«Sugiro que o motor que impulsionou estes desenvolvimentos culturais seja o impulso homeostático. As explicações que assentam apenas nas significativas expansões cognitivas produzidas por cérebros maiores e mais inteligentes não bastam para justificar o extraordinário desenvolvimento da cultura. De uma forma ou de outra, os desenvolvimentos culturais manifestam o mesmo objectivo que a forma de homeostase automatizada a que me referi ao longo deste livro. Eles reagem à detecção de um desequilíbrio no processo de vida e procuram corrigi-lo dentro dos limites da biologia humana e do ambiente físico e social. A elaboração de regras morais e de leis, e o desenvolvimento de sistemas de justiça eram uma resposta à detecção de desequilíbrios provocados por comportamentos sociais que fazem perigar os indivíduos e o grupo. Os dispositivos culturais criados em resposta ao desequilíbrio tinham por objectivo restaurar o equilíbrio dos indivíduos e do grupo. A contribuição dos sistemas económicos e políticos, bem como, por exemplo, o desenvolvimento da medicina, eram uma resposta aos problemas funcionais que ocorrem no espaço social e que exigem uma correcção dentro desse espaço, para que não venham a comprometer a regulação vital dos indivíduos que constituem o grupo. Os desequilíbrios a que me refiro são definidos por parâmetros sociais e culturais, ocorrendo assim a detecção do desequilíbrio a um nível elevado da mente consciente, na estratosfera do cérebro, e não ao nível subcortical. No seu todo chamo a este processo "homeostase sociocultural"». (António Damásio)
Começo a elaborar a crítica do Livro da Consciência de António Damásio, impugnando a teoria funcionalista e sistémica da cultura que expõe no último capítulo Viver com a Consciência. A escolha deste começo não é inocente. Sendo o capítulo mais fraco e mais débil do livro de Damásio, a crítica da hipótese homeostática do desenvolvimento cultural que nele é exposta permite detectar antecipadamente a fragilidade global e estrutural da teoria neurobiológica da consciência, sem no entanto a desenvolver e a explicitar neste primeiro momento: a crítica do elo mais fraco da hipótese neurobiológica de Damásio - o elo do desenvolvimento cultural e da homeostase sociocultural que emerge com a descoberta do eu auto-biográfico na mente consciente - prepara o caminho para o confronto final com o núcleo duro dessa mesma hipótese. A debilidade do capítulo revela-se desde logo no uso impreciso de conceitos não-definidos ou dotados de significações ambíguas e até mesmo contraditórias. A imprecisão da terminologia - um traço invulgar na obra de Damásio que usa frequentemente conceitos claros e definições precisas para demarcar as suas teses das teorias rivais - insinua-se e inscreve-se precisamente no capítulo fundamental para testar - ao nível da evolução social e cultural do homem pré-histórico - a sua hipótese neurobiológica, com recurso aos dados recolhidos por outras disciplinas, nomeadamente pela paleontologia, arqueologia, pré-história, etologia, primatologia, sociobiologia e etnologia. A exposição da antropogénese realizada por Changeux - com base na paleoantropologia de Yves Coppens - é muito mais rica do que a "relatada" por Damásio, que se limita a recapitular as suas ideias mestras sem as conseguir ligar conjectural e materialmente ao registo fóssil (W.E. Le Gros Clark, David Pilbeam) e ao registo arqueológico (Leroi-Gourhan): o surgimento do eu rebelde permanece assim um mistério, embora Damásio pareça ligá-lo ao Homo neanderthalensis - mais seguramente ao Homo sapiens sapiens que coexistiu com o primeiro, substituindo-o definitivamente há cerca de 30 000 anos - do Pleistoceno tardio que, pelo facto de sepultar os seus mortos, seria talvez já capaz de contar histórias. A teoria do eu rebelde de Damásio - a chegada do eu auto-biográfico à mente do homem fóssil - coloca novos desafios ao estudo da antropogénese e, apesar de não termos vestígios directos para datar o seu aparecimento, devemos libertar e disciplinar a nossa imaginação paleontológica e arqueológica e tentar reconstruir a sua génese a partir dos fósseis infra-humanos e humanos (hominídeos) e dos seus artefactos. Quando escrevi a minha tese de mestrado sobre a evolução do cérebro humano, abordei este tema em função do esquema da hominização de Leroi-Gourhan que supera a teoria do rubicão cerebral, segundo a qual a linguagem tão necessária à emergência do eu auto-biográfico surgiu no momento em que o ramo dos hominídeos transpôs o rubicão cerebral - estimado em cerca de 900 cm3 - para dar origem aos hominianos propriamente ditos: os primeiros hominianos a atravessar o rubicão cerebral teriam sido assim os Pitecantropos (Homo erectus). Apesar da inadequação de alguns dos seus pressupostos, esta teoria teve o mérito de chamar a atenção da comunidade científica para a correlação existente entre a linguagem e o cérebro. Com base na ligação orgânica entre a técnica - motricidade técnica - e o nível de linguagem, Leroi-Gourhan observou que, apesar da expansão pré-frontal ser