terça-feira, 28 de setembro de 2010

Kees van Dongen: L'Equilibriste, 1907

Diego Rivera: El Vendedor de Alcatraces

Diego Rivera repete algumas vezes este tema do vendedor de flores, tendo chegado a pintar a Festa das Flores. Ele põe a luta de classes na pintura e nos murais, ao mesmo tempo que explora os contrastes entre o estilo de vida dos explorados e o estilo de vida dos exploradores. O que se detecta nesta figura carismática e típica da sua pintura é o peso da opressão e a humilhação do povo!

Fernando Botero: The Bedroom, 1999

A Mulher mais sensual da pintura! Fernando Botero satiriza alguns temas e obras clássicas da pintura ocidental.

Prós e Contras: Crise Orçamental?

Prós e Contras debateu hoje (27 de Setembro) o confronto político entre o PS e o PSD em torno do novo orçamento de Estado. Escolhi este quadro de Diego Rivera - The Flower Carrier - para evidenciar o peso da exploração e da opressão que os portugueses pobres carregam às costas: o aumento do IVA não vai prejudicar as empresas, mas sim os consumidores (António Saraiva), sobretudo os 5 milhões de portugueses que sofrem na pele os efeitos perversos desta crise económica pelo facto de terem perdido o emprego e/ou de serem demasiado pobres. Diego Rivera repete algumas vezes este tema do vendedor de flores, chegando mesmo a pintar a Festa das Flores. Ele põe a luta de classes na pintura e nos murais, ao mesmo tempo que explora os contrastes gritantes entre o estilo de vida dos explorados e o estilo de vida dos exploradores. O que se detecta nesta figura carismática e típica da sua pintura é o peso da opressão e a humilhação do povo. O confronto político entre o PS e o PSD é absolutamente alheio aos interesses e às necessidades do país real e completamente indiferente ao sofrimento dos mais carenciados: os partidos do poder usam o tema do orçamento de Estado e das medidas severas de combate ao défice para não assumir a responsabilidade pelo aumento impopular da receita, isto é, dos impostos. O relatório da OCDE faz propostas nesse sentido: o aumento da receita sem exigir a redução drástica da despesa e sem levar em conta a questão do crescimento económico, donde resulta que os mais sacrificados são sempre os mesmos - os mais desfavorecidos que carregam às costas os erros fraudulentos das suas classes dirigentes, incluindo os gestores públicos, os administradores bancários e os próprios empresários.
Com excepção de Carvalho da Silva, os outros convidados são pessoas mais ou menos comprometidas com a lógica financeira - neoliberal - do sistema vigente que gerou um país socialmente assimétrico, corrupto, endividado, injusto e sem futuro: Jacinto Nunes, Abel Mateus, Fernando Ulrich, António Saraiva e Bruno Bobone, que pretende fazer da sua actividade comercial - o mar - um interesse nacional. Chegaram a um consenso: aceitam o aumento da receita mas acompanhado pela redução drástica da despesa. Bruno Bobone afirmou que não podemos atravessar a crise sem provocar dor, acusando os políticos de discutirem muito sem resolver os problemas nacionais: a dor resultante da redução da despesa através do congelamento ou mesmo da redução dos salários. Para sair da crise, Portugal precisa daquilo que não tem neste momento: uma liderança forte (Fernando Ulrich) capaz de implementar as políticas adequadas à redução do défice e de cumprir os objectivos previstos pelo PEC. Abel Mateus defendeu o entendimento entre as lideranças políticas para aprovar o orçamento de Estado: as actuais disputas políticas degradam a imagem de Portugal e os mercados financeiros podem penalizar cada vez mais o país. Apesar de reconhecerem que o problema fundamental de Portugal é o do crescimento económico, sem o qual é difícil fazer estes ajustamentos, os participantes neste debate moderado por Fátima Campos Ferreira aprovam a proposta da OCDE: a redução da despesa, não a redução das suas remunerações e dos seus prémios pornográficos, mas a redução inumana dos salários, dos subsídios sociais e das reformas magras dos mais desfavorecidos, isto é, daqueles portugueses que foram privados fraudulenta e violentamente de uma vida digna pelo cunhismo corrupto nacional. Portugal é um país obsceno e corrupto: as chamadas elites nacionais são formadas por bandidos sociais que usurpam em rede os cargos de decisão. O único convidado que discordou desta proposta foi Carvalho da Silva, para o qual o futuro vai ser mais do mesmo mas mais aprofundado e acentuado. Sem resolver o problema do crescimento económico, Portugal está condenado à miséria e à pobreza. Para Carvalho da Silva, a actual crise financeira e económica é o maior roubo organizado da história da humanidade. Sair da crise exige nesta perspectiva a elaboração de um novo modelo de desenvolvimento, que não pode ser implementado pelas mesmas figuras da elite do poder que nos mergulharam na crise e na pobreza: as lágrimas de crocodilo derramadas por Cavaco Silva - o mar como futuro de Portugal - não convencem Carvalho da Silva. As figuras nacionais do poder político devem ser responsabilizadas pela actual situação de miséria dos portugueses. E esta miséria não é somente material, mas sobretudo e fundamentalmente mental e cognitiva: as velhas figuras do regime privaram as gerações mais novas do acesso ao conhecimento e, para satisfazer a sua gula desmesurada, geraram e conspiraram um país de mentiras. A mudança de paradigmas exige desde logo o despertar da memória: os que falam de catástrofe são responsáveis pela própria catástrofe nacional - a bancarrota. Despertar a memória é quebrar o feitiço das mentiras oficiais: os carrascos não podem ser salvadores.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Antropologia Dialógica: Martin Buber e Emmanuel Lévinas

