quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O Nascimento da Ciência Moderna (3)

«Os leitores de novelas sherlockianas sabem como as pistas falsas perturbam a história e atrasam a solução. O método de raciocinar ditado pela intuição era uma pista errada que levou a ideias falsas sobre o movimento, as quais perduraram por séculos. A grande autoridade de Aristóteles foi talvez a causa principal da longa fé no intuito. Na Mecânica, que há dois mil anos é atribuída a esse filósofo, lemos o seguinte: O corpo em movimento estaciona quando a força que o impele cessa de agir». (Albert Einstein)
3. Desenvolvimento da Física Clássica. De acordo com A. Koyré, podemos distinguir, na história do pensamento científico da Idade Média e do Renascimento, três épocas de desenvolvimento científico que correspondem a três tipos diferentes de pensamento científico: a física aristotélica, a física do impetus, extraída do pensamento grego e elaborada no decurso do século XIV pelos nominalistas parisienses, e, finalmente, a física moderna, a de Arquimedes e de Galileu. Estas etapas encontram-se no próprio desenvolvimento do pensamento científico de Galileu, a quem se deve uma exposição deveras interessante da teoria do impetus. A passagem da física aristotélica e da física do impetus à física matemática de Galileu deve-se fundamentalmente à recepção e à compreensão gradual da obra de Arquimedes e do seu mestre Platão. As duas primeiras teorias pensam em termos de experiência quotidiana, enquanto a teoria de Galileu pensa em termos estritamente matemáticos: o seu livro da natureza está escrito em linguagem matemática.
3.1. A Física de Aristóteles. A física aristotélica é uma ciência teoricamente elaborada que, partindo naturalmente dos dados do senso comum, os submete a uma tratamento teórico extremamente coerente e sistemático. Para Aristóteles (384-322 a.C.), o fundamento da verdadeira ciência do mundo físico reside na percepção e não na especulação matemática, na experiência e não no raciocínio geométrico a priori. A sua ciência que foi a ciência medieval articula intimamente uma metafísica finalista e a experiência normal do senso comum, dois traços que serão rejeitados por Galileu, Descartes e Newton. Quando atribuiu à autoridade de Aristóteles o atraso da "solução" do problema do movimento, Einstein esquece, talvez por ignorância e por preconceito positivista, que a física aristotélica, além de ser uma ciência coerente e corroborada pelos dados da experiência comum, exibe semelhanças com a sua teoria geral da relatividade: o movimento circular dos astros aristotélicos parece estar particularmente difundido no mundo, tanto ao nível macroscópico (galáxias e nebulosas) como ao nível microscópico (átomos e electrões). Einstein mostrou que uma curvatura local do espaço pode produzir movimentos deste género, e o seu universo, tal como o cosmos de Aristóteles, não é infinito, mas finito, embora tenha limites (noção estranha a Aristóteles). Não existe rigorosamente nada fora do universo einsteiniano, pela simples razão de todo o espaço estar dentro e não fora do universo: o tempo e o espaço estão no universo e, não como pensava Newton, o universo contido neles. Sem os recursos da geometria riemaniana, Aristóteles já sabia que fora do mundo não existe nada, nem pleno, nem vácuo (princípio da plenitude do universo ou horror vacui), e que todos os lugares estão no interior do mundo. A diferença substancial entre Aristóteles e Einstein reside no facto da concepção do primeiro ser metafísica e da concepção do segundo ser matemática: o mundo finito de Aristóteles não é geometricamente curvado, como o de Einstein, mas é metafisicamente curvado. (Observação: A relatividade especial mostrou que as distâncias e os intervalos de tempo dependem da velocidade e que a massa é equivalente à energia, enquanto a relatividade geral mostra que a massa determina a geometria do espaço circundante: Einstein rejeita, portanto, a tese de Leibniz de que o espaço é fisicamente vazio; o espaço é um campo físico, embora não seja o campo euclidiano indicado por Newton na sua experiência do balde.)
Para Aristóteles, a ciência começa quando se procura explicar as coisas que parecem naturais, tais como "um corpo pesado cair para baixo" ou "a chama de um fósforo dirigir-se para cima". O seu objectivo é traduzir ou exprimir na sua linguagem elaborada estes dados do senso comum, ao mesmo tempo que os «transfigura». A distinção aristotélica entre movimentos naturais e movimentos violentos enquadra-se numa concepção de conjunto da realidade física, cujos traços principais são: a crença na existência de naturezas qualitativamente definidas (1), e a crença na existência de um Cosmos (2), mais precisamente a crença na existência de princípios de ordem em virtude dos quais o conjunto dos seres reais constitui um todo hierarquicamente ordenado e harmónico. Este último conceito implica que, no universo, as coisas estão distribuídas e dispostas numa determinada ordem, e que a sua localização não é indiferente, nem para elas, nem para o universo. Pelo contrário, cada coisa tem, segundo a sua própria natureza, um lugar determinado no universo, ou melhor, o seu lugar próprio. O conceito de lugar natural exprime, na física aristotélica, uma exigência teórica: um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar.