muito incompleta até ao Homo sapiens, a presença de áreas de associação verbal e gestual parece estar garantida desde o Australantropo: «A uma posição bípede e a uma mão livre, e consequentemente a uma capacidade craniana consideravelmente liberta, só pode corresponder um cérebro já equipado para o exercício da palavra, e creio que devemos considerar que a possibilidade física de organizar os sons e os gestos existe desde o primeiro antropídeo comum» - o Zinjantropo. Embora hoje não seja tão optimista, a ponto de atribuir uma linguagem - ainda que muitíssimo rudimentar - ao Australopiteco, continuo a sentir-me seduzido pelo universo paleontológico inaugurado pelo trabalho de Leroi-Gourhan, que recusou tratar o homem como uma espécie de autómato consciente ao serviço da regulação biológica: «O que transformou completamente a situação filosófica do homem fóssil foi a necessidade de admitir, desde os zinjantropos, um homem já realizado, andando na posição vertical, fabricando utensílios e, se a minha demonstração é válida, falando. A imagem deste homem está pouco de acordo com a imagem que dele fizeram dois séculos de ideias filosóficas. Os factos mostram que o homem não é, como se costumava pensar, uma espécie de macaco que se aperfeiçoava, fim último do edifício paleontológico, mas sim algo distinto do macaco. No momento em que esse homem aparece falta-lhe ainda um longo caminho a percorrer, mas esse caminho será menos no sentido da evolução biológica do que no sentido da libertação do quadro zoológico, uma organização absolutamente nova em que a sociedade se vai progressivamente substituindo à corrente do phyllum. Se quisermos a todo o custo encontrar o macaco inicial é agora necessário procurá-lo em pleno terciário. A imagem já humana dos australantropos é suficiente para alterar as bases dos problemas das origens. A sua bipedia é certamente antiga e implica uma distância considerável relativamente aos antepassados dos macacos actuais, algo comparável à separação da linha dos cavalos relativamente à dos rinocerontes, isto é, a perspectiva de descobrir um dia um pequeno animal, nem homem nem macaco, mas capaz por descendência de se tornar um ou outro» (Leroi-Gourhan). Quando lida à luz da perspectiva de Leroi-Gourhan, a teoria dos três estádios do eu de Damásio - o proto-eu, o eu nuclear e o eu auto-biográfico - exige provavelmente uma reformulação, sobretudo ao nível da evolução do eu auto-biográfico: a arqueologia do eu autobiográfico poderá vir a impor uma diferenciação evolutiva segundo a sequência: paleo-eu autobiográfico, arqui-eu autobiográfico e neo-eu autobiográfico, cada um deles em correspondência dialéctica com um determinado tipo evolutivo de sociedade e de cultura, a paleo-sociedade (sociedade hominídea, paleo-cultura, paleo-eu), a arqui-sociedade (sociedade da pré-história sapiental, arqui-cultura, arqui-eu) e as sociedades históricas (escrita, culturas históricas, neo-eu).
O facto do conceito de homeostase - palavra cunhada por Walter Cannon para pensar a regulação do meio interior de Claude Bernard, isto é, a regulação ou gestão da vida - desempenhar um papel fundamental na hipótese do desenvolvimento cultural de Damásio permite-me identificar o seu carácter funcionalista e sistémico e estabelecer as suas afinidades electivas com a teoria funcionalista da cultura de Bronislaw Malinowski, por um lado, e a teoria geral dos sistemas de Ludwig von Bertalanffy e a sociologia funcionalista de Niklas Luhmann, para já não falar da cibernética de Norbert Wiener e de W. Ross Ashby, por outro. É certo que Damásio não está consciente destas afinidades, mas os conceitos que utiliza apontam no sentido de ter herdado - o seu inconsciente cognitivo a ter a última palavra sobre o seu processo ou controlo consciente - o núcleo duro da teoria funcionalista da sociedade e da cultura. Como não posso aqui resumir todo o debate científico em torno do funcionalismo e da teoria dos sistemas sociais e culturais, vou limitar-me a chamar a atenção para o perigo inerente à utilização a-crítica do modelo orgânico (Herbert Spencer) no domínio das ciências sociais e humanas, em especial da sociologia (Durkheim, Talcott Parsons, Robert Merton, Kingsley Davis) e da antropologia social (Malinowski, Radcliffe-Brown). Em termos simples, o funcionalismo estabelece uma analogia entre o organismo e a sociedade, examinando todos os fenómenos sociais na sua relação funcional com a totalidade do corpo social de que fazem parte. O fenómeno social em questão - uma instituição social ou um mero ritual religioso, por exemplo - só revela o seu sentido quando são entendidas as suas relações funcionais com os outros fenómenos que constituem a unidade social. O que incomoda nesta abordagem teórica não é tanto a sua hipótese holística, mas sobretudo o seu postulado utilitarista que leva a supor erradamente que tudo, num sistema social, tem uma função precisa na manutenção estrutural do equilíbrio homeostático da unidade social total, deixando assim pouco lugar à dinâmica da transformação social e cultural. Deste