«O facto fundamental da existência humana não é o indivíduo enquanto tal, nem a colectividade enquanto tal. Consideradas em si mesmas, ambas as coisas são abstracções formidáveis. O facto fundamental da existência humana é o homem com o homem. O encontro do homem consigo próprio só pode verificar-se e, ao mesmo tempo, realizar-se como encontro do indivíduo com os seus companheiros». (Martin Buber)
Martin Buber e Emmanuel Lévinas protagonizaram uma viragem na interpretação da existência humana, que, apesar de ser devedora da ontologia fundamentalde Heidegger, rompe com a sua noção de "existência monológica": "o homem não pode fazer-se inteiramente homem mediante a sua relação consigo próprio, mas somente graças à sua relação com outro homem" (Buber). A existência monológica é substituída pela existência dialógica: o "estar-dois-em-recíproca-presença" realiza-se e reconhece-se unicamente no encontro do homem com o homem, do eu com outrem (tu) e o Outro (Deus). Inicialmente denominado personalismo (E. Mounier), o pensamento dialogal (M. Scheler, F. Ebner, M. Buber, A. Brunner) confere a primazia à relação com o outro e, no caso de Lévinas, confere superioridade ao tu em relação ao eu, revelada na epifania do rosto. Para Buber, o problema antropológico emerge nas épocas históricas de crise de confiança, quando o homem perde o seu clima familiar e a segurança que tinha desfrutado até esse momento de crise, e quando o mundo e a sua posição no mundo se tornam problemáticos. A crise de confiança leva-o, nesses momentos de perda e de insegurança, a colocar a pergunta sobre si mesmo, sobre o seu ser pessoal e sobre o sentido da vida. Buber destaca dois factores que contribuíram para a maturação do problema antropológico: a dissolução progressiva das velhas formas orgânicas da convivência humana directa (1) e a relação do homem com as novas coisas e circunstâncias que surgiram como resultado, directo ou indirecto, da sua própria acção (2). O primeiro factor contribuiu para o aumento da solidão humana: o homem perdeu o sentimento de estar hospedado no mundo e o sentimento da segurança cosmológica que lhe eram garantidos pelas anteriores formas orgânicas de sociabilidade. A perda de segurança sociológica, isto é, de um lar na vida e no mundo, desencadeou o sentimento de abandono total e de solidão. O segundo factor fez do homem um "resíduo" atrás das suas obras técnicas, económicas e políticas: o homem deixou de dominar o mundo que criou e, por isso, experiencia torpeza e fracasso de alma. Edmund Husserl enunciou três proposições que clarificam o problema antropológico, sem o ter tratado de modo directo e exaustivo: o maior fenómeno histórico é a humanidade que luta pela sua própria compreensão (1); o homem converte-se em problema filosófico quando se encontra em questão como ser racional (2); e o homem somente é homem nas entidades humanas vinculadas generativa e socialmente (3). Com excepção de Alfred Schutz, o trabalho antropológico da escola fenomenológica (Scheler, Heidegger) encarou estas conexões sociais como um obstáculo contra o qual as pessoas tropeçam para chegar ao seu próprio eu verdadeiro ou autêntico. Buber retoma a terceira proposição de Husserl para mostrar que a essência do homem não se encontra nos indivíduos isolados: a união da pessoa humana com a sua genealogia e com a sua sociedade é fundamental para compreender a essência do homem.
Martin Buber. A antropologia filosófica de M. Buber destaca fundamentalmente a estrutura dialogal ou interpessoal do homem e, contra a redução radical do homem a uma única dimensão, a relação com as coisas (Ich-Es), afirma a outra dimensão, a relação do homem com o outro homem (Ich-Du). Estas duas relações são caracterizadas, respectivamente, como experiência (Erfahrung) ou saber e encontro (Begegnung) ou diálogo. Arelação do eu com o tu constitui a relação por excelência, o primum cognitum de toda a antropologia filosófica. A filosofia de Buber mais não faz do que clarificar estas duas dimensões relacionais do homem. A relação com o mundo material desenvolve-se como uma relação senhor/escravo e é dominada pela prática e pela vontade de dominar o mundo que a orienta. Dado ser passiva, a matéria não é conhecida em si mesma e, por isso, não entra directamente na experiência: a experiência não é a realidade que medeia entre o homem e a coisa, mas a realidade que se encontra no homem, do qual provém todo o sentido. O ser do mundo tem de se submeter aos significados que lhe são atribuídos pelo homem.
A relação com o tu é anterior à relação com o mundo e desenrola-se de modo completamente independente. Cada eu tem uma relação com o outro (o tu) e esta relação caracteriza-se pela imediatez: o outro está imediatamente presente, sem qualquer mediação conceptual ou outra. O tu é completamente diferente da coisa: está subtraído ao modelo senhor/escravo, ou seja, não está submetido ou dependente do eu. Buber exclui o domínio do eu sobre o tu e do tu sobre o eu: o encontro do eu e do tu não é, como sucede em Sartre, conflitual, na medida em que os dois pólos equivalentes da relação se constituem reciprocamente um ao outro. No encontro com o outro, o homem torna-se autenticamente eu e o outro, autenticamente tu. O espaço ou o horizonte da relação entre pessoas não é o mundo, mas o espaço interpessoal (o zwischen). Contra o idealismo, Buber elege, em vez da subjectividade, o encontro das pessoas, o intersubjectivo que se constitui na relação eu e tu, como o verdadeiro ser, e esta relação interpessoal está ligada a Deus criador que doa ao homem o ser. Isto significa que o encontro com o tu é também o caminho para Deus e que a relação interpessoal abre-se, integrando-a, a relação com o Tu absoluto. O tu é um mistério inefável que não pode ser submetido à experiência científica. Não sendo objecto, não está disponível e não pode ser conhecido plenamente: impõe-se como mistério inefável e reflecte no seu ser o parentesco com Deus. Na distinção entre os dois tipos de relação, Buber coloca o humano inteiramente na relação do eu com o tu, sendo impedido de ver que a relação com as coisas pertence à dimensão interpessoal.
