Georg Lukács (1885-1971) foi inegavelmente um dos maiores filósofos do século XX, não só por ter sido o pai do marxismo ocidental que nos ensinou os princípios da crítica dialéctica, mas sobretudo por ter lutado contra o obscurantismo que se instalou na Filosofia contemporânea e que conduziu já no nosso tempo indigente à liquidação da realidade e dos sonhos diurnos de emancipação da humanidade. O realismo crítico que defendeu contra a sua dissolução modernista procurou manter viva a integridade do passado, de modo a garantir uma continuidade dialéctica com a melhor tradição do pensamento ocidental. Lukács não rompe com a herança da humanidade, visto que acredita na evolução da humanidade orientada para a humanização do homem, não de um modo puramente mecanicista e economicista que dispensa a acção consciente e livre do homem, mas sim de um modo voluntário que resulta da acção livre do homem dentro do quadro das condições objectivas geradas pela evolução social. Para Lukács, o processo histórico é influenciado não só pelo desenvolvimento objectivo da totalidade social, mas também pela acção livre do homem individual. E foi esta confiança no homem e na sua capacidade de superar a alienação que o levou a aderir ao socialismo democrático ou social-democracia.
A Estética do Jovem-Lukács (Die Seele und die Formen/ A Alma e as Formas, 1911). A estética do jovem Lukács inscreve-se na estética clássica: as formas literárias são a expressão de determinados conteúdos psíquicos. A tarefa do ensaísta e do crítico é ligar cada forma ao conteúdo psíquico que lhe corresponde e, inversamente, todo o conteúdo psíquico à forma que o exprime de uma maneira exaustiva. Dominado pelo problema da vida autêntica oposta à vida concreta e quotidiana e pelo problema do limite, da morte e da sua significação para a vida do homem, Lukács elabora a sua teoria da tragédia: a vida humana é necessariamente trágica, porque o homem não pode realizar o absoluto. A única grandeza que lhe é acessível reside na consciência desse limite e na solicitude radical que ela implica. Apesar de ser neokantiano, o jovem Lukács aproxima-se muito das temáticas existenciais, mais tarde explicitadas por Heidegger, Jaspers e Sartre, como o demonstra o ensaio dedicado a Kierkegaard e a paixão que nutre, neste período, por Fiódor Dostoiévski. No Prefácio de 1962 da Teoria do Romance, onde renega as suas obras de juventude, Lukács escreve estas palavras muito esclarecedoras: «Para o autor da Teoria do Romance, Kierkegaard desempenhou sempre um papel importante. Muito antes deste estar em moda, tinha ele consagrado um ensaio às relações entre a vida e o pensamento em Kierkegaard ("A Quebra da Forma em Contacto com a Vida: Sören Kierkegaard e Regine Olsen", 1909, incluído nesta obra.). E, nos anos que precederam imediatamente a guerra, iniciara em Heidelberg um trabalho - que ficou inacabado - sobre a crítica de Hegel por Kierkegaard. Se lembramos aqui estes factos, não é de modo algum preocupados com a simples precisão biográfica, mas para referir uma tendência que viria a tomar posteriormente uma grande importância na evolução do pensamento alemão. A influência directa de Kierkegaard conduziu sem dúvida ao existencialismo de Heidegger e de Jaspers, por consequência a uma posição de hostilidade mais ou menos aberta em relação a Hegel».