O conceito de lugar natural baseia-se numa concepção puramente estática da ordem, na medida em que, se cada coisa estivesse em ordem, estaria no seu lugar natural e aqui permaneceria para sempre. Isto significa que cada coisa resiste naturalmente a todo o esforço para a afastar do seu lugar natural. Para a expulsar desse lugar, é preciso «imprimir-lhe» algum tipo de violência, capaz de colocar um corpo fora do seu lugar, mas, após ter sido afastado do seu lugar, o corpo procura voltar a ele. O movimento implica alguma espécie de desordem cósmica, uma perturbação no equilíbrio do universo, porque é ou o efeito directo da violência ou, pelo contrário, o efeito do esforço do ser no sentido de compensar essa violência, para recuperar a ordem e o equilíbrio perturbados, isto é, para recolocar as coisas nos seus lugares naturais, onde devem ficar e permanecer. O movimento natural mais não é do que o retorno à ordem. Perturbar o equilíbrio, voltar à ordem: eis uma concepção estática e ordenada do cosmos que dispensa uma explicação do estado de repouso. A própria natureza ontológica do cosmos explica o facto da Terra estar em repouso no centro do mundo.
O conceito de uma ordem estática implica a ideia de que o movimento é necessariamente um estado transitório: um movimento natural cessa naturalmente quando o corpo atinge o seu objectivo. Porém, afirmar que o movimento cessa quando o corpo alcança o seu objectivo é o mesmo que dizer que o movimento não pode ser definido como estado, até mesmo como estado transitório, porque todos os corpos do universo tendem para a ordem cósmica. Para Aristóteles, o movimento é um processo de mudança, em oposição ao repouso, o qual, sendo o objectivo e o fim do movimento, deve ser considerado como um estado. Todo o movimento é mudança (actualização ou corrupção) e, por conseguinte, um corpo em movimento não só muda em relação a outros corpos (1), como também, ao mesmo tempo, está ele próprio submetido a um processo de mudança. O movimento afecta sempre o corpo que se move e, se o corpo for dotado de dois ou mais movimentos, estes perturbam-se mutuamente, entravam-se uns aos outros e, por vezes, podem ser incompatíveis. Considerado como um processo de mudança, um vir-a-ser, o movimento não pode prolongar-se espontânea e automaticamente. Para persistir, o movimento exige a acção contínua de um motor ou de uma causa e, quando esta causa cessa de exercer o seu efeito, o movimento do corpo também cessa. Cessante causa cessat effectus. O tipo de movimento postulado pelo princípio de inércia é totalmente inadmissível na física aristotélica. Aristóteles não admite a acção à distância: cada transmissão de movimento implica um contacto. Só existem dois tipos de transmissão: a pressão e a tracção. Para fazer com que um corpo se mova, é preciso empurrá-lo ou puxá-lo. Não existem outros meios para pôr um corpo em movimento. Quando uma destas acções cessa, o corpo regressa ao seu lugar natural e permanece em repouso.
A dinâmica aristotélica nega o vazio e o movimento no vazio, porque, na sua perspectiva, o vazio não só não favorece o movimento como também o torna impossível. Esta dupla-rejeição reflecte a antiga concepção grega da plenitude do universo, geralmente referida como horror vacui ou aversão da natureza pelo vácuo: a natureza age sempre de maneira a evitar a formação do vácuo. A teoria aristotélica do movimento está ligada intimamente ao conceito de um espaço finito e completamente ocupado: o seu cosmos é auto-suficiente e autocontido, não deixando nada fora dele. Como vimos, quando um corpo é deslocado do seu lugar por uma força externa, ele tende a regressar ao seu lugar natural e este movimento efectua-se pelo caminho mais curto e mais rápido, portanto, em linha recta. Se o meio no qual o corpo se move não opusesse qualquer resistência ao seu movimento, tal como se passaria no vácuo, então o corpo dirigir-se-ia para o seu lugar com uma velocidade infinita. Ora, segundo Aristóteles, este movimento instantâneo no vazio é absolutamente impossível. E, no caso do lançamento, o movimento no vazio equivale a um movimento sem motor e, como o vazio não é um meio, não pode receber, isto é, transmitir e conservar o movimento, mais outra impossibilidade.
