«A dívida pública criou uma classe de capitalistas ociosos, enriqueceu, de improviso, os agentes financeiros que servem de intermediários entre o governo e a nação. As parcelas da sua emissão adquiridas pelos arrematantes de impostos, comerciantes e fabricantes particulares proporcionam-lhes o serviço de um capital caído do céu. Mas, além de tudo isso, a dívida pública fez prosperar as sociedades anónimas, o comércio com os títulos negociáveis de toda a espécie, a agiotagem, em suma, o jogo de bolsa e a moderna bancocracia». (Karl Marx)
«A crescente concentração da riqueza nas mãos de uns poucos. O esmagamento de muitos pequenos produtores pelos grandes produtores. A crescente miséria das massas. A ocorrência de colapsos periódicos no sistema - as crises, cada qual mais devastadora do que a outra. O trabalho cria, o capital apropria-se.» (Leo Huberman)
Este quadro de Edward Hopper - Sunday, 1926 - ajuda a esclarecer o que aí vem: a Grande Depressão de 1929 não só marcou a pintura de Hopper, como também foi lembrada hoje no debate moderado por Fátima Campos Ferreira. O Prós e Contras de hoje (29 de Novembro) confrontou algumas visões da nossa economia em risco: Henrique Medina Carreira, Daniel Oliveira, João Confraria, José Castro Caldas, João Ferreira do Amaral e Miguel Morgado deram voz a diversas perspectivas económicas, sem no entanto conseguirem encaixar a economia numa teoria crítica da sociedade. Ora, na ausência de uma teoria da sociedade, não é possível transcender a crise económica que mergulha Portugal no abismo da bancarrota e a Europa na desagregação: o libertário Daniel Oliveira aceita aquilo que supostamente critica - o neoliberalismo. Contra Medina Carreira que defendeu a neutralidade mágica dos números, Daniel Oliveira afirmou - e com absoluta razão - que uma discussão económica é sempre uma discussão ideológica e política. Porém, a sua ideologia libertária é tributária do neoliberalismo: ele quer dar aos portugueses aquilo que estes não produzem. A economia mágica de Daniel Oliveira é a economia do endividamento público, isto é, do capital caído do céu: a sua ideologia libertária, profundamente individualista, anti-social e anti-humana, faz dele um parasita do neoliberalismo e das engenharias financeiras que conduziram à actual crise financeira e económica. O pensamento libertário ou esquerdista de Daniel Oliveira, que Lenine já tinha denunciado sabiamente como a doença infantil do pensamento político de Esquerda, limita-se a operar uma inversão no seio do próprio darwinismo social: distribuir os rendimentos dos muito ricos pelos mais pobres, sem levar em conta a capacidade produtiva do país. A afirmação de João Confraria de que a Europa nos é, doravante, adversa pode ser usada aqui para quebrar o feitiço económico de Daniel Oliveira: as torneiras que financiaram a modernização simbólica (John K. Galbraith) de Portugal estão a ser fechadas. O esquerdismo infantil de Daniel Oliveira e o keynesianismo enigmático de Castro Caldas - confesso que não o compreendi bem, mas a culpa até pode ser minha! - não estão preocupados com a produção económica real e efectiva: atribuem ao Estado uma função paternal, ou seja, a de garantir um nível elevado de vida aos seus cidadãos-filhos, como se o capital caísse do céu, qual mana dos polinésios. Esta concepção mágica da produção do capital instalou-se efectivamente em Portugal e na Europa: o poder político e económico estabelecido levou os portugueses a acreditar que a União Europeia e a Zona Euro iriam subsidiar eternamente os seus luxos e a sua improdutividade endémica. Para os portadores deste pensamento mágico, o Estado é o papá que dá aos seus filhos um cartão de crédito ilimitado: os portugueses não precisam de estudar e de produzir para melhorar a sua situação existencial; basta-lhes endividarem-se para manter a mentira organizada - o aspecto moderno - que é Portugal das últimas três décadas. Convém dizer que a modernização de Portugal operada nas últimas décadas é absolutamente simbólica: os grandes investimentos públicos - o novo aeroporto de Lisboa, a terceira travessia do Tejo e o TGV - previstos pelo actual governo socialista são simbólicos. A modernização simbólica limita-se a dar ao país o aspecto de progresso: um aeroporto apropriadamente brilhante, edifícios de Estado adequadamente imponentes, diversas auto-estradas e vias rápidas, um plano económico aparente, um enorme projecto hidroeléctrico e/ou de energias renováveis, a intenção de criar empresas de inovação tecnológica e, acima de tudo, um défice na balança de pagamentos. Porém, a modernização simbólica não implica o avanço do bem-estar económico real do povo; pelo contrário, o bem-estar económico é retardado e o pagamento desses investimentos públicos é transferido para as gerações futuras. No fundo, a modernização simbólica é um estratagema político para enganar o povo, como disseram Medina Carreira e Miguel Morgado, levando-o a acreditar que alguma coisa está a ser feita quando, na verdade, as construções públicas dispendiosas e improdutivas são usadas para comemorar a existência dos políticos do arco do poder - PSD e PS - e a sua ineficiência à custa do interesse público real. Como disse Medina Carreira, Portugal não tem crescido economicamente nestas últimas décadas, apesar da despesa pública ter duplicado: Portugal é, efectivamente, uma enorme mentira organizada pelas elites do poder. A crise financeira e económica teve, pelo menos, o mérito de acordar alguns portugueses deste longo sonho mágico, abrindo os horizontes do seu triste e feio mundo - um mundo profundamente corrupto e cunhista, não-competitivo e sem mérito - a uma outra perspectiva mais realista do futuro nacional, desta vez assente numa política racional de desenvolvimento económico no quadro de um mundo cada vez mais global e mais competitivo.
