quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Génese da Dialéctica Hegeliana

«Todas as coisas consistem no Sim e no Não". (Jakob Böhme)
A história da filosofia ocidental foi animada por uma pergunta fundamental: O que é o Ser? Hegel retoma esta pergunta, desde os seus escritos teológicos de juventude, e, tal como Parménides e Aristóteles, estabelece uma distinção entre o ser (Sein) e o ente (Seiendes), mais precisamente entre o ser determinado e o ser enquanto tal. Todos os entes que nos cercam são seres determinados e a cada um deles atribuímos o ser, o qual não é uma coisa específica no mundo, mas aquilo que é comum a todos os seres determinados particulares. O ser enquanto tal é diferente de cada um dos seres determinados, mas, como pode ser atribuível a todos os entes, pode ser considerado como o que é real no meio da diversidade dos seres determinados. Dado ser comum a todos os entes, o ser enquanto tal é o seu substrato e, sendo o mais universal, pode ser visto como a essência de todo o ente, a sua substância. Esta tradição que combina a ontologia com a teologia, a que Heidegger chamou onto-teologia, vigora na Lógica de Hegel, mas de um modo que nos reconduz a Aristóteles, ao mesmo tempo que o supera mediante a elaboração de uma ontologia da história, liberta do "dogma metafísico" e comprometida com as exigências do racionalismo moderno.
Aristóteles identificou o ser com o processo: o movimento através do qual cada ente particular se torna por si mesmo o que ele realmente é. A sua "metafísica" estabelece uma distinção entre a essência (ousia) e os seus diversos estados e modificações acidentais (symbebekos): o que é real é a essência mediante a qual compreendemos o ente concreto individual, orgânico ou inorgânico. O ente individual é o sujeito ou a substância que permanece durante todo o movimento pelo qual unifica e conserva reunidos os diversos estados e fases da sua existência. Os seus diferentes modos de ser referem-se a diferentes modos de permanecer através das mudanças. Ou, como escreve Hegel, "os diferentes modos de ser são unificações, umas mais, outras menos completas". Isto significa que ser é unificar relações antagónicas e unificar indica movimento que Aristóteles define em termos de potencialidade (dynamis) e actualidade (energeia). Os diversos tipos de movimento constituem diversos modos de realização de potencialidades inerentes à essência do ente que se move, e, destes movimentos, o mais valorizado é aquele em que todas as potencialidades, e cada uma delas, estão plenamente realizadas. O ente que se mova deste modo é puro acto (energeia) e, como tal, não tem matéria a realizar fora e diferente de si mesmo: ele é completamente ele mesmo em todos os momentos da sua existência. Isto significa que a existência de um tal ente é pensamento, na medida em que um sujeito cuja actividade própria é pensar não tem objecto diferente de si e fora de si. O pensamento apreende o objecto e conserva-o como pensado e a razão apreende a razão. O ser verdadeiro é verdadeiro movimento e o movimento é a actividade de que resulta a unidade perfeita do sujeito com o seu objecto. O ser verdadeiro é, portanto, o pensamento e a razão. Para Aristóteles, o ser verdadeiro é o pensamento divino (nous theos). Embora não seja causa ou criador do mundo, o pensamento divino é o seu primeiro motor (kinoun) mediante um complicado sistema de esferas intermediárias. A razão humana é uma pálida cópia deste pensamento divino, mas, apesar disso, a vida teórica é a forma mais elevada de actividade humana e constitui o bem superior.