Emmanuel Lévinas. A antropologia filosófica de Lévinas pode ser lida como uma crítica radical da egologia baseada no cogito de Descartes, contra a qual afirma a primazia do outro como verdade fundamental do homem e como o lugar das suas dimensões metafísicas e religiosas: "a metafísica é ética". A interpretação do homem fundada no cogito e na orientação para o mundo material está marcada pela "vontade de poder" e viciada pelo mito da totalidade. A antropologia egológica pode ser caracterizada a partir de quatro níveis. Ao nível do conhecimento, procura reduzir toda a realidade à razão explicativa: a realidade é constituída pela razão e conhecê-la significa reduzir todas as coisas à unidade do sistema racional pensado pelo ego, de modo a eliminar toda a alteridade e a expandir o domínio do eu sobre a totalidade da realidade. Ao nível ético, predomina a ideia de afirmação de si mesmo: o eu realiza-se a si mesmo, afirma-se à custa dos outros, utiliza os outros como meios e, deste modo, converte-se em legislador de si mesmo, submetendo tudo ao tribunal da sua razão soberana. Ao nível social e político, a ideia de soberania do ego e a sua orientação para o mundo implica a ideia de imperialismo: a razão soberana do ego engendra a guerra que visa alargar e globalizar o seu próprio poder económico, político e militar sobre os outros, eliminando-os e sujeitando-os aos seus próprios objectivos. Ao nível metafísico e religioso, ignora o verdadeiro encontro com o outro e fecha-se na história, não deixando espaço para a transcendência e atrofiando a dimensão metafísica: a concepção imanentista conduz ao ateísmo. Em todos estes níveis, a egologia coloca no centro a totalidade e, deste modo, sacrifica os indivíduos, submetendo-os ao sistema do ego auto-suficiente que privilegia a sua relação com o mundo na realização de si mesmo.
A antropologia interpessoal de Lévinas é uma antropologia da alteridade: a primazia que concede ao outro implica a certeza do outro como outro que se impõe com a sua própria força, introduzindo o homem numa experiência metafísica e religiosa (1), e o reconhecimento do outro, não somente ao nível da intimidade e da privacidade, mas fundamentalmente ao nível ético e objectivo (2): o outro deve ser reconhecido no mundo pelo facto de ser constitutivamente um ser indigente e necessitado. O outro revela-se na epifania do rosto e a sua presença é totalmente distinta da existência das coisas objectivas, no sentido de irromper por si mesmo na minha existência, sem que tenha sido constituído previamente pela minha razão e, portanto, inserido na totalidade racional. A epifania do rosto é a presença imediata do outro como absolutamente outro, que, impondo-se por si mesmo, rompe a tentativa de o reduzir a uma forma de totalidade. O reconhecimento do outro implica o reconhecimento concreto do outro no mundo, na medida em que a nudez do seu rosto é a presença do ser indigente e necessitado neste mundo. A nudez do rosto é toda a humanidade e simboliza a condição humana: todos os seres humanos desejam "ser alguém" frente aos outros e ser tratados como tais. A sua presença afecta a existência e eleva as relações interpessoais acima da esfera íntima e privada. O reconhecimento do outro no mundo é reconhecimento objectivo, não só no sentido da justiça, mas também no sentido do amor e da bondade. Porém, o outro é aquele que me olha de cima e que exige e tem direito a exigir. A relação do eu com o outro revela uma assimetria fundamental: a superioridade do tu em relação ao eu. Além disso, a relação interpessoal é o lugar onde se manifesta o absolutamente outro, ou seja, Deus, porque a exigência do outro, a sua presença soberana, é algo transcendente e absoluto, que supera a sua vontade arbitrária. Encontrar-se cara a cara com o próximo é encontrar-se perante Deus, que exige ser reconhecido na exigência de reconhecimento objectivo do outro: "A dimensão divina abre-se a partir do rosto do outro" (Lévinas).
O rosto na sua expressão convoca, rompendo-o, no ser-aí humano preocupado com o seu ser-no-mundo, o eu responsável pelo outro: "A morte do outro homem diz-me respeito e questiona-me como se eu me tornasse, pela minha eventual indiferença, o cúmplice desta morte invisível ao outro que aí se expõe; e como se, antes de ser eu mesmo votado a ele, tivesse de responder por esta morte do outro e não deixar outrem só, na sua solidão mortal. É precisamente neste chamamento da minha responsabilidade pelo outro que me convoca, me suplica e me reclama, é neste questionamento que outrem é próximo" (Lévinas). Lévinas procura entender o sentido da morte, não a partir da morte própria ou da angústia da morte própria, mas a partir do "inter-humano" ou da socialidade, isto é, na proximidade do outro homem, cujo rosto apela à "minha responsabilidade pela morte de outrem". "O eu é, como dizia Pascal, detestável", no sentido de ser "a própria crise do ser do ente no humano" (Lévinas). Quando o eu é ser na primeira pessoa, afirmando o seu ser e tendo de responder unicamente pelo seu direito de ser, o seu ser-no-mundo ou o seu "lugar ao sol" mais não são do que usurpações dos lugares que pertencem aos outros. Estas usurpações reduzem os outros à condição de oprimidos, repelidos, excluídos, exilados, despojados, mortos, ou de reduzidos à fome, e expulsam-os para um "terceiro mundo": o eu usurpa toda a Terra e realiza-se como violência ou assassinato, ocupando o lugar dos outros. A actual crise financeira e económica revela a natureza dessa usurpação da Terra, mediante a qual os eus corruptos de colarinho-branco condenam a maioria dos seres humanos à miséria e à pobreza. O poder começa onde o conhecimento apreende o indivíduo que existe sozinho, não na sua singularidade, mas na sua generalidade: a rendição das coisas exteriores à liberdade humana significa, além da sua compreensão, a sua apropriação, porque "só na posse o eu conclui a identificação do diverso. Possuir é manter a realidade desse outro que se possui, mas suspendendo precisamente a sua independência. Numa civilização reflectida pela filosofia do Mesmo, a liberdade cumpre-se como riqueza. A razão que reduz o outro é uma apropriação e um poder" (Lévinas). A concepção do "morrer por um outro" de Lévinas rompe com a ontologia heideggeriana do Dasein, na medida em que este ainda conserva a "estrutura do Eu". Para Heidegger, a morte é "poder ser o mais próprio", o "mais autêntico", e dissolução de todas as relações com outrem: "A possibilidade de se aniquilar é precisamente constitutiva do Dasein, e mantém assim a sua ipseidade. Esse nada é uma morte, isto é, a minha morte, a minha possibilidade (da impossibilidade), o meu poder. Ninguém me pode substituir para morrer. O instante supremo da resolução é solitário e pessoal" (Lévinas). Nesta perspectiva da autenticidade (Adorno), o morrer por um outro surge como um mero sacrifício. Ora, a relação com outrem, na qual a morte do outro preocupa o ser-aí humano, sem reconduzir à sua morte própria, indica "um além" (ou "um antes") da ontologia, e revela, ao mesmo tempo, "uma responsabilidade pelo outro": "A prioridade do outro sobre o eu, pela qual o ser-aí humano é eleito e único, é precisamente a sua resposta à nudez do rosto e à sua mortalidade" (Lévinas). A morte é, para cada um de nós, "o impossível abandono de outrem à sua solidão" e a "proibição desse abandono dirigido a mim". O temor pela morte do outro é o meu temor, mas um temor que não retorna à angústia pela minha morte: morrer por outrem e a morte do outro têm prioridade sobre a morte autêntica.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Soares dos Reis: O Desterrado