Um universo infinito não pode coexistir com o universo finito de Aristóteles, por duas ordens de razões fundamentais. Em primeiro lugar, um espaço infinito não tem centro: cada ponto está a igual distância de todos os outros pontos da periferia. Ora, se não existir centro, não só não há um lugar escolhido no qual o elemento pesado terra possa ser agregado, como também não há o intrínseco "para cima" e "para baixo" a fim de determinar o movimento natural de um elemento (terra, água, ar e fogo) ao regressar ao seu lugar próprio. Isto equivale a dizer que, num universo infinito, não existem lugares naturais, porque cada lugar é igual a qualquer outro. Aristóteles liga os conceitos de espaço finito e completamente ocupado, de modo a mostrar que a noção de vazio é incompatível com a ideia de uma ordem cósmica. As interacções da matéria e do espaço determinam o movimento e o repouso dos corpos. Com efeito, no vácuo não há lugares naturais ou mesmo quaisquer lugares: o vazio não é nada e situar qualquer coisa nesse nada é absurdo. Em segundo lugar, a noção de espaço infinito não só elimina a noção de centro, como também retira o homem e a Terra do centro do universo: ela é incompatível com o «facto» de toda a terra, água, ar e fogo estarem agregados num único ponto, nos seus respectivos lugares naturais. (O éter, um sólido cristalino, era, para Aristóteles, o elemento celeste.) No vácuo, não há lugares nem direcções privilegiadas, portanto, no vazio um corpo não teria razão para se mover numa direcção de preferência a uma outra, ou melhor, não teria razão para se mover. Descartes rejeita o vazio de modo mais radical do que Aristóteles: a sua identificação entre a extensão e a matéria leva-o a considerar o vazio como um nada existente, donde resulta a ideia de que o espaço não é uma entidade distinta da matéria que o "enche", bem como a ideia de um mundo indefinido. (Para Descartes, só Deus é infinito.)
3.2. A Física do Impetus. O maior defeito da física aristotélica reside no facto de ser desmentida pela prática quotidiana do lançamento ou arremesso. Porém, Aristóteles não se rende e procura explicar o lançamento pela reacção do meio, o ar ou a água. A solução de Aristóteles é engenhosa e genial: o movimento, aparentemente sem motor, do projéctil é explicado por um processo turbilhonante no meio envolvente do corpo, neste caso no ar, que age sobre este último arrastando-o e impelindo-o. De certo modo, Aristóteles inventa um meio particularmente apto a mover-se, portanto, um "meio elástico": o ar.
Os nominalistas parisienses, nomeadamente Buridan e Nicolau Oresme, retomam os argumentos de Filão, o fundador grego da teoria do impetus. Filão aponta dois grupos de argumentos contra a dinâmica aristotélica: os argumentos de ordem material sublinham o quanto é improvável a suposição segundo a qual um corpo grande e pesado, por exemplo, a bala de um canhão, a mó que gira ou a flecha que voa contra o vento, possa ser movido pela reacção do ar, enquanto os argumentos de ordem formal assinalam o carácter contraditório da atribuição ao ar de um duplo-papel, o de resistência e o de motor, assim como o carácter ilusório de toda a teoria aristotélica. Filão acusa Aristóteles de ter deslocado o problema do corpo para o ar, sendo obrigado a atribuir ao ar o que recusa aos outros corpos, nomeadamente a capacidade de manter e conservar o movimento de um corpo separado da sua causa externa. Estes argumentos foram retomados, desenvolvidos e aperfeiçoados por Hiparco, João Filopono, Buridan, Nicolau Oresme, Alberto da Saxónia, Leonardo da Vinci e Benedetti, bem como pelo jovem-Galileu e pelo seu mestre Bonamico. A concepção do movimento que sustenta e apoia a teoria do impetus é completamente diferente da concepção de movimento terrestre da teoria aristotélica. O movimento não é mais interpretado como um processo de actualização. Contudo, continua a ser visto como mudança e, como tal, exige a sua explicação pela acção de uma força ou de uma causa determinada. O impetus é precisamente essa causa imanente que produz o movimento, o qual é, converso modo, o efeito produzido por ela. Assim, o impetus impressus produz o movimento, isto é, move o corpo, ao mesmo tempo que desempenha outro papel muito importante: domina a resistência que o meio opõe ao movimento. Contudo, apesar das excelentes clarificações realizadas por Benedetti, a teoria do impetus (força motriz) foi incapaz de elaborar um conceito novo e original do movimento. O jovem-Galileu mostrou que, embora fosse compatível com o movimento no vacuum, a física do impetus era incompatível com o princípio de inércia e, portanto, incompatível com o método matemático. O contributo original de Galileu será, como veremos, abandonar esta concepção e edificar uma física matemática na perspectiva da estática de Arquimedes, mediante a elaboração de um conceito novo de movimento. (CONTINUA com o título "O Nascimento da Ciência Moderna 4", o último post desta série.)
J Francisco Saraiva de Sousa

