Como este post retomamos o tema abordado num post anterior dedicado a "Heidegger e a Questão da Técnica", com o objectivo de mostrar a superioridade do pensamento da técnica planetária de Karl Marx.
A actual crise dos preços elevados dos combustíveis mostra claramente que, nesta arena da globalização capitalista, todos os homens são funcionários do sistema de ordenamento técnico que é comandado pela economia capitalista e as suas grandes empresas, neste caso pelas companhias petrolíferas e pela especulação financeira. Na secção d' "O Princípio Esperança" dedicada às utopias técnicas, Ernst Bloch mostrou que o pensamento burguês se distancia da matéria de que trata, porque tem como fundamento uma economia que é dirigida exclusivamente não para os "cereais" mas para os seus preços. A passagem do (valor de) uso à troca operada pelo capitalismo converteu todos os bens de troca em mercadorias abstractas e estas foram transformadas em capital lucrativo. A esta mudança corresponde o aparecimento do cálculo "estranho" não só aos homens mas também às próprias coisas, um cálculo perfeitamente indiferente ao conteúdo de uns e de outros. Este cálculo económico esquece o "orgânico" e o sentido da "qualidade", desencadeando a crise ecológica que é, na sua essência, uma crise antropológica. A compreensão desta conexão fundamental entre a técnica moderna e a economia capitalista conduz necessáriamente à elaboração de uma nova filosofia da natureza e à tentativa de realizar a "esperança técnica" (Bloch). Este é um dos aspectos da tecnologia moderna que Heidegger desprezou nos autores que o inspiraram e que não nomeou, a começar por Georg Lukács e Ernst Bloch: a tecnologia está ao serviço do capitalismo e é esse facto que a torna perigosa. Negligenciar o capitalismo na questão da técnica é submeter-se aos imperativos do sistema de mobilização total e esquecer a tarefa revolucionária fundamental: a mediatização da natureza com a vontade humana, o regnum hominis na e com a natureza (Bloch). Heidegger omitiu sistematicamente os autores marxistas nas suas obras, embora a "Carta sobre o Humanismo" refira elogiosamente Marx: «Pelo facto de Marx, enquanto experimenta a alienação, atingir uma dimensão essencial da história (a alienação do homem vista como a apatridade do homem moderno), a visão marxista da História é superior a qualquer outro tipo de historiografia.» Este reconhecimento parece anunciar um «possível diálogo produtivo com o marxismo» que Heidegger nunca levou a cabo, pelo menos explicitamente. Contudo, nesse mesmo texto, Heidegger aprisiona o marxismo na determinação metafísica que o seu pensamento pretende superar/destruir: «A essência do materialismo não consiste na afirmação de que tudo apenas é matéria; ela consiste, ao contrário, numa determinação metafísica, segundo a qual todo o ente aparece como matéria de um trabalho», de resto já antecipada por Hegel. Heidegger pode assim ligar a essência do materialismo à essência da técnica, descartando-se do marxismo visto como o culminar da metafísica: «A essência do materialismo esconde-se na essência da técnica; sobre esta, não há dúvida, muito se escreve, mas pouco se pensa. A técnica é, na sua essência, um destino ontológico-historial da verdade do ser, que reside no esquecimento. (...) Enquanto uma forma da verdade, a técnica funda-se na história da Metafísica». Porém, como demonstraram Herbert Marcuse, Ernst Bloch, Alfred Schmidt, Henri Lefebvre ou Kostas Axelos, as noções marxianas de natureza, história, cultura e técnica são muito mais complexas e ainda não foram devidamente compreendidas. Embora a leitura ética não tenha sido escolhida ou rejeitada por Marx, ele parece recorrer à estética para apresentar a Terra como uma obra. Neste caso, a filosofia da natureza desmistificada de Heidegger está prefigurada em Marx, de um modo muito mais interessante e produtivo. E, se for assim, a crítica que Heidegger dirige às axiologias tem pertinência e pode ser recuperada e aprofundada através de uma nova leitura de Marx que, procurando intensificar e alargar a vida, rejeita definitivamente a ideia perigosa de um fim da alienação a partir de um acto absoluto, filosófico (Hegel) ou sócio-político (Marx). Como escreveu Heidegger: «O valorar não deixa o ente ser, mas todo o valorar deixa apenas valer o ente como objecto do seu operar. O esdrúxulo empenho em demonstrar a objectividade dos valores, não sabe o que faz. Quando proclama «Deus» como «o valor supremo», isto significa uma degradação da essência de Deus. O pensar através dos valores é, aqui, e em qualquer outra situação, a maior blasfémia que se pode pensar em face do ser. Pensar contra os valores não significa, portanto, propagar que o ente é destituído de valor e que é sem importância; mas isto significa levar para diante do pensar a clareira da verdade do ser contra a subjectivação do ente em simples objecto». A «Meditación de la Técnica» de José Ortega y Gasset é substancialmente mais profunda que as «meditações da técnica» de Heidegger, embora possam ser confrontadas e articuladas, de modo a clarificar a «essência» da técnica, mediante a recuperação do pensamento utópico de Ernst Bloch e das antropologias filosóficas de Max Scheler, H. Plessner e Arnold Gehlen. Embora não mencione os outros filósofos que se debruçaram sobre a técnica, em particular Karl Marx, Ortega y Gasset parece conhecê-los bem, porquanto sabe demarcar e distinguir as suas teses das teses defendidas por outros, sempre a partir da sua perspectiva «vitalista», a qual cai sob a alçada da crítica pertinente e actual que Hannah Arendt faz da noção de vida como «valor supremo». «Qué es la técnica?». A esta questão, Ortega