Aurélia de Sousa: Auto-retrato, 1900

Simão César Dórdio Gomes: Dois banhistas à beira do Douro, 1928

René Magritte: La añoranza, 1940

Prós e Contras: É preciso mudar a Constituição?

Prós e Contras debateu hoje (20 de Setembro) a proposta de Revisão Constitucional do PSD. Jorge Lacão (Ministro dos Assuntos Parlamentares do PS) e Miguel Macedo - os eternos amantes aqui representados pelo quadro de René Magritte - discutiram essa proposta com Mota Soares (CDS-PP), Luís Fazenda (BE) e António Filipe (PCP). Os participantes são supostamente políticos profissionais, mas o debate que realizaram não foi propriamente político: a utilização deste quadro de Magritte para representar o eterno namoro entre o PSD e o PS vem reforçar o ideia de que, em Portugal, a política perdeu o rosto, convertendo-se no seu oposto: um jogo sujo de bastidores, colocado ao serviço de interesses privados, que se manifesta no espaço público através da produção sistemática de mentiras. Nesta situação de ofuscamento total, ser político significa enganar o eleitorado e, deste modo, conquistar o poder político, não para servir o país, mas para ter acesso fraudulento aos recursos nacionais. O Estado Português foi capturado por um bando de máfias que usam o poder para enriquecer privadamente: a corrupção está instalada, sendo promovida pelos partidos do poder. Infelizmente, o povo português é um povo imbecilizado: a escola introduzida depois do 25 de Abril gera activamente imbecis diplomados. A pobreza de Portugal já não é apenas pobreza material; é também pobreza mental e cognitiva: as máfias que se apropriam dos recursos nacionais, distribuindo-os pelos familiares e amigos, colocaram intencionalmente o povo na dependência da necessidade. A imbecilização do povo garante-lhes a sua permanência fraudulenta no poder.
Portugal não precisa mudar de Constituição; Portugal precisa mudar de políticos e de partidos políticos. O Estado de Direito é, em Portugal, uma figura de retórica, porque, a partir do momento em que o poder político foi capturado pelas máfias nacionais, o Direiro foi abolido: as máfias nacionais sediadas em Lisboa fazem as leis à medida dos seus interesses corporativos e privados e são elas que as executam ou fazem executar. O bloco central que se apropriou do poder nacional em todas as frentes bloqueia a sociedade portuguesa: a contra-revolução está instalada no poder político e a proposta de revisão constitucional do PSD visa dar-lhe expressão constitucional, protegendo os interesses instalados contra o interesse nacional. O neoliberalismo do PSD - que já vem do tempo dos governos de Cavaco Silva - é, preventivamente, contra-revolucionário. O PSD abusa da "social-democracia" para enganar o eleitorado, sacando-lhe perversamente o voto, mas na realidade o que pretende é demolir o Estado Social. Como disse Luís Fazenda, o discurso da falência do Estado Social é uma grande mentira: as privatizações propostas pelo PSD visam fazer o Estado pagar a privados o fornecimento de serviços públicos. O PSD usa o discurso do colapso do Estado Social (Miguel Macedo) para amedrontar um povo pobre e imbecilizado: o seu verdadeiro objectivo político é fazer o Estado financiar os privados - os seus membros destacados, de modo a garantir a perpetuação do sistema vigente que concentra a riqueza nacional em poucas mãos, promovendo as desigualdades sociais (António Filipe). Mota Soares (CDS) - o potencial parceiro de coligação do PSD - desmistificou esse interesse oculto na proposta do PSD: retirar o socialismo da Constituição e colocar lá o neoliberalismo. Porém, o neoliberalismo do PSD não é verdadeiramente liberal: as privatizações dos serviços de saúde e de ensino, bem como a flexibilização do código de trabalho e a manipulação partidária da justiça, visam reforçar o status quo e os privilégios perversos das máfias nacionais. Infelizmente, o PS que está envolvido nessa rede de corrupção vai alinhar nesse golpe de Estado constitucional: Portugal não tem futuro enquanto for governado por estas máfias que capturaram o poder nacional em proveito próprio. A noção de Estado Social precisa ser efectivamente reavaliada e reequacionada, mas não acredito que as elites nacionais do poder tenham competência para levar a cabo essa análise profunda dos bloqueios estruturais que negam o futuro a Portugal. Vejo apenas corrupção, violência, miséria, pobreza, exploração brutal, denúncia pidesca, estupidez, medo, inveja e muita indigência mental e cognitiva: o povo português é amante de fórmulas totalitárias. E, de facto, sem uma ditadura pedagógica, não podemos libertar o futuro e restituir a humanidade aos portugueses que se identificam com os bois.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Prós e Contras: Decepção e Expectativa


Prós e Contras - o debate da RTP1 moderado por Fátima Campos Ferreira - discutiu ontem (13 de Setembro) o caso Carlos Queiroz e o futuro da Federação Portuguesa de Futebol. Escolhi um quadro de José Malhoa - Os Bêbados - para ilustrar a situação debatida pelos intervenientes: o alvo do meu desprezo dialéctico não são os intervenientes, mas sim Portugal medíocre, corrupto, invejoso e malvado. Depois de ter escutado as declarações recentes dos dirigentes do Benfica, as quais carecem de fundamentos reais e objectivos, identifiquei imediatamente a raiz do mal radical do futebol nacional: o fascismo de secretaria que persegue o mérito e a competência. Tenho cada vez mais vergonha de ter nascido português: Portugal - a terra das elites malditas - mete nojo!
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Georg Lukács: Teoria Estética

