dirigem, numa palavra, (as) questões «retóricas», desalojaram (as) questões de validade formal enquanto preocupação primária da filosofia, mesmo da filosofia da ciência". Segundo Toulmin, a substituição das proposições por elocuções, bem patente na filosofia da linguagem de Bakthin, além de aplanar "o caminho para uma reconciliação da Lógica com a Retórica", implica duas outras transições: da teoria para a prática e da episteme para a phronesis. Qualquer uma destas transições, aliás aspectos de uma mesma deslocação cultural, "significa ir além das estritas pretensões da racionalidade formal (episteme) para chegar às mais amplas pretensões da razoabilidade humana (phronesis)", segundo a qual "as análises da estrutura das teorias científicas já não são suficientes: agora precisamos de dar atenção à história, e mesmo à etnografia da actividade científica. A própria actividade de «ser um cientista» constitui uma Lebensform (ou forma de vida); e, uma vez que as formas de vida têm as suas próprias histórias e afiliações, isto significa que a análise filosófica da argumentação em ciências naturais deve ser recontextualizada".
O desenvolvimento da lógica moderna como ciência formal (Kalinowski), na direcção de uma completa autonomia, conduziu-a para longe das questões práticas, situando-a numa tradição cientificista, primeiro cartesiana que conferiu uma importância essencial às intuições evidentes, depois leibniziana que a vincula ao estudo dos cálculos formalizados e axiomatizados: a lógica como estudo teórico "livre de preocupações práticas" e do contexto. Para alcançar este nível de formalização e garantir a sua cientificidade, os lógicos recorreram a diversos modelos ou analogias: a Psicologia foi sempre um modelo implícito para muitos lógicos, a partir do qual a tarefa da lógica é entendida como o estudo das "leis do pensamento", isto é, o estudo dos processos do pensar normal, racional e adequado, com exclusão de todos os argumentos anómalos. Outros lógicos preferiram ver a lógica como um desenvolvimento da Sociologia, definido-a como o estudo não do fenómeno da mente individual, mas dos hábitos e práticas desenvolvidas no decurso da evolução social e transmitidos de geração em geração através dos pais e dos professores (Dewey). Outra via é a que compara a lógica com a Medicina: ambas são simultaneamente ciências e artes. A lógica deixa de ser vista como a science de la pensée ou a science conjectionis e passa a ser encarada como art de penser ou ars conjectandi: o seu objectivo não é descobrir leis do pensamento, mas leis ou regras de argumento, capazes de orientar e fornecer sugestões para quem deseje argumentar sólida e correctamente. Neste caso, o modelo implícito não é o da lógica como ciência explanatória, mas o da lógica como uma Tecnologia. Finalmente, a lógica foi definida como uma ciência objectiva, cujo modelo implícito é a Matemática Pura (Carnap): a lógica estuda as provas analíticas, omitindo as provas dialécticas que apoiam ou se opõem a uma opinião. Com o trabalho teórico levado a cabo por Boole, Morgan, Jevons, Peirce, Schröder, Frege, Peano, Russell e Whitehead, a lógica identifica-se com uma álgebra generalizada, que lhe valeu a designação de lógica matemática. Apesar das vantagens e dos defeitos exibidos por cada uma destas teorias, a questão que lhes é subjacente, a de saber que tipo de ciência é a lógica, leva, segundo Toulmin, a um "impasse", porque é uma questão de teoria lógica, tal como exposta por P.F. Strawson, e não de prática lógica.
Toulmin foca a sua atenção fundamentalmente na avaliação prática dos argumentos e, com o objectivo de apreender se a análise formal lógica teórica tem alguma ligação com aquilo que a crítica racional visa obter, muda de modelo, adoptando o da jurisprudência: a lógica estuda a solidez dos fundamentos que produzimos para apoiar e suportar as nossas alegações. Este paralelo entre a lógica e as práticas do Direito tem duas importantes vantagens: "Uma das principais funções da jurisprudência é garantir que se conserve o que é essencial no processo legal: os procedimentos pelos quais as alegações devem ser apresentadas em juízo, discutidas e estabelecidas, e as categorias segundo as quais se devem apresentar, discutir e estabelecer as alegações". De modo análogo, a investigação de Toulmin visa caracterizar o processo racional: os procedimentos e as categorias mediante os quais podemos discutir e decidir todas as "causas". Aliás, este paralelo não é uma mera analogia, porque "os processos judiciais são apenas um tipo especial de disputa racional, no qual os procedimentos e as regras da argumentação se consolidaram em instituições". Em segundo lugar, este paralelo ajuda a manter no centro do quadro a função crítica da razão. Embora possam não ser sugestões ou generalizações, as regras da lógica "aplicam-se aos homens e aos seus argumentos, não do modo como se aplicam as leis da Psicologia ou as máximas do método, mas como padrões de realização que um homem, quando argumenta, pode alcançar mais plenamente ou menos plenamente, e pelos quais os seus argumentos podem ser julgados. Uma «boa causa», solidamente construída, uma alegação bem fundada ou firmemente apoiada, resistirá à crítica, será «causa» que corresponde ao padrão exigido, para a qual se pode esperar veredicto favorável". Isto significa que aquilo que alegamos fora dos tribunais, as nossas alegações extra-judiciais, deve ser justificado, "não perante os juízes de Sua Majestade, mas diante do Tribunal da Razão". Para Toulmin, as "leis" da lógica não são formais, no sentido de que não dependem da matéria do raciocínio, mas são padrões de realização usados para criticar aquilo que é pensado pelos homens em situações e circunstâncias particulares: a lógica é uma ciência crítica, não é uma ciência natural supostamente livre de contexto. Deste modo, quando se encara a lógica como jurisprudência generalizada, a sua "matéria" é "a prudentia, não apenas do jus, mas, em termos mais gerais, da ratio": tratar a lógica como jurisprudência generalizada e testar as nossas ideias mediante a prática real de avaliação de argumentos foi o contributo fundamental de Toulmin para o actual quadro da teoria filosófica da argumentação que, conforme mostrou Chaïm Perelman, além de ser distinta da lógica deôntica elaborada por G.H. Von Wright, retoma a vertente dialéctica da lógica aristotélica.
J Francisco Saraiva de Sousa