y Gasset responde deste modo: «El conjunto de (actos técnicos) es la técnica, que podemos, desde luego, definir como la reforma que el hombre impone a la naturaleza en vista de la satisfacción de sus necesidades. Estas (...) eran imposiciones de la naturaleza al hombre. El hombre responde imponiendo a su vez un cambio a la naturaleza. Es, pues, la técnica, la reacción enérgica contra la naturaleza o circunstancia que lleva a crear entre estas y el hombre una nueva naturaleza puesta sobre aquella, una sobrenaturaleza. Conste, pues: la técnica no es lo que el hombre hace para satisfacer sus necesidades. Esta expresión es equívoca y valdría también para el repertorio biológico de los actos animales. La técnica es la reforma de la naturaleza, de esa naturaleza que nos hace necesitados y menesterosos, reforma en sentido tal que las necesidades queden a ser posible anuladas por dejar de ser problema su satisfacción. Si siempre que sentimos frío la naturaleza automáticamente pusiese a nuestra vera fuego, es evidente que no sentiríamos la necesidad de calentarnos, como normalmente no sentimos la necesidad de respirar, sino que simplemente respiramos sin sernos ello problema alguno. Pues eso hace la técnica, precisamente eso: ponernos el calor junto a la sensación de frío y anular prácticamente esta en cuanto necesidad, menesterosidad, negación, problema y angustia». Ortega y Gasset tem consciência do carácter «tosco» desta primeira «aproximación a la pregunta: Qué es la técnica?», mas é esta aproximação que pretendemos debater. Os aspectos relevantes desta aproximação teórica são os seguintes: 1. A técnica é «a reforma que o homem impõe à natureza, tendo em vista a satisfacção das suas necessidades». Esta reforma da natureza cria uma nova natureza, denominada «sobrenatureza» ou, como dizemos hoje em dia, tecnosfera. Ora, a técnica burguesa, isto é, o "tecnicismo da técnica" moderna apreendido por Ortega y Gasset, produz a "alienação técnica da natureza" (Bloch): a reificação burguesa é, no fundo, distanciamento do orgânico, portanto, mecanicismo morto. 2. A natureza fez-nos seres «necessitados e laboriosos» e, por isso, impõe-nos a tarefa de a transformar, de modo a suprir as nossas necessidades ou carências. A teoria da técnica de Ortega y Gasset assenta numa teoria das necessidades, que Bronislaw Malinowski integrou na sua teoria funcional da cultura. De facto, a teoria da técnica de Ortega y Gasset é fortemente marcada pelo funcionalismo, aliás uma versão da racionalidade instrumental criticada por Horkheimer & Adorno, que articula com uma versão forte do «vitalismo»: todas as necessidades derivam do próprio viver. «No es, pues, el alimentarse necesario por sí, es necesario para viver. (...) Este viver es, pues, la necesidad originaria (resultante de um acto de vontade) de que todas las demás son meras consecuencias». Reduzida a natureza àquilo que nos rodeia, à «circunstancia», portanto, ao "mecanicismo" que deve ser superado por uma nova filosofia da natureza, Ortega y Gasset define a vida humana por oposição à vida animal, como não coincidindo completamente com o perfil das suas necessidades orgânicas, e, deste modo, rejeita qualquer abordagem que recorra ao «instinto» ou à própria natureza, como se fossemos extraterrestres na Terra. Apesar de ter captado a essência antropológica da técnica, a definição antropológica da técnica descartada por Heidegger, Ortega y Gasset não consegue livrar-se da definição instrumental da técnica, a qual impede o pensamento que visa aproximar a utopia concreta da técnica e a utopia concreta da sociedade. 3. A técnica é finalmente vista como uma reforma «contra la naturaleza», o que torna difícil a defesa de uma política do ambiente ou mesmo de uma ética do ambiente. A sobrenatureza de Ortega y Gasset permanece prisioneira do capitalismo e da sua visão dominadora da natureza, dado ser incapaz de alargar o âmbito das leis do orgânico a toda a natureza. A sua teoria dos três estádios da evolução da técnica, a técnica do acaso, a técnica do artesão e a técnica do técnico, mostra-se incapaz de pensar um novo estádio da técnica: "a técnica da vontade e da aliança concreta com o fogo dos fenómenos naturais e das suas leis, "o electrão" do sujeito humano e a coprodutividade mediatizada de um sujeito possível da natureza" (Bloch), capaz de integrar a sobrenaturalização da natureza, operada pela técnica, na própria natureza, mediante a reforma revolucionária da sociedade humana. É urgente opor ao pessimismo tecnológico de Heidegger e de Ortega y Gasset o optimismo tecnológico de Karl Marx, apreendido brilhantemente por Ernst Bloch. Contudo, convém acrescentar uma nova transformação técnico-científica. A revolução científica dos séculos XVI e XVII foi uma revolução cognitiva que transformou os modos de pensar sobre a natureza, os tipos de perguntas formuladas e os métodos de procurar as respostas. A revolução científica e tecnológica do século XX teve e tem um carácter completamente diferente: operou uma revolução na organização social da ciência. Esta revolução foi o resultado do impulso motivador da racionalidade instrumental em acção no Ocidente desde a Reforma Protestante: os métodos de contabilidade que tornaram possível a empresa capitalista foram ampliados e aplicados inicialmente à tecnologia e posteriormente à ciência. Os conceitos que pertenciam ao mundo dos negócios foram aplicados na administração e na gerência da ciência e da tecnologia e a revelância tornou-se um critério importante na avaliação da ciência. A busca da racionalidade económica, aquela que define e mede tudo em termos materiais com o recurso a indicadores económicos, tornou-se