Georg Lukács (1885-1971) foi inegavelmente um dos maiores filósofos do século XX, não só por ter sido o pai do marxismo ocidental que nos ensinou os princípios da crítica dialéctica, mas sobretudo por ter lutado contra o obscurantismo que se instalou na Filosofia contemporânea e que conduziu já no nosso tempo indigente à liquidação da realidade e dos sonhos diurnos de emancipação da humanidade. O realismo crítico que defendeu contra a sua dissolução modernista procurou manter viva a integridade do passado, de modo a garantir uma continuidade dialéctica com a melhor tradição do pensamento ocidental. Lukács não rompe com a herança da humanidade, visto que acredita na evolução da humanidade orientada para a humanização do homem, não de um modo puramente mecanicista e economicista que dispensa a acção consciente e livre do homem, mas sim de um modo voluntário que resulta da acção livre do homem dentro do quadro das condições objectivas geradas pela evolução social. Para Lukács, o processo histórico é influenciado não só pelo desenvolvimento objectivo da totalidade social, mas também pela acção livre do homem individual. E foi esta confiança no homem e na sua capacidade de superar a alienação que o levou a aderir ao socialismo democrático ou social-democracia.
A Estética do Jovem-Lukács (Die Seele und die Formen/ A Alma e as Formas, 1911). A estética do jovem Lukács inscreve-se na estética clássica: as formas literárias são a expressão de determinados conteúdos psíquicos. A tarefa do ensaísta e do crítico é ligar cada forma ao conteúdo psíquico que lhe corresponde e, inversamente, todo o conteúdo psíquico à forma que o exprime de uma maneira exaustiva. Dominado pelo problema da vida autêntica oposta à vida concreta e quotidiana e pelo problema do limite, da morte e da sua significação para a vida do homem, Lukács elabora a sua teoria da tragédia: a vida humana é necessariamente trágica, porque o homem não pode realizar o absoluto. A única grandeza que lhe é acessível reside na consciência desse limite e na solicitude radical que ela implica. Apesar de ser neokantiano, o jovem Lukács aproxima-se muito das temáticas existenciais, mais tarde explicitadas por Heidegger, Jaspers e Sartre, como o demonstra o ensaio dedicado a Kierkegaard e a paixão que nutre, neste período, por Fiódor Dostoiévski. No Prefácio de 1962 da Teoria do Romance, onde renega as suas obras de juventude, Lukács escreve estas palavras muito esclarecedoras: «Para o autor da Teoria do Romance, Kierkegaard desempenhou sempre um papel importante. Muito antes deste estar em moda, tinha ele consagrado um ensaio às relações entre a vida e o pensamento em Kierkegaard ("A Quebra da Forma em Contacto com a Vida: Sören Kierkegaard e Regine Olsen", 1909, incluído nesta obra.). E, nos anos que precederam imediatamente a guerra, iniciara em Heidelberg um trabalho - que ficou inacabado - sobre a crítica de Hegel por Kierkegaard. Se lembramos aqui estes factos, não é de modo algum preocupados com a simples precisão biográfica, mas para referir uma tendência que viria a tomar posteriormente uma grande importância na evolução do pensamento alemão. A influência directa de Kierkegaard conduziu sem dúvida ao existencialismo de Heidegger e de Jaspers, por consequência a uma posição de hostilidade mais ou menos aberta em relação a Hegel».
A Estética de Heidelberg (1912-16). Lukács procura assegurar a autonomia radical do estético e a sua forma de validade, delimitando-a - a esfera estética - da esfera teórica e da esfera da prática e da realidade diária. No objecto estético, a coincidência da forma vivencial do sujeito e da forma da obra de arte é de tal modo adequada que o conteúdo das obras acaba por ser extinto. Lukács preconiza assim um esteticismo absoluto, que revela na obra de génio uma harmonia pré-estabelecida da forma vivencial e da forma estética, e na diferenciação entre o sujeito da experiência estética e o sujeito da experiência da realidade diária, a transformação do homem da realidade vivencial em homem total, o sujeito normativo da estética concebido como uma espécie de processo de estilização.
Max Weber saudou a publicação desta bela obra de Lukács - Die Theorie des Romans, 1916 - como o início da sociologia das formas literárias, onde Lukács analisa os diversos géneros literários - o épico, a lírico e o romanesco, interpretando-os do ponto de vista mais elevado da filosofia da história (Karl Mannheim). Lukács estuda basicamente duas formas épicas - a epopeia e o romance, e como forma de transição entre elas A Divina Comédia de Dante Alighieri. A epopeia é a forma literária que exprime a adequação absoluta e perfeita entre o homem e o universo, enquanto o romance reflecte a ruptura entre o homem e o universo social: «O romance é a forma da virilidade amadurecida, por oposição à infantilidade normativa da epopeia. /O romance é a epopeia de um mundo sem deuses: a psicologia do herói romanesco é demoníaca, a objectivação do romance, a viril e a madura constatação de que nunca o sentido poderia penetrar de lado a lado a realidade e que, portanto, sem ele, esta sucumbiria ao nada e à inessencialidade. Todas estas formas vêm a dar no mesmo: Caracterizam os limites produtivos impostos de dentro às virtualidades estruturantes do romance, ao mesmo tempo que remetem sem equívocos para o instante histórico-filosófico em que são possíveis os grandes romances, em que eles se tornam aptos a simbolizar o essencial do que há para dizer. O espírito do romance é a virilidade amadurecida, e a sua estrutura característica, o seu modo descontínuo, o corte que implica entre a interioridade e a aventura. /O carácter estranho desta natureza - o universo social - relativamente à primeira, (mais não é do que) a projecção da experiência que ensina ao homem que o mundo ambiente que ele mesmo criou não é para ele um lar, mas uma prisão. /Mundo contingente e indivíduo problemático são realidades que se condicionam uma à outra» (Lukács).