A Estética de Heidelberg (1912-16). Lukács procura assegurar a autonomia radical do estético e a sua forma de validade, delimitando-a - a esfera estética - da esfera teórica e da esfera da prática e da realidade diária. No objecto estético, a coincidência da forma vivencial do sujeito e da forma da obra de arte é de tal modo adequada que o conteúdo das obras acaba por ser extinto. Lukács preconiza assim um esteticismo absoluto, que revela na obra de génio uma harmonia pré-estabelecida da forma vivencial e da forma estética, e na diferenciação entre o sujeito da experiência estética e o sujeito da experiência da realidade diária, a transformação do homem da realidade vivencial em homem total, o sujeito normativo da estética concebido como uma espécie de processo de estilização.Max Weber saudou a publicação desta bela obra de Lukács - Die Theorie des Romans, 1916 - como o início da sociologia das formas literárias, onde Lukács analisa os diversos géneros literários - o épico, a lírico e o romanesco, interpretando-os do ponto de vista mais elevado da filosofia da história (Karl Mannheim). Lukács estuda basicamente duas formas épicas - a epopeia e o romance, e como forma de transição entre elas A Divina Comédia de Dante Alighieri. A epopeia é a forma literária que exprime a adequação absoluta e perfeita entre o homem e o universo, enquanto o romance reflecte a ruptura entre o homem e o universo social: «O romance é a forma da virilidade amadurecida, por oposição à infantilidade normativa da epopeia. /O romance é a epopeia de um mundo sem deuses: a psicologia do herói romanesco é demoníaca, a objectivação do romance, a viril e a madura constatação de que nunca o sentido poderia penetrar de lado a lado a realidade e que, portanto, sem ele, esta sucumbiria ao nada e à inessencialidade. Todas estas formas vêm a dar no mesmo: Caracterizam os limites produtivos impostos de dentro às virtualidades estruturantes do romance, ao mesmo tempo que remetem sem equívocos para o instante histórico-filosófico em que são possíveis os grandes romances, em que eles se tornam aptos a simbolizar o essencial do que há para dizer. O espírito do romance é a virilidade amadurecida, e a sua estrutura característica, o seu modo descontínuo, o corte que implica entre a interioridade e a aventura. /O carácter estranho desta natureza - o universo social - relativamente à primeira, (mais não é do que) a projecção da experiência que ensina ao homem que o mundo ambiente que ele mesmo criou não é para ele um lar, mas uma prisão. /Mundo contingente e indivíduo problemático são realidades que se condicionam uma à outra» (Lukács).Para o jovem Lukács, a quintessência do humano reside no carácter trágico da vida: a experiência trágica é a única experiência possível que permite ao homem colocar-se como totalidade não extensiva mas intensiva, não empírica mas simbólica, não material mas formal. Por causa da inadequação entre a vida e a obra, o homem precisa abandonar a vida numa espécie de suicídio espiritual, para que nasça a obra, porque é somente na esfera do estético que se encontra o salvamento do naufrágio na mutiplicidade caótica da vida diária, como manifestação do desejo de converter o memento morigoetheano em memento vivere. A salvação pelo estético passa pelo apego à forma num mundo abandonado por Deus e carente da manifestação espontânea do ser: o apego à forma permite ao homem trágico enganar a vida e, num só e mesmo movimento, renunciar à totalidade extensiva num gesto de desprendimento quase místico - a mais sublime forma de vida -, pelo qual se reencontra a vida autêntica e se logra a instalação definitiva na totalidade intensiva. O estético enquanto escudo protector da multiplicidade caótica da vida permite ao homem transcender o círculo do trágico e procurar no utópico a essência do humano. O anticapitalismo romântico que move o jovem Lukács leva-o à ideia da necessidade de superar o sistema capitalista através de uma ética de Esquerda, que se abriga e se refugia nas proximidades do revolucionarismo interior de Dostoiévski. Dada a inadequação entre a alma e as formas, o homem é um ser essencialmente problemático, que procura desesperadamente a unidade. No mundo empírico, entregue à mudança permanente, à multiplicidade e às mil e uma aparências, a arte enquanto permanência, unidade e manifestação da essência é a antecipação utópica da conciliação entre a forma e a vida, que permite ao homem problemático cosmizar o caos e restaurar a ordem perdida. Deste modo, graças à unidade sincrónica e diacrónica que descobre na arte, o homem pode orientar-se