Hegel re-interpreta a ontologia aristotélica, descobrindo o seu carácter radicalmente dinâmico e «adaptando-a» a um mundo transformado em palco do livre desenvolvimento do sujeito e, nesse sentido, convertido na realidade da razão. A lógica dialéctica que Hegel expõe na Ciência da Lógica destaca o princípio de que as potencialidades inerentes aos homens e às coisas podem exigir a dissolução das formas sociais dadas e a reavaliação das suas estatísticas. A dialéctica rejeita qualquer pretensão de sacralidade do que é dado e não é condescendente com aqueles que vivem sob a égide da forma do mundo em vigor e do seu pensamento quantificador. A dialéctica hegeliana opõe-se completamente ao empirismo. Locke e Hume negaram os conceitos e as ideias gerais e, deste modo, minaram a metafísica, confinando o homem aos limites do dado e da sociedade liberal estabelecida. Este cepticismo conduziu ao conformismo: o desejo humano de transcender a ordem social existente foi liquidado. O empirismo renuncia à razão e às suas garantias, a necessidade e a universalidade. A renúncia à razão é um ataque à metafísica e a destruição da metafísica é um ataque às condições da liberdade humana. O empirismo recusa o direito que assiste à razão de dirigir e orientar a experiência, confiando o nosso destino aos mecanismos cegos da economia de mercado entregue aos caprichos dos egoísmos privados. A actualidade da filosofia hegeliana reside no facto de ser uma filosofia negativa: a dialéctica convida o homem a não ficar satisfeito com os factos, ou melhor, convida-o a transcender e a transgredir os factos dados e a libertar-se da sociedade estabelecida. Ou, usando a terminologia de Ernst Bloch, somente na dialéctica do acontecer não contemplado e não fechado na história consumada é o próprio conhecimento um factor de mudança: o conhecimento dirigido não apenas ao passado susceptível de ser conhecido, mas sobretudo e fundamentalmente ao devir efectivo em formação. "S não é ainda P": a exploração capitalista, a pobreza e a miséria ainda não foram superadas, a natureza ainda não é a nossa pátria, o verdadeiro não é ainda predicado da realidade efectiva. É este nondum em processo que obriga a amadurecer a fé no sentido do verdadeiro esforço humano e do seu optimismo militante: a docta spes é conhecimento criticamente antecipador que, sendo mediado e combinado com o processo objectivo, o conduz à manifestação e à predicação do seu conteúdo-meta. Todos nós somos potencialmente agentes dialécticos do não: a nossa tarefa prática, isto é, política, é transformar e melhorar o mundo.
Durante o período inicial de Jena (1801-1802), Hegel concentra-se nas doutrinas de Kant, Fichte e Schelling, submetendo à dialéctica o conceito de razão, de modo a dissolver todas as polaridades conceptuais geradas pelas operações do entendimento ou, como Hegel prefere chamá-lo, da reflexão isolada (isoliert Reflection). A definição do pensamento especulativo constitui a primeira exposição da dialéctica hegeliana. Na sua crítica do idealismo subjectivo de Kant e de Fichte, já iniciada nos períodos de Berna (1793-1796) e de Frankfurt (1797-1800), o jovem-Hegel acentua a função negativa da razão (Vernunft): a função de destruir o mundo estável e indiferente do senso comum e do entendimento (Verstand). Os antagonismos da reflexão isolada exprimem os antagonismos reais inerentes ao nascimento de um mundo novo: as cisões reais existentes reflectem-se na separação radical das categorias do entendimento e, por isso, constituem "a fonte da necessidade da filosofia". Cabe à razão apreender e realizar a unidade subjacente aos antagonismos existentes, isto é, reconciliar os opostos e elevá-los a uma verdadeira unidade. Para levar a cabo esta tarefa, a razão é motivada pela necessidade de "restaurar a totalidade" perdida, a Polis Grega, a ideia inicial que Hegel partilhava com o seu companheiro e amigo de juventude, Hölderlin. A oposição entre entendimento e razão toma a forma de uma oposição entre senso comum e pensamento especulativo, entre reflexão