Para o jovem Lukács, a quintessência do humano reside no carácter trágico da vida: a experiência trágica é a única experiência possível que permite ao homem colocar-se como totalidade não extensiva mas intensiva, não empírica mas simbólica, não material mas formal. Por causa da inadequação entre a vida e a obra, o homem precisa abandonar a vida numa espécie de suicídio espiritual, para que nasça a obra, porque é somente na esfera do estético que se encontra o salvamento do naufrágio na mutiplicidade caótica da vida diária, como manifestação do desejo de converter o memento morigoetheano em memento vivere. A salvação pelo estético passa pelo apego à forma num mundo abandonado por Deus e carente da manifestação espontânea do ser: o apego à forma permite ao homem trágico enganar a vida e, num só e mesmo movimento, renunciar à totalidade extensiva num gesto de desprendimento quase místico - a mais sublime forma de vida -, pelo qual se reencontra a vida autêntica e se logra a instalação definitiva na totalidade intensiva. O estético enquanto escudo protector da multiplicidade caótica da vida permite ao homem transcender o círculo do trágico e procurar no utópico a essência do humano. O anticapitalismo romântico que move o jovem Lukács leva-o à ideia da necessidade de superar o sistema capitalista através de uma ética de Esquerda, que se abriga e se refugia nas proximidades do revolucionarismo interior de Dostoiévski. Dada a inadequação entre a alma e as formas, o homem é um ser essencialmente problemático, que procura desesperadamente a unidade. No mundo empírico, entregue à mudança permanente, à multiplicidade e às mil e uma aparências, a arte enquanto permanência, unidade e manifestação da essência é a antecipação utópica da conciliação entre a forma e a vida, que permite ao homem problemático cosmizar o caos e restaurar a ordem perdida. Deste modo, graças à unidade sincrónica e diacrónica que descobre na arte, o homem pode orientar-se no caos da multiplicidade empírica, sem ser contaminado pela época da pecaminosidade consumada. Expulso da totalidade fechada do mundo antigo, o homem moderno é forçado a dar forma à totalidade oculta a partir da sua própria subjectividade: o romance é a forma adequada a que recorre para expressar a sua problematicidade e a necessidade de dar sentido ao mundo exterior a partir do seu próprio mundo interior. O romance é precisamente a expressão da busca da totalidade aberta e latente num mundo abandonado por Deus, isto é, num mundo em que o sentido da vida se tornou problemático. Assim, ao contrário do herói da epopeia que se inseria na totalidade fechada e patente sem fricções e atritos, o homem problemático é obrigado a construir a totalidade e a dar-lhe um sentido. Porém, a descoberta do sentido do mundo caótico na arte não é suficiente para satisfazer o homem problemático: ele precisa construir o seu próprio cosmos, retirando-se do mundo externo para formar uma comunidade sem janelas para o exterior. O retiro - tentado por Lukács e por alguns amigos numa comunidade mista de vida, localizada nas proximidades de Heidelberg - revela desde logo a impossibilidade de encontrar uma solução para a possibilidade humana dentro das formas burguesas de vida: o retiro enquanto solução utópica das contradições da sociedade burguesa implica uma renúncia a intervir activamente na mudança da ordem social estabelecida, e, neste sentido, constitui o último refúgio do individualismo burguês perante a agudização das contradições antagónicas da sociedade de classes. A vida em reclusão pode ajudar o indivíduo a realizar-se nos momentos em que o caos exterior ameaça mergulhá-lo nas suas águas turbulentas, mas deixa o mundo exterior entregue aos seus caprichos e às suas contradições sociais. O eticismo de Dostoiévski está por detrás desta solução utópica de Lukács: a concepção de Dostoiévski do alargamento da alma até à amplitude cósmica - como ordem profunda que rejeita o casual - é uma resposta ao rompimento moderno da dualidade eu-mundo, que exige a ajuda recíproca e a cooperação entre os homens. Os homens devem ajudar-se uns aos outros na tarefa da realização da sua humanidade. Porém, como observa Lukács, a relação entre os homens não é um mero estar-com-os-outros, mas sim ser-com-os-outros, porque somente o ser-em-relação permite a manifestação da essência atemporal da alma como ligação supratemporal de duas almas. Situar-se na realidade alma - nas relações que unem as almas umas com as outras - implica o desprendimento de todas as conexões sociais e de todos os laços que ligam o homem à sua situação social. O homem capaz de operar este desprendimento de tudo aquilo que não é essencial à vida autêntica conquista a sua verdadeira pátria: a revolução interior era, para Dostoiévski e o jovem Lukács, o único caminho que permitia ao homem salvar-se enquanto homem humano num mundo que dificulta a revolução das estruturas sociais. Anticapitalismo romântico e utopismo salvífico implicam-se reciprocamente