no caos da multiplicidade empírica, sem ser contaminado pela época da pecaminosidade consumada. Expulso da totalidade fechada do mundo antigo, o homem moderno é forçado a dar forma à totalidade oculta a partir da sua própria subjectividade: o romance é a forma adequada a que recorre para expressar a sua problematicidade e a necessidade de dar sentido ao mundo exterior a partir do seu próprio mundo interior. O romance é precisamente a expressão da busca da totalidade aberta e latente num mundo abandonado por Deus, isto é, num mundo em que o sentido da vida se tornou problemático. Assim, ao contrário do herói da epopeia que se inseria na totalidade fechada e patente sem fricções e atritos, o homem problemático é obrigado a construir a totalidade e a dar-lhe um sentido. Porém, a descoberta do sentido do mundo caótico na arte não é suficiente para satisfazer o homem problemático: ele precisa construir o seu próprio cosmos, retirando-se do mundo externo para formar uma comunidade sem janelas para o exterior. O retiro - tentado por Lukács e por alguns amigos numa comunidade mista de vida, localizada nas proximidades de Heidelberg - revela desde logo a impossibilidade de encontrar uma solução para a possibilidade humana dentro das formas burguesas de vida: o retiro enquanto solução utópica das contradições da sociedade burguesa implica uma renúncia a intervir activamente na mudança da ordem social estabelecida, e, neste sentido, constitui o último refúgio do individualismo burguês perante a agudização das contradições antagónicas da sociedade de classes. A vida em reclusão pode ajudar o indivíduo a realizar-se nos momentos em que o caos exterior ameaça mergulhá-lo nas suas águas turbulentas, mas deixa o mundo exterior entregue aos seus caprichos e às suas contradições sociais. O eticismo de Dostoiévski está por detrás desta solução utópica de Lukács: a concepção de Dostoiévski do alargamento da alma até à amplitude cósmica - como ordem profunda que rejeita o casual - é uma resposta ao rompimento moderno da dualidade eu-mundo, que exige a ajuda recíproca e a cooperação entre os homens. Os homens devem ajudar-se uns aos outros na tarefa da realização da sua humanidade. Porém, como observa Lukács, a relação entre os homens não é um mero estar-com-os-outros, mas sim ser-com-os-outros, porque somente o ser-em-relação permite a manifestação da essência atemporal da alma como ligação supratemporal de duas almas. Situar-se na realidade alma - nas relações que unem as almas umas com as outras - implica o desprendimento de todas as conexões sociais e de todos os laços que ligam o homem à sua situação social. O homem capaz de operar este desprendimento de tudo aquilo que não é essencial à vida autêntica conquista a sua verdadeira pátria: a revolução interior era, para Dostoiévski e o jovem Lukács, o único caminho que permitia ao homem salvar-se enquanto homem humano num mundo que dificulta a revolução das estruturas sociais. Anticapitalismo romântico e utopismo salvífico implicam-se reciprocamenteA Estética da Maturidade (Ästhetik: Die Eigenart des Ästhetischen, 1963). Decorreram cinquenta anos entre a Estética de Heidelberg e a publicação da primeira parte da Estética de Lukács, mas esta enorme distância que as afasta no tempo não eclipsa a proximidade na abordagem e no quadro conceptual que as une, apesar da primeira estar fortemente marcada pela filosofia kantiana e pelo vitalismo. As duas obras procuram apreender a peculiaridade do estético, delimitando a esfera estética em relação à vida quotidiana - a anterior realidade vivencial - e à esfera do conhecimento científico. Além disso, ambas as obras estão próximas nas soluções propostas quando destacam a unidade ou a identidade entre sujeito e objecto: Lukács defende que as categorias da filosofia idealista encontram na arte - e não na realidade objectiva - o seu objecto apropriado de aplicação e de validade. A distinção entre trabalho e produção artística ajuda Lukács a definir a peculiaridade do estético: enquanto no trabalho a unidade de sujeito e de objecto está presente unicamente como princípio unificador do próprio processo de trabalho, na produção artística ela adquire a sua própria objectividade, tanto no próprio acto como na necessidade social que o suscita. Por outras palavras, no trabalho não há verdadeiramente unidade entre sujeito e objecto: a unidade afecta apenas as obras de arte, vistas como produtos da actividade humana que a objectivam, a conservam, a fixam e a eternizam. A teoria estética de Lukács articula-se intimamente com a experiência moderna da alienação, sem