9 comentários:

Victor Gonçalves disse...

Muito bem.

Com tudo isto perdemos a possibilidade da verdade e da mentira (epistemológicas) e ganhamos essa boa ambiguidade, que nos fragiliza é verdade (aqui no seu uso retórico), mas também instaura a preciosa liberdade humana.

É claro que reconheço a importância da coerência discursiva, a relevância de uma certa adequação entre as "proposições" e a "realidade", mas também sei que a formalização excessiva da linguagem conduz ou à esterilidade ou a ordenações maníacas perigosas para a democracia e a liberdade humanas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bom Dia Dioniso

Toulmin chama "cálculo congelado" à lógica simbólica e diz que, tal como está, não serve de nada para a avaliação prática dos argumentos que deve ser sempre contextualizada. Não é a coerência discursiva que está em questão, mas a função crítica da razão.

No fundo, há uma ligação com o post anterior: a razão como senso comum (Hannah Arendt), e um retomar por parte da retórica de Aristóteles contra Platão e Descartes: a episteme cede lugar à phronesis.

Fernando Dias disse...

Interessante.
Como podemos fugir à fraude à medida que nos vamos transformando num clube de gente respeitadora ?
Com a era moderna a razoabilidade das narrativas foi perdendo solidez em relação à racionalidade científica e lógica formal. As abstracções lógicas ganharam o estatuto de aplicação universal.
Todavia, com esta abordagem de Francisco vislumbra-se a possibilidade de colocar a argumentação formal no contexto humano situado e vivenciado, relativizando-lhe o seu carácter abstracto. As verdades partindo de bocas diferentes, podem ter significados diferentes.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá Fernando Dias

Vejo que nos aproximamos cada vez mais. Vamos continuar a lutar contra certas fraudes. O meu programa agora é resgate do mundo comum e do senso comum, o que não implica abandono da ciência, apenas a sua relativização, como diz.

Fräulein Else disse...

Sim, quem pensou nisso foi Gadamer.

Bom dia a todos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Boa Tarde Fraulein Else

Sim, Gadamer também tratou desse problema e já postei sobre ele. Hoje não sei se me apetece terminar o post. :)

Denise disse...

Boa noite!
Admiro esta sua confiança no resgate do mundo. Paralelemante ao da Filosofia, o trilho da Poesia parece-me muito, muito viável.

...também tenho saudades, F... :-(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Amigos

Conclui o post, mas numa outra oportunidade vou procurar explicitar a teoria da argumentação de Toulmin e as suas consequências para a epistemologia. Prometo também confrontar a retórica com a perspectiva de Adorno. Penso dedicar alguns pists a Perelman.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, um conselho: o ensino de Lógica Simbólica nos cursos de filosofia e de humanidades deve começar pelos cálculos axiomatizados: a aprendizagem torna-se mais sólida e segura. começar por regras de inferência ou argumentos exemplificados é um erro.