particularmente evidente na burocratização da pesquisa científica: os cientistas transformaram-se em funcionários bem-posicionados na escala hierárquica das carreiras nas grandes organizações, em especialistas cada vez mais restritos e em membros anónimos de grandes associações, deixando de ser exploradores independentes, profissionais ecléticos e participantes pessoais em comunidades auto-reguladas, respectivamente. A projecção e a criação de armas militares vencedoras de guerras, bem como a crença de que a ciência e a tecnologia podem impulsionar a melhoria do bem-estar das nações, são outros factores que convenceram os governos a fornecer e a garantir avultados investimentos na pesquisa de equipa, levada a cabo em laboratórios industriais ou governamentais, com direcção determinada por decisões organizacionais e em cumprimento de obrigações contratuais. Ora, todos os autores referidos neste post alertaram para o lado negativo desta revolução operada na organização social da ciência e da tecnologia: desencoraja ou tende mesmo a eclipsar o trabalho realmente inovador do pensamento. Com efeito, a garantia do bem-estar das populações humanas, definido e medido em termos estritamente económicos, exerce uma pressão cada vez maior sobre os limites finitos da capacidade do ecossistema planetário. Esta pressão cria constantemente novos problemas e exige novas soluções tecnológicas. Contudo, a ciência e a tecnologia, submetidas à maquinaria de produção do capitalismo e praticadas por cientistas, engenheiros e intelectuais com as capacidades críticas anestesiadas, estão cada vez menos em condições de produzir obras de qualidade e, por isso, a sociedade moderna contém nos seus valores fundamentais as sementes da sua própria extinção. A racionalidade económica colonizou todas as áreas do "mundo da vida" e da sociedade e conduz ao consumo, sem possibilidade de renovação, dos próprios recursos que a possibilitaram. É certo que os pensadores originais não desapareceram, mas a organização social da ciência, imbuída de racionalidade económica estupidificante, define-os como "improdutivos", portanto, como não merecedores de consideração ou de apoio financeiro. Daqui resulta que a racionalidade económica marginaliza e excluí o pensamento independente, o único capaz de nos salvar do desastre ecológico. J Francisco Saraiva de Sousa
A actual crise dos preços elevados dos combustíveis mostra claramente que, nesta arena da globalização capitalista, todos os homens são funcionários do sistema de ordenamento técnico que é comandado pela economia capitalista e as suas grandes empresas, neste caso pelas companhias petrolíferas e pela especulação financeira. Na secção d' "O Princípio Esperança" dedicada às utopias técnicas, Ernst Bloch mostrou que o pensamento burguês se distancia da matéria de que trata, porque tem como fundamento uma economia que é dirigida exclusivamente não para os "cereais" mas para os seus preços. A passagem do (valor de) uso à troca operada pelo capitalismo converteu todos os bens de troca em mercadorias abstractas e estas foram transformadas em capital lucrativo. A esta mudança corresponde o aparecimento do cálculo "estranho" não só aos homens mas também às próprias coisas, um cálculo perfeitamente indiferente ao conteúdo de uns e de outros. Este cálculo económico esquece o "orgânico" e o sentido da "qualidade", desencadeando a crise ecológica que é, na sua essência, uma crise antropológica. A compreensão desta conexão fundamental entre a técnica moderna e a economia capitalista conduz necessáriamente à elaboração de uma nova filosofia da natureza e à tentativa de realizar a "esperança técnica" (Bloch). Este é um dos aspectos da tecnologia moderna que Heidegger desprezou nos autores que o inspiraram e que não nomeou, a começar por Georg Lukács e Ernst Bloch: a tecnologia está ao serviço do capitalismo e é esse facto que a torna perigosa. Negligenciar o capitalismo na questão da técnica é submeter-se aos imperativos do sistema de mobilização total e esquecer a tarefa revolucionária fundamental: a mediatização da natureza com a vontade humana, o regnum hominis na e com a natureza (Bloch). Heidegger omitiu sistematicamente os autores marxistas nas suas obras, embora a "Carta sobre o Humanismo" refira elogiosamente Marx: «Pelo facto de Marx, enquanto experimenta a alienação, atingir uma dimensão essencial da história (a alienação do homem vista como a apatridade do homem moderno), a visão marxista da História é superior a qualquer outro tipo de historiografia.» Este reconhecimento parece anunciar um «possível diálogo produtivo com o marxismo» que Heidegger nunca levou a cabo, pelo menos explicitamente. Contudo, nesse mesmo texto, Heidegger aprisiona o marxismo na determinação metafísica que o seu pensamento pretende superar/destruir: «A essência do materialismo não consiste na afirmação de que tudo apenas é matéria; ela consiste, ao contrário, numa determinação metafísica, segundo a qual todo o ente aparece como matéria de um trabalho», de resto já antecipada por Hegel. Heidegger pode assim ligar a essência do materialismo à essência da técnica, descartando-se do marxismo visto como o culminar da metafísica: «A essência do materialismo esconde-se na essência da técnica; sobre esta, não há dúvida, muito se escreve, mas pouco se pensa. A técnica é, na sua essência, um destino ontológico-historial da verdade do ser, que reside no esquecimento. (...) Enquanto uma forma da verdade, a técnica funda-se na história da Metafísica». Porém, como demonstraram Herbert Marcuse, Ernst Bloch, Alfred Schmidt, Henri Lefebvre ou Kostas Axelos, as noções marxianas de natureza, história, cultura e