a qual não pode ser compreendida: a divisão social do trabalho tornou de tal modo impossível a realização do homem no trabalho que surgiu a necessidade de experimentar a própria existência como algo dotado de sentido e capaz de assegurar a unidade ou a reconciliação do indivíduo e do mundo. Mas, para que a arte possa assumir a unidade representada do homem e do mundo, é necessário que a religião tenha perdido, em grande medida, a sua pretensão de validez. Lukács recusa a equivalência hegeliana entre arte autónoma e religião e, para reclamar a peculiaridade do estético, converte a questão da unidade da experiência humana - que animou o pensamento ocidental durante o período de transição da sociedade feudal à sociedade burguesa - numa necessidade intemporal do estético. O conceito de fetichismo da mercadoria, aplicado por Marx a uma determinada formação social e histórica, é ampliado de modo supra-histórico por Lukács: a arte assume assim uma missão desfetichizadora, isto é, um papel de regulador ou de médico de determinadas doenças do progresso e do processo de modernização. O poder cego do irracional é fomentado quando a racionalidade se fecha às experiências que dão acesso à vida reconciliada do homem: a função da arte é neutralizar os efeitos secundários e não desejados do processo de modernização que Lukács equipara ao progresso e à humanização. Os princípios da crítica dialéctica descobertos por Lukács não foram aplicados às categorias da estética idealista, talvez devido ao facto de ter recusado compreender as artes de vanguarda como movimentos históricos que modificaram o próprio conceito de arte.
Antropologia, Ontologia e Estética. Ontologia do Ser Social (1971) e Prolegómenos à Ontologia são duas obras de Lukács que foram sistematicamente ignoradas, bem como a sua Ética que não chegou a concluir. Em vez de tentar uma exposição sistemática da ontologia do ser social, vou apresentá-la à luz da reflexão antropológica de Lukács. Apesar de ser oriundo de uma família de banqueiros judeus agraciada com um título nobiliárquico, Lukács nutriu sempre, desde a juventude, um ódio romântico pelo capitalismo, que, no seu período marxista, assume a forma de uma luta contra a coisificação do homem e a desumanização produzidas pela sociedade capitalista. Para Lukács, o proletariado era a única classe revolucionária capaz de operar a passagem da humanidade da pré-história para a história, isto é, do reino da necessidade para o reino da liberdade (Marx): o postulado utópico da ética marxista só pode realiza-se quando os homens forem capazes de recusar a manipulação e de criar uma nova totalidade social que lhes permita a realização plena de todas as suas possibilidades humanas. Mas, para que isso aconteça, é necessário impulsionar deliberada e resolutamente o processo de humanização do homem através do trabalho, da crítica dialéctica e da luta política. Lukács sabia que o futuro não estava garantido: as condições objectivas podem conduzir tanto à realização plena da humanização da humanidade como à sua máxima desumanização. A construção socialista de um futuro novo, liberto da alienação e da opressão, depende dos seres humanos e da sua capacidade de escolher entre as diversas alternativas que a realidade objectiva lhes apresenta. O homem individual é também uma totalidade e, tal como a sociedade em que se insere, encontra-se reificado e fragmentado: a sua tarefa revolucionária será restaurar a existência humana, dar a si próprio a totalidade perdida e reconstruir o ideal da humanidade do mundo clássico, de modo a operar a última e definitiva epifania do homem e a realizar em plenitude todas as suas possibilidades humanas. Dado ser a expressão da totalidade imanente, a arte autêntica desempenha um papel fundamental na restauração da existência genérica do homem total que foi mutilada e fragmentada pela sociedade de classes e na criação de uma pátria para o homem. (Secções retiradas daqui - Redescoberta de Georg Lukács.)
J Francisco Saraiva de Sousa
3 comentários:
A imagem é um quadro de Turner: A Erupção do Vesúvio. :)
Os portugueses quando confrontados com os seus conteúdos mentais e cognitivos despedaçam-se na hora: a educação é a maior falha de Portugal. E esta falha - a grande mentira nacional - vai levar o país à ruína.
O futuro de Portugal é debatido nos debates televisivos por pessoas-zombies - não têm experiência de vida.
Enterraram o país e agora querem ser salvadores - mas salvadores desgraçados. O povo vai empobrecer materialmente, porque cognitivamente já vive na pocilga.
Portugal é feio e malvado!
Enviar um comentário