terça-feira, 11 de maio de 2010

Prós e Contras: O Papa, a Igreja e o Mundo

A propósito da visita do Papa Bento XVI a Por-tugal, a irmã leiga Fátima Campos Ferreira - imaginem a jornalista da RTP1 vestida de freira - reuniu quatro figuras católicas e a sua galeria habitual de convidados: Marcelo Rebelo de Sousa, D. Carlos Azevedo (Bispo auxiliar), Margarida Neto (Psiquiatra católica) e Eugénio Fonseca (Cáritas). Fátima Campos Ferreira disse ter lido algumas obras teológicas de Joseph Alois Ratzinger, mas, se isto fosse verdade, teríamos assistido a uma condução mais inteligente do «debate» entre católicos. Em vez de uma conversa agradável e inteligente sobre os problemas - incluindo o da pedofilia interna - que desafiam a autoridade da Igreja Católica no mundo contemporâneo, e o seu papel na História de Portugal e do Mundo, escutei a velha lengalenga sobre a crise de valores. O que é a crise de valores? Os principais participantes definiram-na como uma perda de valores. Que valores são esses que perdemos? Os valores cristãos, respondem os católicos, responsabilizando o relativismo (M. Rebelo de Sousa), a moda (Carlos Azevedo) e a solidão (Margarida Neto) pela liquidação dos valores cristãos. Ora, todos estes aspectos referidos resultaram do processo de secularização que acompanha a Modernidade: a secularização é o processo mediante o qual sectores da sociedade e da cultura foram e são subtraídos à dominação das instituições e dos símbolos religiosos. As sociedades modernas que materializaram algumas aspirações ancestrais da humanidade oprimida - tais como a luta contra o obscurantismo, a exploração, a opressão e a pobreza - são sociedades seculares: a religião entendida como o estabelecimento de um cosmos sagrado foi privatizada, ingressando na esfera privada e deixando o espaço público livre para a política e a cidadania. A Reforma gerou uma cisão profunda no seio monolítico da velha Cristandade: a diferença introduzida pela Reforma Protestante no seio do cristianismo abriu as portas à liberdade, ao progresso, ao pluralismo e à democracia. Foi preciso dividir a Igreja para que o "escravo" se libertasse e conduzisse o destino da História: Hegel operou pela primeira vez essa articulação da História e da Política, elaborando a primeira grande Filosofia da História, cujo agente é o homem real que luta pela sua libertação e pela reconciliação. É certo que a noção de História como progresso - material e espiritual - para a liberdade tem sido desmentida - e o facto de se depositar muita confiança no Papa revela a fragilidade de uma tal noção, mas ela tem o mérito de responsabilizar o homem livre pela destino da humanidade. O futuro não está garantido: todas as noções de progresso que colonizam o futuro são falsas. Tomar consciência do momento de regressão que ameaça o devir histórico da humanidade é o primeiro passo que devemos dar para libertar o futuro.
O Ocidente está numa encruzilhada e aqui em Portugal alguns católicos depositam uma confiança excessiva na visita papal. Eugénio Fonseca colocou esta questão: o que vai ficar depois da visita do Papa? O que fica é a crise em que vivemos - antes, durante e depois da visita papal, cuja resolução não se encontra na concepção cristã de Deus como Amor. Aliás, esta noção de Deus como amor é perigosamente ambígua, na medida em que pode ser usada para legitimar todas as práticas carnais dos homens, até mesmo aquela que pretende censurar: a sua realização social como promiscuidade sexual universal. Neste mundo empírico abandonado por Deus ou pelos deuses, o amor como promiscuidade sexual preenche efectivamente a vida dos homens, pelo menos é isso que eles pensam. A religião como alienação não resolve os nossos problemas reais: cabe-nos a nós homens reais - sem a ajuda de um Deus que abandonou de vez o mundo - resolver os nossos problemas e libertar o nosso futuro, de modo a garantir a continuidade da aventura humana neste planeta azul. A opção conservadora é um regresso ao passado e, o que é ainda pior, ao passado da consciência infeliz. Segundo Hegel, a consciência infeliz é a consciência cristã caracterizada pela cisão da unidade da consciência num eu empírico - escravo dos senhores - e num eu transcendente - escravo de Deus, dos quais o primeiro é mortal por estar ligado ao mundo, e o segundo é a alma imortal em contacto directo com Deus. A fonte da infelicidade do homem religioso reside nesta oposição dos dois elementos contraditórios da consciência duplicada ou dilacerada: o medo da morte leva o escravo a ceder o mundo ao senhor vencedor e a procurar a liberdade num mundo transcendente, onde a sua alma imortal é escrava do Senhor dos senhores deste mundo empírico, isto é, de Deus. O cristão isola-se do mundo natural e da sociedade, fechando-se em si mesmo: a busca da salvação da sua alma imortal não lhe permite ajudar realmente o outro e ser ajudado pelo outro. Ora, o mundo mudou completamente quando o homem substituiu a finalidade transcendente pela finalidade realizável neste mundo: o homem verdadeiramente humano vive na Terra e para a Terra, abre-se ao mundo e interessa-se pela actividade social e política.
Não estou a fechar as portas ao diálogo produtivo com as igrejas cristãs: o cristianismo faz parte integrante da nossa cultura ocidental e todos nós somos herdeiros da tradição cristã que moldou a configuração do nosso destino (M. Rebelo de Sousa, C. Azevedo). Carlos Azevedo disse que a Igreja está sempre a renovar-se: a Igreja não precisa de um novo Concílio para levar a cabo a sua renovação constante, sem ceder aos critérios ditados pela moda. Faz parte da essência da renovação não ceder às forças da regressão. Os grandes teólogos do século XX foram homens que renovaram substancialmente o cristianismo numa atitude de diálogo aberto com a Filosofia ou mesmo a Ciência. A cultura superior não é encarnada por figuras pardacentas, tais como a múmia-mor do mausoléu da pseudo-cultura nacional chamada Maria de Glória e a deputada Teresa Damásio: são figuras católicas deste tipo reaccionário que afastam os verdadeiros intelectuais da Igreja e do diálogo aberto com a Igreja. A galeria dos ignorantes tão do agrado de Fátima Campos Ferreira mata a Igreja a partir do seu interior, fazendo com que muitos católicos tenham vergonha da sua identidade religiosa: são os católicos envergonhados. A divergência amaldiçoada pela Maria de Glória é a única amiga da mudança social e cultural, porque sem clivagens não pode haver diálogo produtivo: nós portugueses que não vivemos em Lisboa ficamos profundamente ofendidos com Fátima Campos Ferreira quando afirma que um lugarejo do Terreiro do Paço é o único "lugar nobre" de Portugal. Para nós que não somos saloios, Portugal não é Lisboa.
J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O Papa já está em Portugal e não foi recebido com muito calor humano. Aqui no Porto as pessoas identificam Igreja e Pedofilia. Confirma-se assim a minha tese de que o povo não quer regressar ao Passado: o impulso é para a frente e não para trás. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Disponibilizei no corpo do texto 3 links que ajudam a compreender a minha perspectiva. :)