isolada e conhecimento dialéctico. A razão começa por abalar a falsa certeza proveniente das percepções e das invenções do entendimento: o senso comum satisfaz-se com a realidade dada e aceita as suas relações fixas e estáveis. Esta atitude torna o homem indiferente às potencialidades e às possibilidades reais que não são dadas com a mesma certeza e estabilidade dos objectos dos sentidos. Ao confundir a aparência acidental das coisas com a sua essência, o senso comum aceita uma identidade imediata entre a essência e a existência. Ora, esta identidade só pode ser criada pelo esforço contínuo da razão, isto é, da acção consciente do conhecimento dialéctico: o senso comum é abandonado a favor do pensamento especulativo que, ao comparar a forma aparente das coisas com as suas potencialidades ainda não realizadas, é capaz de distinguir a essência do estado acidental de existência. O pensamento especulativo é conhecimento conceptual que examina o processo mediante o qual cada forma veio a ser o que é: o mundo já não é concebido como uma totalidade de relações fixas e estáveis, mas como um devir, isto é, como um vir-a-ser que é produto e produzir.
A razão exorciza a segurança do senso comum, levando o homem a desconfiar da autoridade dos factos e dos números. Esta desconfiança nutrida pela ordem existente e pelos seus cálculos económicos constitui uma forma legítima de cepticismo que introduz na filosofia um "elemento de liberdade". A forma de realidade que é imediatamente dada não é a realidade última: a totalidade de coisas fixas e estáveis produzida pelas operações do entendimento é uma forma má de realidade e, como domínio da servidão, opõe-se ao fim inerente da razão: o reino da liberdade. Kant e Fichte julgavam que este reino podia ser alcançado pela oposição do sujeito ao mundo objectivo e pela atribuição à pessoa autónoma de toda a liberdade que faltava ao mundo exterior. O idealismo subjectivo entregava o mundo exterior ao domínio da necessidade cega e reduzia a liberdade a um mero valor interior a ser realizado unicamente dentro da alma. Ao aceitar o princípio empirista, Kant limita a razão ao domínio interior do espírito: a sua filosofia é completamente dominada pelo entendimento finito. A razão perde poder sobre as "coisas-em-si". Hegel supera o idealismo subjectivo, mostrando que o antagonismo entre o sujeito livre e o mundo objectivo, bem como outros antagonismos criados pelo entendimento, podem ser resolvidos. O absoluto mais é do que a resolução desses antagonismos, isto é, a realização da realidade final: a aniquilação absoluta do mundo do senso comum e da sua indiferença da segurança. Onde o entendimento apreende coisas separadas e opostas umas às outras, a razão revela a "identidade dos opostos": os opostos são de tal modo transformados que deixam de existir como opostos e são elevados a outra forma mais real de ser. As mudanças constituem saltos qualitativos. Em Nicolau de Cusa ou mesmo na filosofia de Schelling, a unidade dos contrários é produzida pela vitória do estático "estar-superado" sobre o movimento da própria superação, mas, em Hegel, esta unificação dos opostos é um movimento que se renova constantemente, pondo e superando os seus momentos: o processo de unificação alarga-se a cada parte e, finalmente, a toda a realidade, alcançando o seu fim quando cada parte só existe e só tem sentido em relação à totalidade. A tríade dialéctica (Triplizität) é a verdadeira forma do pensamento especulativo: tese (posição), antítese (negação) e síntese (negação da negação) constituem uma unidade dinâmica de opostos. O absoluto é precisamente esta totalidade de conceitos e conhecimentos da razão: a "organização de proposições e intuições" sob a forma de sistema. (A Lógica de Jena será apresentada noutro post.)
J Francisco Saraiva de Sousa