técnica são muito mais complexas e ainda não foram devidamente compreendidas. Embora a leitura ética não tenha sido escolhida ou rejeitada por Marx, ele parece recorrer à estética para apresentar a Terra como uma obra. Neste caso, a filosofia da natureza desmistificada de Heidegger está prefigurada em Marx, de um modo muito mais interessante e produtivo. E, se for assim, a crítica que Heidegger dirige às axiologias tem pertinência e pode ser recuperada e aprofundada através de uma nova leitura de Marx que, procurando intensificar e alargar a vida, rejeita definitivamente a ideia perigosa de um fim da alienação a partir de um acto absoluto, filosófico (Hegel) ou sócio-político (Marx). Como escreveu Heidegger: «O valorar não deixa o ente ser, mas todo o valorar deixa apenas valer o ente como objecto do seu operar. O esdrúxulo empenho em demonstrar a objectividade dos valores, não sabe o que faz. Quando proclama «Deus» como «o valor supremo», isto significa uma degradação da essência de Deus. O pensar através dos valores é, aqui, e em qualquer outra situação, a maior blasfémia que se pode pensar em face do ser. Pensar contra os valores não significa, portanto, propagar que o ente é destituído de valor e que é sem importância; mas isto significa levar para diante do pensar a clareira da verdade do ser contra a subjectivação do ente em simples objecto». A «Meditación de la Técnica» de José Ortega y Gasset é substancialmente mais profunda que as «meditações da técnica» de Heidegger, embora possam ser confrontadas e articuladas, de modo a clarificar a «essência» da técnica, mediante a recuperação do pensamento utópico de Ernst Bloch e das antropologias filosóficas de Max Scheler, H. Plessner e Arnold Gehlen. Embora não mencione os outros filósofos que se debruçaram sobre a técnica, em particular Karl Marx, Ortega y Gasset parece conhecê-los bem, porquanto sabe demarcar e distinguir as suas teses das teses defendidas por outros, sempre a partir da sua perspectiva «vitalista», a qual cai sob a alçada da crítica pertinente e actual que Hannah Arendt faz da noção de vida como «valor supremo». «Qué es la técnica?». A esta questão, Ortega y Gasset responde deste modo: «El conjunto de (actos técnicos) es la técnica, que podemos, desde luego, definir como la reforma que el hombre impone a la naturaleza en vista de la satisfacción de sus necesidades. Estas (...) eran imposiciones de la naturaleza al hombre. El hombre responde imponiendo a su vez un cambio a la naturaleza. Es, pues, la técnica, la reacción enérgica contra la naturaleza o circunstancia que lleva a crear entre estas y el hombre una nueva naturaleza puesta sobre aquella, una sobrenaturaleza. Conste, pues: la técnica no es lo que el hombre hace para satisfacer sus necesidades. Esta expresión es equívoca y valdría también para el repertorio biológico de los actos animales. La técnica es la reforma de la naturaleza, de esa naturaleza que nos hace necesitados y menesterosos, reforma en sentido tal que las necesidades queden a ser posible anuladas por dejar de ser problema su satisfacción. Si siempre que sentimos frío la naturaleza automáticamente pusiese a nuestra vera fuego, es evidente que no sentiríamos la necesidad de calentarnos, como normalmente no sentimos la necesidad de respirar, sino que simplemente respiramos sin sernos ello problema alguno. Pues eso hace la técnica, precisamente eso: ponernos el calor junto a la sensación de frío y anular prácticamente esta en cuanto necesidad, menesterosidad, negación, problema y angustia». Ortega y Gasset tem consciência do carácter «tosco» desta primeira «aproximación a la pregunta: Qué es la técnica?», mas é esta aproximação que pretendemos debater. Os aspectos relevantes desta aproximação teórica são os seguintes: 1. A técnica é «a reforma que o homem impõe à natureza, tendo em vista a satisfacção das suas necessidades». Esta reforma da natureza cria uma nova natureza, denominada «sobrenatureza» ou, como dizemos hoje em dia, tecnosfera. Ora, a técnica burguesa, isto é, o "tecnicismo da técnica" moderna apreendido por Ortega y Gasset, produz a "alienação técnica da natureza" (Bloch): a reificação burguesa é, no fundo, distanciamento do orgânico, portanto, mecanicismo morto. 2. A natureza fez-nos seres «necessitados e laboriosos» e, por isso, impõe-nos a tarefa de a transformar, de modo a suprir as nossas necessidades ou carências. A teoria da técnica de Ortega y Gasset assenta numa teoria das necessidades, que Bronislaw Malinowski integrou na sua teoria funcional da cultura. De facto, a teoria da técnica de Ortega y Gasset é fortemente marcada pelo funcionalismo, aliás uma versão da racionalidade instrumental criticada por Horkheimer & Adorno, que articula com uma versão forte do «vitalismo»: todas as necessidades derivam do próprio viver. «No es, pues, el alimentarse necesario por sí, es necesario para viver. (...) Este viver es, pues, la necesidad originaria (resultante de um acto de vontade) de que todas las demás son meras consecuencias». Reduzida a natureza àquilo que nos rodeia, à «circunstancia», portanto, ao "mecanicismo" que deve ser superado por uma nova filosofia da natureza, Ortega y Gasset define a vida humana por oposição à vida animal, como não coincidindo completamente com o perfil das suas necessidades orgânicas, e, deste modo, rejeita qualquer abordagem que recorra ao «instinto» ou à própria natureza, como se fossemos extraterrestres na Terra. Apesar de ter captado a essência antropológica da técnica, a definição antropológica da técnica descartada por Heidegger, Ortega y Gasset não consegue livrar-se da definição instrumental da técnica, a qual impede o pensamento que visa aproximar a utopia concreta da técnica e a utopia concreta da sociedade. 