A Estética da Maturidade (Ästhetik: Die Eigenart des Ästhetischen, 1963). Decorreram cinquenta anos entre a Estética de Heidelberg e a publicação da primeira parte da Estética de Lukács, mas esta enorme distância que as afasta no tempo não eclipsa a proximidade na abordagem e no quadro conceptual que as une, apesar da primeira estar fortemente marcada pela filosofia kantiana e pelo vitalismo. As duas obras procuram apreender a peculiaridade do estético, delimitando a esfera estética em relação à vida quotidiana - a anterior realidade vivencial - e à esfera do conhecimento científico. Além disso, ambas as obras estão próximas nas soluções propostas quando destacam a unidade ou a identidade entre sujeito e objecto: Lukács defende que as categorias da filosofia idealista encontram na arte - e não na realidade objectiva - o seu objecto apropriado de aplicação e de validade. A distinção entre trabalho e produção artística ajuda Lukács a definir a peculiaridade do estético: enquanto no trabalho a unidade de sujeito e de objecto está presente unicamente como princípio unificador do próprio processo de trabalho, na produção artística ela adquire a sua própria objectividade, tanto no próprio acto como na necessidade social que o suscita. Por outras palavras, no trabalho não há verdadeiramente unidade entre sujeito e objecto: a unidade afecta apenas as obras de arte, vistas como produtos da actividade humana que a objectivam, a conservam, a fixam e a eternizam. A teoria estética de Lukács articula-se intimamente com a experiência moderna da alienação, sem a qual não pode ser compreendida: a divisão social do trabalho tornou de tal modo impossível a realização do homem no trabalho que surgiu a necessidade de experimentar a própria existência como algo dotado de sentido e capaz de assegurar a unidade ou a reconciliação do indivíduo e do mundo. Mas, para que a arte possa assumir a unidade representada do homem e do mundo, é necessário que a religião tenha perdido, em grande medida, a sua pretensão de validez. Lukács recusa a equivalência hegeliana entre arte autónoma e religião e, para reclamar a peculiaridade do estético, converte a questão da unidade da experiência humana - que animou o pensamento ocidental durante o período de transição da sociedade feudal à sociedade burguesa - numa necessidade intemporal do estético. O conceito de fetichismo da mercadoria, aplicado por Marx a uma determinada formação social e histórica, é ampliado de modo supra-histórico por Lukács: a arte assume assim uma missão desfetichizadora, isto é, um papel de regulador ou de médico de determinadas doenças do progresso e do processo de modernização. O poder cego do irracional é fomentado quando a racionalidade se fecha às experiências que dão acesso à vida reconciliada do homem: a função da arte é neutralizar os efeitos secundários e não desejados do processo de modernização que Lukács equipara ao progresso e à humanização. Os princípios da crítica dialéctica descobertos por Lukács não foram aplicados às categorias da estética idealista, talvez devido ao facto de ter recusado compreender as artes de vanguarda como movimentos históricos que modificaram o próprio conceito de arte.
Antropologia, Ontologia e Estética. Ontologia do Ser Social (1971) e Prolegómenos à Ontologia são duas obras de Lukács que foram sistematicamente ignoradas, bem como a sua Ética que não chegou a concluir. Em vez de tentar uma exposição sistemática da ontologia do ser social, vou apresentá-la à luz da reflexão antropológica de Lukács. Apesar de ser oriundo de uma família de banqueiros judeus agraciada com um título nobiliárquico, Lukács nutriu sempre, desde a juventude, um ódio romântico pelo capitalismo, que, no seu período marxista, assume a forma de uma luta contra a coisificação do homem e a desumanização produzidas pela sociedade capitalista. Para Lukács, o proletariado era a única classe revolucionária capaz de operar a passagem da humanidade da pré-história para a história, isto é, do reino da necessidade para o reino da liberdade (Marx): o postulado utópico da ética marxista só pode realiza-se quando os homens forem capazes de recusar a manipulação e de criar uma nova totalidade social que lhes permita a realização plena de todas as suas possibilidades humanas. Mas, para que isso aconteça, é necessário impulsionar deliberada e resolutamente o processo de humanização do homem através do trabalho, da crítica dialéctica e da luta política. Lukács sabia que o futuro não estava garantido: as condições objectivas podem conduzir tanto à realização plena da humanização da humanidade como à sua máxima desumanização. A construção socialista de um futuro novo, liberto da alienação e da opressão, depende dos seres humanos e da sua capacidade de escolher entre as diversas alternativas que a realidade objectiva lhes apresenta. O homem individual é também uma totalidade e, tal como a sociedade em que se insere, encontra-se reificado e fragmentado: a sua tarefa revolucionária será restaurar a existência humana, dar a si próprio a totalidade perdida e reconstruir o ideal da humanidade do mundo clássico, de modo a operar a última e definitiva epifania do homem e a realizar em plenitude todas as suas possibilidades humanas. Dado ser a expressão da totalidade imanente, a arte autêntica desempenha um papel fundamental na restauração da existência genérica do homem total que foi mutilada e fragmentada pela sociedade de classes e na criação de uma pátria para o homem. (Secções retiradas daqui - Redescoberta de Georg Lukács.)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 7 de setembro de 2010