Outra maneira de chamar a atenção para a ausência de uma teoria da sociedade - detectada neste debate - pode ser formulada dizendo que os intervenientes tendem a identificar a sociedade com a economia, isto é, a colonizar todas as esferas sociais e culturais com a terrível gestão económica. O neoliberalismo é precisamente esta colonização da sociedade e do mundo da vida pela economia de mercado capitalista: o seu economicismo intrínseco é o responsável pela decadência do Ocidente. A sociedade é reduzida a um agregado de empresas ou de instituições não-económicas geridas em termos estritamente económicos. A racionalização defendida por João Confraria - ou mesmo a neutralidade ideológica dos números de Medina Carreira - mais não é do que a colonização dessas instituições públicas pela racionalidade funcional ou instrumental, isto é, a sua subjugação à racionalidade que encontramos em acção na tecnologia, na economia e nas instituições burocráticas. Ora, uma tal racionalidade funcional não implica grandes doses de pensamento ou de reflexão teórica: basta-lhe uma atitude calculadora, classificatória e manipuladora da realidade. Os economistas neoliberais querem moldar a realidade à imagem dos seus pobres e distorcidos modelos económicos ou, o que é ainda pior, submetem a realidade à violência dos números sistematicamente distorcidos, manipulados e falsificados e dos cálculos ideológicos usados para os obter. O neoliberalismo que protagoniza actualmente esta racionalidade funcional é, na sua essência profunda, capitalismo transcendental no sentido que lhe deram Adolf A. Berle e Gardiner C. Means na obra The Modern Corporation and Private Property: uma sociedade onde a produção está a ser realizada sob o controle básico de um punhado de indivíduos - deslumbrados pela riqueza em si e para si - que controlam organizações - sociedades anónimas e mercados financeiros - que se aproximam mais de instituições sociais do que de empresas privadas materialmente produtivas. De certo modo, o neoliberalismo é a ideologia profissional que os economistas e os gestores inventaram e usaram em benefício próprio, para substituir o empresário tradicional pela figura do capitalista ocioso encarnada por eles próprios. Com efeito, colonizar a sociedade pelas forças irracionais da rentabilidade económica e da propriedade privada é colocá-la sob o controle deste grupo profissional: a sua suposta neutralidade ideológica é, toda ela, profundamente ideológica. A rejeição categórica da herança teórica e política de Marx - encabeçada explicitamente neste debate por João Confraria que receia a ocorrência de uma revolução social idêntica à Revolução de Outubro de 1917 - denuncia, ela própria, o carácter ideológico do governo económico da sociedade, da cultura, do mundo da vida e da personalidade. O capital não tem pátria e, por isso, não devemos ficar espantados com o facto de Medina Carreira e dos economistas em geral serem pró-FMI/Comissão Europeia: a circulação global de capital e dos seus portadores, que iludiu Zygmunt Bauman, levando-o a pensar que a mobilidade constituía a marca decisiva do mundo global, mostra até que ponto este grupo profissional perdeu as suas raízes nacionais, culturais e civilizacionais. Aliás, os economistas oficiais da ordem estabelecida perderam totalmente a experiência de vida e, por isso, vivem mergulhados num mundo alienado. Neste debate, a única voz moderada que se ergueu contra a vinda dos estrangeiros foi a de Ferreira do Amaral. Além de ter dito que o FMI não traz nenhuma outra medida de austeridade que não esteja contemplada no actual Orçamento de Estado, Ferreira do Amaral mostrou-se desiludido com a União Europeia: a Europa de hoje não tem futuro, porque a moeda forte divide os Estados membros, sem permitir o crescimento económico dos países periféricos - Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha - na zona Euro. Os Estados não podem estar dependentes dos mercados financeiros: Com esta afirmação, Ferreira do Amaral demarcou-se claramente dos seus colegas de debate, que defenderam o governo económico da Europa, a vinda do FMI ou a racionalidade que supostamente move os mercados financeiros.