3. A técnica é finalmente vista como uma reforma «contra la naturaleza», o que torna difícil a defesa de uma política do ambiente ou mesmo de uma ética do ambiente. A sobrenatureza de Ortega y Gasset permanece prisioneira do capitalismo e da sua visão dominadora da natureza, dado ser incapaz de alargar o âmbito das leis do orgânico a toda a natureza. A sua teoria dos três estádios da evolução da técnica, a técnica do acaso, a técnica do artesão e a técnica do técnico, mostra-se incapaz de pensar um novo estádio da técnica: "a técnica da vontade e da aliança concreta com o fogo dos fenómenos naturais e das suas leis, "o electrão" do sujeito humano e a coprodutividade mediatizada de um sujeito possível da natureza" (Bloch), capaz de integrar a sobrenaturalização da natureza, operada pela técnica, na própria natureza, mediante a reforma revolucionária da sociedade humana. É urgente opor ao pessimismo tecnológico de Heidegger e de Ortega y Gasset o optimismo tecnológico de Karl Marx, apreendido brilhantemente por Ernst Bloch. Contudo, convém acrescentar uma nova transformação técnico-científica. A revolução científica dos séculos XVI e XVII foi uma revolução cognitiva que transformou os modos de pensar sobre a natureza, os tipos de perguntas formuladas e os métodos de procurar as respostas. A revolução científica e tecnológica do século XX teve e tem um carácter completamente diferente: operou uma revolução na organização social da ciência. Esta revolução foi o resultado do impulso motivador da racionalidade instrumental em acção no Ocidente desde a Reforma Protestante: os métodos de contabilidade que tornaram possível a empresa capitalista foram ampliados e aplicados inicialmente à tecnologia e posteriormente à ciência. Os conceitos que pertenciam ao mundo dos negócios foram aplicados na administração e na gerência da ciência e da tecnologia e a revelância tornou-se um critério importante na avaliação da ciência. A busca da racionalidade económica, aquela que define e mede tudo em termos materiais com o recurso a indicadores económicos, tornou-se particularmente evidente na burocratização da pesquisa científica: os cientistas transformaram-se em funcionários bem-posicionados na escala hierárquica das carreiras nas grandes organizações, em especialistas cada vez mais restritos e em membros anónimos de grandes associações, deixando de ser exploradores independentes, profissionais ecléticos e participantes pessoais em comunidades auto-reguladas, respectivamente. A projecção e a criação de armas militares vencedoras de guerras, bem como a crença de que a ciência e a tecnologia podem impulsionar a melhoria do bem-estar das nações, são outros factores que convenceram os governos a fornecer e a garantir avultados investimentos na pesquisa de equipa, levada a cabo em laboratórios industriais ou governamentais, com direcção determinada por decisões organizacionais e em cumprimento de obrigações contratuais. Ora, todos os autores referidos neste post alertaram para o lado negativo desta revolução operada na organização social da ciência e da tecnologia: desencoraja ou tende mesmo a eclipsar o trabalho realmente inovador do pensamento. Com efeito, a garantia do bem-estar das populações humanas, definido e medido em termos estritamente económicos, exerce uma pressão cada vez maior sobre os limites finitos da capacidade do ecossistema planetário. Esta pressão cria constantemente novos problemas e exige novas soluções tecnológicas. Contudo, a ciência e a tecnologia, submetidas à maquinaria de produção do capitalismo e praticadas por cientistas, engenheiros e intelectuais com as capacidades críticas anestesiadas, estão cada vez menos em condições de produzir obras de qualidade e, por isso, a sociedade moderna contém nos seus valores fundamentais as sementes da sua própria extinção. A racionalidade económica colonizou todas as áreas do "mundo da vida" e da sociedade e conduz ao consumo, sem possibilidade de renovação, dos próprios recursos que a possibilitaram. É certo que os pensadores originais não desapareceram, mas a organização social da ciência, imbuída de racionalidade económica estupidificante, define-os como "improdutivos", portanto, como não merecedores de consideração ou de apoio financeiro. Daqui resulta que a racionalidade económica marginaliza e excluí o pensamento independente, o único capaz de nos salvar do desastre ecológico. J Francisco Saraiva de Sousa
44 comentários:
Com este post, reformulo a crítica que tenho feito do "plano tecnológico" do PM José Sócrates: ausência de pensamento e incapacidade de pensar uma tecnologia socialista, para além da alienação técnica da natureza, interna e externa. Portanto, regressão cognitiva! :(
Excelente texto, Francisco!
Seria extremamente interessante dar continuidade a esta abordagen com desmontagem do Plano Tecnológico feita à Illich...fica o desafio ;)
Manuel
Boa ideia, mas devemos ser um pouco mais pragmáticos e "mexer" com os cálculos económicos. E propor cálculos alternativos, porque a matemática na sua pretensão de exactidão esquece que também ela foi instrumentalizada pela racionalidade económica.
A crítica de Ivan Illich continua a ser actual, porque, apesar do Clube de Roma, o pensamento económico dominante não questiona a ideologia do crescimento económico, adoptada também pelos países em vias de desenvolvimento: desastre mundial...
Exacto, desmontar o Plano Tecnológico...
Manuel
O nosso amigo Fernando Dias está a produzir fenomenologia e ontologia elevadas da consciência. Eu até não comentei o último para não o distrair da elevada produtividade.