John Steuart Curry: Tornado over Kansas, 1929

John Steuart Curry: Baptism in Kansas, 1928

Thomas Hart Benton: Cut the Line, 1944

Thomas Hart Benton: People of Chilmark, 1920

Grant Wood: Death on Ridge Road, 1935

Grant Wood: American Gothic, 1930

Grant Wood: Stone City, Iowa, 1930

Prós e Contras: A Sentença

Com o reinício dos debates Prós e Contras retomo a actividade aqui no blog depois de dois meses de repouso quase absoluto. O debate de hoje (6 de Setembro) foi dedicado ao processo Casa Pia, que, após oito longos anos, chegou ao fim, com a leitura para o mundo da sumula que condenou seis arguidos com penas exageradas que vão até aos 18 anos de cadeia. A sentença propriamente dita só será conhecida na próxima quarta-feira: quer dizer que os convidados - Marinho Pinto, Rui Rangel, José Manuel Fernandes e Daniel Oliveira, entre outros - estiveram a discutir uma sentença que ainda não é conhecida, nem pelo público em geral, nem pelos próprios condenados. Em Portugal, todos julgam e condenam sem conhecer os fundamentos reais e objectivos das penas aplicadas e, o que é muito importante neste caso, sem problematizar a noção jurídica de pedofilia que lhe deu forma e substância.
O caso Casa Pia soa a linchamento público: todos os casos mediáticos nacionais revelam a miséria da justiça portuguesa, cujas leis são usadas arbitrariamente para produzir "criminosos" e entregá-los ao julgamento de um público histérico, intoxicado pela estupidez da comunicação social portuguesa e vingativo. Rui Rangel e Manuel Fernandes parecem apreciar este tipo de (in)justiça portuguesa: a promiscuidade existente entre o poder judicial e a comunicação social está a minar a democracia portuguesa. Os juízes são jornalistas e os jornalistas são juízes: a sua linguagem é a da vingança e da calúnia, e o efeito activo deste jogo de linguagem é a recriação de um país de bufos pidescos. Em Portugal, para condenar uma pessoa não é preciso produzir provas reais e objectivas que comprovem o seu "crime"; basta "denunciar" e trazer essa denúncia para a praça pública. Marinho Pinto foi o único convidado suficientemente corajoso para apresentar este caso como resultado dessa necessidade de vingança das "vítimas": a comunicação social portuguesa fez dele uma vingança colectiva ou, nas palavras de Daniel Oliveira, uma caça às bruxas.
J Francisco Saraiva de Sousa