Porém, quando avançou com a ideia do Sistema Nacional de Saúde como um seguro de saúde, com o seu próprio orçamento independente, Ferreira do Amaral recua, voltando a reintroduzir a gestão económica numa esfera autónoma da sociedade, sem se aperceber que a saúde e a educação como bens são completamente distintas dos bens económicos. O crescimento económico de Portugal exige reformas estruturais, em especial as reformas da Administração Pública, da Segurança Social, da Educação, do Serviço Nacional de Saúde, da Justiça, do modelo vigente de Estado Social, do Sistema Político, e do próprio Estado. Mas as linhas gerais destas reformas estruturais não dependem exclusivamente de estudos numéricos sectoriais, como defendeu Medina Carreira. A sociedade portuguesa precisa libertar-se da tirania económica: o economicismo que impõe os seus modelos funcionais a todas as esferas da sociedade contribui decisivamente para o aprofundamento do processo inumano de burocratização e de controle total de toda a vida social e cultural, anulando o pluralismo e a democracia, asfixiando a liberdade individual e a criatividade, e agravando as desigualdades sociais e regionais. (Medina Carreira é contra a regionalização!) O economicismo é, politicamente falando, um fenómeno proto-fascista: a racionalização funcional da sociedade e da cultura, do homem e da sua consciência, nega a autonomia a todos os outros níveis estruturais da sociedade, gerando uma uniformidade sem imaginação favorável à irrupção do fascismo. Se não travarmos a racionalização funcional em curso, em nome de uma outra racionalidade mais substantiva - a racionalidade dialéctica, o economicismo conduz-nos a um recuo social e civilizacional. Os modelos da economia neoclássica - uso esta expressão no sentido lato que lhe deu Robert L. Heilbroner - devem ser criticados e confrontados com a ideologia nefasta que lhes é subjacente: entregues a si mesmos, como se fossem verdades absolutas, eles estão a moldar uma realidade absolutamente irracional. Conforme demonstraram Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, a ordem social e cultural própria do capitalismo é irracional e necrófila: a instituição da propriedade privada inibe, altera e derrota os esforços para desfazer as desigualdades sociais, com as quais todos nós aprendemos a viver e a não pensar seriamente nelas. O pensamento burguês gosta de naturalizar aquilo que não é efectivamente "natural": a sua visão da ordem social capitalista é inteiramente fetichista. Não admira que um economista conservador e reaccionário como Murray Wolfson denuncie o historicismo inerente à economia marxista! A actual crise financeira e económica mostra a historicidade concreta e intrínseca da ordem social capitalista, ao mesmo tempo que refuta cabalmente os modelos económicos neoliberais e a realidade social à escala global que moldaram nas últimas décadas. A situação precária do mundo desafia a imaginação dialéctica com a irracionalidade do sistema capitalista como um todo e não apenas dos processos reais de produção: a sociedade gerada pelo neoliberalismo é irracional na sua totalidade, e essa irracionalidade que se apossou dos "seus" homens bloqueia a própria tarefa política da teoria crítica. A teoria social é, como disse Herbert Marcuse, teoria histórica, e a história é o reino da possibilidade no reino da necessidade: os conceitos elaborados pela teoria crítica da sociedade devem culminar na mudança social qualitativa, mas isso só pode suceder se forem realizados real e efectivamente pela praxis histórica de homens concretos libertos do deserto ideológico promovido pela tirania economicista neoliberal. Em Portugal, a destruição do sistema de ensino e de educação, levada a cabo em nome de objectivos obscuros, operou sistematicamente uma mutilação cognitiva do indivíduo que, somada à sua mutilação afectiva e à sua loucura, o animalizou de tal modo que ele já não sabe o que é ser humano. A atrofia dos órgãos mentais e a regressão cognitiva, operadas pela burocratização do ensino e da educação, com a ajuda preciosa dos meios de comunicação de massas, funcionam como mecanismos psicológicos - ou psicopatológicos! - que garantem a perpetuação da irracionalidade da ordem social capitalista: o sistema capitalista não só devasta a natureza, gerando uma terrível crise ecológica, como também nega a humanidade aos homens. O princípio necrófilo que lhe é inerente conduz inexoravelmente o mundo à catástrofe. A tarefa de reinventar uma nova sociedade irá ser muito lenta e prolongada, na medida em que requer a reinvenção do próprio homem.
J Francisco Saraiva de Sousa