11 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Dedico este post a um amigo que faz hoje anos. Termino amanhã, porque vou ao jantar. :)

Denise disse...

Divirta-se no jantar! Hoje é também o dia do aniversário de um prof da faculdade por quem o meu coração acelerou um pouco mais (ainda hoje ele treme :-P).
Entrámos em Aquário. A Else é aquariana. De que dia?

Fräulein Else disse...

Oi Deni e F.!

Faço dia 16! Os Aquários são boa gente, um pouco "excêntricos"... ;)

Bem, estou mais-que-morta... vou ter o merecido sono do guerreiro. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi amigas

Cheguei agora e estou completamente cheio e, ainda por cima, apeteceu-me comer mais, mas bebi um sumo de laranja com rodelas de ananás! Amanhã concluo o post.

Também vou dormir! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, este post está concluído. Curiosamente seia interessante reler Aristóteles, em si mesmo, de modo intenso, e depois ver como foi mal-interpretado ao longo do tempo. Com efeito, muitas leituras são deveras preconceituosas, o que inviabiliza uma boa compreensão da física e da astrofísica aristotélicas. Muito trabalho a realizar e uma questão a resolver: até onde vai a revolução copernicana? São possíveis diversas respostas e de uma delas depende o modo como devemos entender a revolução actual da física e suas implicações filosóficas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Cada vez estou mais convencido de que a corrupção que domina Lisboa está a levar o país à miséria e à desgraça: a política central mente e com mentiras não há futuro risonho. A crise vai devastar Portugal: o animal metabolicamente reduzido é uma figura ainda pouco compreendida, mas é capaz de actos extremamente violentos. A pobreza cameça a revelar-se e o país é deveras pobre tanto material como espiritualmente. É necessário fazer justiça contra os corruptos para a malta não se sentir maltratada e excluída!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Introduzi duas outras explicitações: uma sobre a relatividade e outra sobre a negação cartesiana do vazio, de modo a reforçar ideias ou ramificações já introduzidas em posts anteriores desta série.

André LF disse...

Excelente post, Francisco!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi André

Estou a ler Nagel e com vontade de atacar a sua "visão do mundo". Estive a folhear o livro de Marcel Conche: Orientação Filosófica. :)

André LF disse...

Francisco, Orientação filosófica é um dos primeiros livros de Conche. Há , em alguns artigos do livro, um tom panfletário, combativo. Os livros posteriores dão uma idéia mais clara das posturas filosóficas de Conche.
Gostaria de saber quais foram as suas impressões sobre o livro

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O outro livro que vi é "A Análise do Amor" e ambos em tradução da Martins Fontes. Não sei bem o que pensar: não o estudei. A ideia que faço da filosofia que se produz no nosso tempo é a de que é uma filosofia indigente, incapaz de fornecer uma orientação no mundo. Os temas que aborda são muito subjectivistas: assuntos muito diários, como se o homem estivesse perdido em si mesmo. Associo esta indigência à crise profunda que vivemos: uma espécie de cegueira objectiva fomentada pela ideologia de mercado. Sei que é difícil produzir uma grande filosofia para o nosso tempo, mas não devemos desistir dela, apesar da regressão cognitiva. Precisamos de novos princípios e, por isso, o livro de Nagel atraiu a minha atenção pela sua indigência total.