5 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, como estou constipado e com gripe, vou talvez demorar a concluir o post, aliás um tema difícil de explanar de modo sucinto. O objectivo é expor o pensamento especulativo, tarefa já iniciada, e depois a lógica de Yena. Porém, vou procurar esclarecer algumas noções da Ciência da Lógica, à luz da qual as duas tarefas estão a ser realizadas.

André LF disse...

Desejo-lhe melhoras, Francisco! Também não ando bem de saúde, a bronquite voltou a me mostrar as garras.
Um abraço!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O tempo está instável: muito frio, muita chuva, muita humidade e muito granizo. Este tempo aqui é mau para a bronquite. Também lhe desejo as suas melhoras. Apesar do tempo, vou tentar concluir o post, porque o blogue vai ser submetido a manutenção.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Roosevelt ideou o New Deal (1933-39) para fazer face a crise económica de 1929: um conjunto de medidas que visavam socorrer a pobreza e a miséria, restabelecer o equilíbrio entre a agricultura e a indústria e exercer controle sobre as práticas bancárias mediante todos os meios ao seu alcance. Roosevelt gastou imenso dinheiro (16 mil milhões de dólares) para

prestar assistência directa aos desempregados, auxiliar as empresas comerciais em falência, realizar um vasto conjunto de trabalhos públicos (estradas, estações de correio, etc.), conceder empréstimos às empresas de construção de habitação e assim criar numerosos novos empregos, conservar a natureza e proteger os recursos naturais do saque capitalista, combater o esbanjamento e o desperdício, oferecer emprego, na sua especialidade, a numerosos intelectuais que viviam na miséria, garantir os depósitos bancários, aumentar a tabela de imposto sobre o rendimento dos ricos, e chegou mesmo a fechar os bancos (férias bancárias). A agricultura, o trabalho e a segurança social foram alvo do New Deal.

O Supremo Tribunal tentou bloquear muitas destas medidas e Roosevelt impôs uma idade de reforma aos juízes, de modo a libertar os USA desses idosos obstinados.

Como disse no post anterior, na caixa de comentários, Obama procurou retomar o exemplo das grandes presidências democráticas. De certo modo, o tempo presente é tão tempestuoso como o tempo de Roosevelt ou de Carter: o discurso de Obama não foi explícito quanto às medidas a tomar, prevendo novas medidas. Roosevelt defendia uma Nova Democracia. O New Deal foi uma nova política que procurou remédio para as misérias nacionais mediante uma reestruturação da vida económica da nação. A Nova Democracia de Roosevelt não era uma posição de Centro mas de Esquerda: ela implicava uma nova organização social.

Porém, nos últimos 30 anos, tudo foi esquecido em nome da velha ideologia de mercado. O resultado deste longo esquecimento é a actual crise financeira e económica. O capitalismo tem uma história de crises periódicas, umas mais profundas do que outras. É o capitalismo caprichoso e o seu fundamentalismo de mercado que deve ser alvo das novas reformas. Se Obama ponderou bem quando usou o termo Esperança, então deve ser corajoso e ir directamente à raíz do problema e punir os seus responsáveis.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Referia-me a este comentário que reproduzo aqui:

"A palavra de ordem de Obama é "Nova Era", tal como a de John Kennedy foi "The New Frontier", a de F. Roosevelt foi "New Deal", a de H. Truman foi "Fair Deal" ou a de Lyndon Johnson foi "Grande Sociedade".
"Obama assume a energia das anteriores presidências democráticas, ao mesmo tempo que relembra os "pais fundadores" e a Sagrada Escritura. O tempo de Roosevelt também foi tempestuoso, a grande crise de 1929, e foi dominado pelo New Deal, um conjunto de medidas para fazer face à crise económica, muitas delas combatidas pelo Tribunal. As medidas de Roosevelt estão a ser retomadas pelos actuais governos ocidentais, embora Roosevelt tenha ido mais longe quando suspende a actividade bancária. O discurso de Obama faz lembrar o discurso de Roosevelt proferido em Filadélfia (1936): ambos condenam as "novas dinastias" económicas."

"Em Portugal, tudo é medíocre, sobretudo o discurso político que, depois da Era de Cavaco Silva, se tornou mero anúncio de números e de estatísticas: a Grande Política morreu com esse discurso quantificado falso. Até Sócrates é incapaz de mobilizar animicamente os portugueses: o seu discurso é algo de outro mundo e ninguém se reconhece nele ou noutros: não temos lideres políticos!"

Eis a nossa triste realidade: ausência de pensamento e de mérito!