Contudo, deixo aqui um desafio: será que o nosso amigo não está a ser vítima da análise linguística das "orações" e a tentar arrancar da lingua(gem) aquilo que ela ainda não conseguiu dizer. De resto, a fenomenologia do F Dias é impecável, sobretudo contra Damásio. :)
Muito bom o seu texto Francisco! Não conhecia as concepções de Ortega y Gasset acerca da técnica. Você disse muito bem: "É certo que os pensadores originais não desapareceram, mas a organização social da ciência, imbuída de racionalidade económica estupidificante, define-os como 'improdutivos´".
Os representantes da racionalidade econômica estupidificante elaboram conceituações pobres e tendenciosas acerca das condutas humanas. Atualmente, faz-se uma verdadeira apologia do agir técnico, do "comportamento eficiente", da "obtenção de metas". Enfim, conceitos de Administração estão ganhando uma importância cada vez maior, tornando-se fundamentais para a definição do complexo universo de condutas humanas. Resultado: Perda da espontaneidade e estagnação do pensamento criativo.
Francisco, veja que interessante descrição do homem ativo (o escravo da técnica) feita por Nietzsche (Humano, Demasiado, Humano):
“Defeito principal dos homens ativos — Aos homens ativos falta habitualmente a atividade superior, quero dizer, a individual. Eles são ativos como funcionários, comerciantes, eruditos, isto é, como representantes de uma espécie,mas não como seres individuais e únicos; neste aspecto são indolentes. — A infelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempre um pouco racional. Não se pode perguntar ao banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo, pela finalidade de sua atividade incessante; esta é irracional. Os homens ativos (poderíamos dizer, “os funcionários da técnica”, pensando na conhecida expressão de Heidegger) rolam como pedras, conforme a estupidez da mecânica. — Todos os homens se dividem, em todos os tempos e também hoje, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito”.
A propósito da "improdutividade" dos filósofos, que se tem vindo a falar:
http://cafefilosoficodeevora.blogspot.com/2008/05/penso-logo-no-sirvo.html
André,
Deixei-lhe uma nota lá em baixo, no post do "Homo Sexualis"!
OK, Papillon, obrigado pela dica! Vou ler a notícia sobre A coreografia "Pedro e Inês" de Olga Roriza.
André
Nietzsche tem bons rasgos de genialidade. Há muito tempo que não frequento o Humano, demasiado Humano, mas logo que tenha mais tempo vou passar os olhos por esse livro.
Hoje andei muito ocupado e, na secção dos fumadores, reli algumas coisas de Deleuze. Bem sei que ele não pretende superar Marx, mas o seu rizoma soa por vezes a pensamento paralisado. É difícil elaborar uma filosofia contra Marx, porque a de Marx mexeu com o mundo e deixou a sua marca na história. Vejo Marx como nova saída, após este meio século de paralisia de pensamento e de domínio do economicismo estupidificante.
Heidegger deve ser lido a nova luz: a fonte de inspiração dele está no marxismo que retomou numa chave conservadora e numa linguagem mitificada. Mas no fundo ele não abre o mundo, não o rasga...
Logo que tenha mais tempo retomo a releitura de Marx: o seu pensamento é, como se diz hoje, nómada. Marx não desejou ser aprisionado numa sistema fechado. a sua versão soviética falhou, porque não compreendeu que foi Proudhon e não Marx quem disse que a propriedade era um roubo. Uma nova pista para reactivar o marxismo em chave pós-capitalismo global... que ameaça a propriedade, aquilo que é próprio do homem e da vida.
André
Já passei as páginas de Humano, Demasiado Humano. Horkheimer e adorno integraram o pensamento de Nietzsche no seio da teoria crítica. Os dois volumes sobre Nietzsche de Heidegger marcaram muito a minha maneira de ler Nietzsche, ou seja, descartar muitas das suas concepções e manter outras. A sua crítica da ascese é insuportável, logo agora que vislumbro um marxismo ascético, sempre em marcha bipede contra a sociedade de consumo... :)
Esbarrei com esta frase aparentemente inofensiva de Nietzsche:
"Sem prazer, não há vida; a luta pelo prazer é a luta pela vida".
A consciência feliz do consumidor realizou este preceito, mas a sua vida perdeu espírito. Podemos ser profundamente infelizes ou iludidamente felizes no meio da abundância e dos prazeres carnais. Freud não concebia a civilização sem repressão e controlo do princípio de prazer. Hoje a sexualidade foi libertada da repressão e é oferecida a todos. Contudo, o homem ficou preso na condição metabolicamente reduzida: come alimentos e corpos, mas é escravo do sistema.
Francisco, não concordo com muitas concepções de Nietzsche. Porém, há frases dele que são geniais.
Tentei ler o primeiro volume de Heidegger sobre Nietzsche, mas esbarrei nos costumeiros problemas de traução :(
Heidegger já é muito difícil para aqueles que lêem no original alemão. Para os que dependem de boas traduções das obras de Heidegger, o acesso a uma compreensão autência fica mais difícil.
Francisco, qual é o principal aspecto da crítica de Nietzsche à ascese que o incomoda?
André
Prometo tentar resumir a leitura de Heidegger do pensamento de Nietzsche, até porque tenho algures um resumo que apresentei numa conferência.
A crítica da ascese preocupa-me porque é demasiado radical começando com Sócrates e Platão para incluir o cristianismo: a afirmação dos valores da vida ou mesmo do corpo sobre os valores da vida dedicada ao conhecimento parece fomentar um certo culto da força que até entusiasmou Benjamin.
É evidente que vejo a ascese noutra direcção: como renúncia do consumismo, isto é, como uma espécie de novo materialismo que abdica da carne para melhor se proteger dos efeitos nefastos desta sociedade metabólica.