Fernando Dias disse...

Olá Francisco,
Concordo com o que vai dizendo no texto e com a sua ideia de que cabe a nós “resolver os nossos problemas e libertar o nosso futuro”, sem que Deus tenha de ser para aí chamado.
O ‘Secularismo’ por vezes é identificado como a mesma coisa que Humanismo secular, em contraposição com o Humanismo religioso seguido por alguns cristãos liberais e alguns deístas. No Humanismo secular existem variantes onde cabem vários tipos de visões do mundo (ateus, agnósticos, cientistas, empiristas, racionalistas). Há algumas maçonarias que se podem considerar Humanistas seculares. São considerados Humanistas seculares do passado figuras como Voltaire, Giordano Bruno ou David Hume. Do presente, Richard Dawkins e Daniel Dennett, só para citar dois.
É certo que muitos dos rituais e crenças arcaicas que ainda perduram parecem ir de encontro a necessidades emocionais daqueles que nelas participam. Mas de facto o tradicional sistema religioso de crenças está progressivamente a diluir-se na Europa com proporcional emergência da secularização (embora estatísticas recentes mostrem que as crenças religiosas estão a crescer na América).
No entanto, apesar de a secularização ter implicado a retirada do sagrado da vida pública, penso que não tem necessariamente que implicar o conflito com as religiões. A Secularização não implica nenhum sistema de crenças nem pressupõe nenhuma posição formal contra as religiões. É compatível como uma posição agnóstica. A posição agnóstica deixa em aberto as questões que permanecem fora do alcance da razão, ou fora dos limites do cognoscível. Pelo que é mais uma questão do foro da consciência de cada um. Ao passo que não é o que acontece com alguns tipos de Humanismo. Dawkins é declaradamente ateísta e faz guerra anti-clerical em público, e as maçonarias estão carregadas de rituais que sacralizam um certo tipo de homem, um sistema de crenças no Homem, como se tivessem transferido para ele os atributos que eram de Deus “antes de ele morrer”.
As ideias que se identificam com a secularização duvidam da “sabedoria” dos antepassados, e colocam desconfiança no benefício da ritualização do sagrado sobrenatural numa caminhada para um patamar superior da humanidade. Como as emoções fortes não são sábias, tem de prevalecer a razão. E a razão e a história não nos confirmam que uma vida digna e uma morte tranquila, sem medos fantasmagóricos, só possam ser atingidas através de um qualquer credo religioso.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá F. Dias

Obrigado por este seu profundo comentário, com o qual estou de acordo. Estava a pensar na consciência infeliz de Hegel e vejo nela uma crítica do dualismo. Penso que precisamos de uma nova grande narrativa sobre a nossa vida cultural e histórica: temos novos dados que permitem aprofundar e aperfeiçoar a narrativas anteriores, libertando o futuro.

Sim, concordo: deixemos Deus no seu lugar; o que podemos fazer é criticar posturas religiosas perante o mundo.

Nessa questão do humanismo, convém levar em conta Feuerbach, que já está antecipado em Hegel.