André,
Não é aconselhável ler Nietzsche sob a leitura directa de Heidegger. Os cursos que Heidegger leccionava sobre Nietzsche são análise do problema com a resolução à partida: o próprio pensamento heideggeriano. Por isso, se pretende um estudo rigoroso de Nietzsche, deixe o Heidegger de Nietzsche para segunda leitura. Sirva-se de Eugen Fink, Brian Leiter, Nehamas, Hollingdale, etc. Depois vá a Heidegger e a Deleuze.
Nietzsche criticava as teorias socialistas do seu século, caracterizando-as de decadentes, por se estabelecerem nos mesmos princípios de negação do princípio da vida.
Francisco,
"Sem prazer, não há vida; a luta pelo prazer é a luta pela vida".
Analisar esta frase, da maneira como o fez, só demonstra que se leu as obras de Nietzsche, leu-as mal, pois se há premissa que é por demais evidente no corpus nietzscheano é de que a vida é dor, e precisamente por ser dor, devemos enfrentá-la. Daí Heidegger ter interpretado, a partir de Nietzsche, a vida autêntica como ser-para-a-morte.
André,
Aconselho-lhe a ler por si e a fazer os seus próprios juízos... Nietzsche transborda de inactualidade, logo é sempre susceptível de ser presentificado.
Só os leitores apressados, é que n o percebem.
Na lista acima esqueci-me do comentador mais importante de Nietzsche: Giorgio Colli. Tem traduções em português.
Ui Papillon
Que disparate que disse: a vida é dor, para Nietzsche! Deve ter baralhado com Schopenhauer! Mas isso já é frequente na Papillon. Lembra-se de ter dito que Freud nos Três Ensaios abraçava Platão? Mais outro disparate! Enfim, a Papillon está a disparatar...
Fink como leitura fiel de Nietzsche? A Papillon deve pensar que os outros são "burrecos"! Que tristeza!
Nem sequer referiu os melhores estudiosos da obra de Nietzsche! Eram esses que aconselhava ao André? Que mázinha!
A gaia ciência de Nietzsche converteu-se, num passo de magia, na ciência melancólica de Adorno! Ou na leitura que Horkheimer faz de Schopenhauer! Puf... A Papillon quer atribuir a Nietzsche aquilo que não lhe pertence! Puf...
Papillon
Fez o cadáver de Nietzsche estremecer no túmulo!
Sim, a vida é dor é um princípio de Schopenhauer que Nietzsche adopta, a solução é que é distinta: metamorfosear a dor em beleza. Todo O Nascimento da Tragédia é a descrever o carácter trágico da existência e a estética como única justificação para a dor.
Infelizmente n tenho aqui o livro dos Três Ensaios da Teoria da Sexualidade de Freud para lhe dizer a página onde se encontra.
Não é surpreendente esse tipo de ofensas, afinal está no seu espaço e tem o direito de dizer o que quiser, e eu tenho o direito em n me envolver e participar. Isto foi desde sempre claro. Por isso, se o quiser, uma vez que aquilo que escrevi foi tão aberrante para si, pode apagá-lo.
Não Papillon, Freud não diz isso nos Três Ensaios. E repare que essa obra foi uma das primeiras e o seu conteúdo foi alterado até alcançar a teoria das pulsões da vida e da morte! O Nascimento da Tragédia é uma obra de juventude e Nietzsche "evoluiu", mas não vejo essa noção de estética como "justificação da dor" nessa obra! "Justificação": este termo não lhe cheira a cristianismo? Não será estranho ao universo de Nietzsche?
A Dor é bela? Estranha concepção de dor? A menos que quem o afirma seja masoquista... Não vejo essa noção em Nietzsche.
«Porque só como fenómeno estético é que a existência e o mundo estão eternamente justificados.» Friedrich Nietzsche
§5 A Origem da Tragédia
«É aqui, no mais alto perigo que ameaça a vontade, que a arte surge e avança, como um mágico salvador que traz consigo o bálsamo benfazzejo: só ela tem o poder de tranformar este desgosto pelo horrível e pelo absurdo da existência em imagens ideais, que tornam agradável e possível a vida.»
Friedrich Nietzsche
§7 Idem
Ah e já encontrei, está no prefácio à 4ª edição aos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade
«Quem quer que olhe com desdém a Psicanálise, do alto da sua superioridade, deveria recordar quanto intimamente esta ideia da sexualidade ampliada da Psicanálise coincide com o Eros do divino Platão.» Sigmund Freud
Eu n disse q a dor era bela. Disse q a dor é convertível em beleza. Diferente...
A afirmação de Freud feita em 1920 visa justificar a extensão da sexualidade às crianças. Será que o eros do divino Platão era assim tão extenso? Contudo, Freud nunca disse que a Psicanálise coincide com a teoria de Platão, ou melhor, da de qualquer participante nesse diálogo! Aliás, mesmo que o tivesse dito, a sua afirmação seria disparatada.
O Nascimento da Tragédia é uma obra problemática e o próprio Nietzsche o detectou, porque escreveu um excelente Ensaio de Autocrítica onde diz que «só como fenómeno estético se vê legitimada a existência do mundo». Mas o problema abordado acabou por lhe escapar. É a vida na sua complexidade que é legitimada, não a dor...
E eis que a leitura de Heidegger é pertinente a partir das frases citadas: avaliação da vida.
Aliás, o próprio Fink que referiu detectou as dificuldades da Origem da Tragédia...
Papillon:
Não posso estar de acordo com estas duas frases:
"(...) (1) se há premissa que é por demais evidente no corpus nietzscheano é de que a vida é dor, e precisamente por ser dor, devemos enfrentá-la. Daí (2)Heidegger ter interpretado, a partir de Nietzsche, a vida autêntica como ser-para-a-morte."
Ou esta feito num post anterior: "a psicanálise ampliada coincide com a teoria de eros de Platão."
São afirmações feitas pela Papillon, mas carecem de fundamento. Isto já para não falar do que disse de S Paulo ou dos Testamentos.
Então, se a seu ver, "carecem de fundamento", são meros "disparates". O Francisco já o deduziu, para quê voltar atrás?
Não se aborreça, a verdade está consigo.
Papillon,
Conheço alguns dos comentadores que você mencionou. Leio as obras de Nietzsche há bastante tempo. Porém, é recente, aqui no Brasil, o surgimento de boas traduções de seus livros.
No momento estou relendo algumas obras deste pensador tão fecundo que, a meu ver, escapa a quaisquer tentativas de sistematizações e de interpretações definitivas, empreendidas por seus comentadores.
Tenho duas edições de Para além do Bem e do Mal. Uma portuguesa (Livraria Guimarães Editores) e uma brasileira (Companhia das Letras). A tradução portuguesa é muito boa.
Vocês utilizam qual edição?
André
Eu uso as edições Relógio D'Água das Obras Escolhidas, tenho essas das Edições Guimarães, e a alemã da Könemann.
Claro, que tem toda a razão: a obra de Nietzsche não é susceptível de uma sistematização.
Papillon
Não se faça de "vítima", até porque seria fácil recuperar as suas afirmações, por vezes desagradáveis... Eu nunca fui inconveniente consigo!
Neste post, a Papillon interpretou a troca de impressões com o André, como se se tratasse de uma aconselhamento bibliográfico, Mas não era isso que estava em causa! AAté porque o André sabe ler Nietzsche sozinho, como o tem mostrado e acabou de mostrar.
Claro que o André sabe ler Nietzsche sozinho, não quero que o meu comentário seja interpretado como presunção. Apenas sublinhei o que qualquer estudioso de Nietzsche deve/deverá saber, que a obra de Heidegger sobre Nietzsche é tendenciosa, mas n por isso de somenos importância; apenas deve ser lida com esta pré-consciência.
Eu n me armo em vítima, apenas acho q se primeiro ofende e depois pergunta pelo fundamento, é porque n está assim tão interessado na minha visão. Simples. Gosto de honestidade moral e intelectual. :)
Então, demonstre o fundamento ou, pelo menos, as linhas gerais de leitura da Origem da Tragédia! Ou como Freud decorre de Platão!
Ou mostre que compreendeu o meu comentário que deu origem ao que disse. Eis o comentário:
"Esbarrei (NOTE, isto a propósito de Humano, demasiado Humano) com esta frase aparentemente inofensiva de Nietzsche:
"Sem prazer, não há vida; a luta pelo prazer é a luta pela vida". (Nietzsche: como "casa" esta frase com a sua leitura da estética como justificação da dor, ou com a frase onde diz que Heidegger retomou o ser-para-a-morte de Nietzsche?)
A consciência feliz do consumidor realizou este preceito, mas a sua vida perdeu espírito. Podemos ser profundamente infelizes ou iludidamente felizes no meio da abundância e dos prazeres carnais. Freud não concebia a civilização sem repressão e controlo do princípio de prazer. Hoje a sexualidade foi libertada da repressão e é oferecida a todos. Contudo, o homem ficou preso na condição metabolicamente reduzida: come alimentos e corpos, mas é escravo do sistema."
Eu sou honesto e claro...
Isto que escreveu não é ofensivo ou petulante:
"Analisar esta frase, da maneira como o fez, só demonstra que se leu as obras de Nietzsche, leu-as mal, ..." ?!
Calma, meus amigos, vocês estão muito exaltados :)
Papillon, não encarei as suas dicas como se fossem um mero aconselhamento bibliográfico. Elas são sempre válidas, assim como as considerações do Francisco.
Sei que vocês primam pela honestidade moral e intelectual.
André
Não estou zangado com a Papillon! Apenas desejo que ela pense antes de "pegar pesado"!
Três obras sobre Nietzsche interessantes são:
A. Kremer-Marietti, Nietzsche et la Rhétorique, PUF.
Didier Franck, Nietzsche et l'Ombre de Dieu, PUF.
Patrick Wotling, Nietzsche et le Problème de la Civilisation, PUF.
E em Portugal temos esta obra de um amigo meu:
MONTEIRO, Américo Enes — A Recepção da Obra de Friedrich Nietzsche na Vida Intelectual Portuguesa (1892-1939). Porto: Lello Editores, Universidade Católica Portuguesa, 2000.
Monteiro é um homem da literatura que organizou um Colóquio Internacional sobre Nietzsche, no qual participei, cujas actas foram publicadas em livro.
Francisco, obrigado pelas dicas de livros sobre Nietzsche.
André
Gosto de partilhar neste espaço em que estamos ao serviço uns dos outros. Uma comunidade!
A Papillon faz o seu papel de menina ofendida... Mas a questão que tenho procurado expor é esta:
Face a esta sociedade repleta de animais metabolicamente reduzidos, todos os grandes princípios filosóficos ou estéticos ou educacionais perderam "validade". Isto é que é o horror do pensamento: estar irremediavelmente perdido para esta "humanidade". Perigo total!
Por isso, a estética não pode ter efeitos: o homem anestesiado não sente a dor ou o prazer. Aliás, estas categorias estão perdidas. Eis o horror da estética!
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