modo, ao utilizar modelos de equilíbrio da sociedade, o funcionalismo é levado a acentuar a ordem normativa e a coesão social, identificando a "saúde" com a ordem social e a "doença" com o conflito. A. Gouldner acusa-o de ser uma ideologia conservadora que não só favorece a preservação do privilégio, como também aconselha as elites dominantes a adoptar uma «política de repressão» para garantir o consenso social e a manutenção da ordem social. É certo que a teoria social de Marx envolve um conceito de equilíbrio, mas a noção marxista de equilíbrio móvel - instável - é completamente distinta do modelo mecanicista de equilíbrio que lhe foi imputado por Bukharin e do conceito de sociedade como sistema auto-regulador elaborado pelo funcionalismo cibernético. Para Marx, o sistema não é nada, porque quem trava os combates e vence as guerras não é o sistema mas os homens que, em circunstâncias históricas determinadas, se organizam para mudar o mundo social. Compreender a sociedade humana como um processo auto-regulado que prossegue o seu caminho independentemente da consciência, das ideias e das lutas sociais dos homens é negar aos homens, sobretudo às vítimas do sistema social vigente, a capacidade de intervir no processo e de transformar o mundo. Coisificar o sistema como se ele fosse auto-suficiente para se ajustar às mudanças internas e externas e se mover é desumanizá-lo. Com o alargamento do âmbito de aplicação da teoria da homeostase aos processos socioculturais, Damásio acentua de tal modo esta desumanização que chega ao ponto de imaginar uma sociologia do nematóide C. elegans. O que distingue o cérebro rudimentar deste verme do cérebro consciente do homem é a optimização da regulação vital automatizada - maior eficiência fisiológica - levada a cabo pelo último, mas tanto um como o outro são «escravos» do impulso homeostático. (Leia outra vez o texto de Damásio que aparece em epígrafe e exercite o seu pensamento crítico!)
António Damásio desenvolve uma teoria geral da homeostase num outro capítulo do Livro da Consciência, usando e abusando de uma linguagem metafórica sacada da economia. Eu não sou contra o uso de conceitos sacados de outras disciplinas, mas, neste caso particular, penso que uma tal utilização pode contribuir para a legitimação ideológica do sistema económico vigente que não promove efectivamente o bem-estar da maior parte dos organismos. Este perigo de legitimar pelo uso da sua linguagem preferida - reificando-o como se fosse um bom sistema "natural" de regulação da vida - aquilo que deve ser transformado para garantir o bem-estar saudável dos organismos vivos avoluma-se quando se passa da homeostase automática para a homeostase sociocultural. Neste momento, o confronto da teoria homeostática de Damásio com a teoria antropológica de Clifford Geertz seria extremamente produtivo, não só ao nível do crescimento da cultura e da evolução da mente, como também ao nível da ideologia como sistema de cultura, onde a hipótese homeostática da cultura como sistema de gestão da vida parece ser mais vulnerável. Porém, apesar das minhas reservas quanto à terminologia económica utilizada por Damásio, não pretendo questionar a sua teoria da homeostase e a sua extensão a todos os domínios da vida, desde as moléculas e as células até aos organismos mais sofisticados dotados de cérebros conscientes. Damásio distingue duas classes amplas de homeostase: a homeostase básica ou automatizada e a homeostase sociocultural ou reflexiva. Esta distinção não implica o divórcio entre biologia e cultura, isto é, o divórcio entre a evolução biológica e a evolução sociocultural, como se a homeostase básica sob controle subcortical (tronco encefálico) fosse uma construção puramente biológica, e a homeostase sociocultural sob controle cortical, uma construção puramente cultural. Para Damásio, «a biologia e a cultura são interactivas», não no sentido de interagirem enquanto processos separados e distintos um do outro, como sucede na teoria da cultura de A.L. Kroeber, mas no sentido redutor da cultura não ser mais do que a grande revolução biológica gerada pela chegada do eu humano à mente ou, como diz Damásio noutro contexto, «uma segunda natureza colocada no inconsciente cognitivo» e em relação de subordinação ao inconsciente genómico - o grande sistema de controle - que determina a configuração inicial das artes e a estruturação primordial do espaço social: «Armada com as estruturas de eu tão complexas e apoiada por uma capacidade ainda maior de memória, raciocínio e linguagem, a mente consciente dos seres humanos cria os instrumentos da cultura e abre caminho a novas formas de homeostase ao nível da sociedade. A homeostase, dando um salto extraordinário, alarga-se ao espaço sociocultural. Os sistemas judiciais, as organizações económicas e políticas, a arte, a medicina e a tecnologia são exemplos dos novos dispositivos de regulação» da vida (Damásio). A cultura enquanto criação da mente consciente é de tal modo funcionalizada - o funcionalismo radical de Damásio - que perde a sua autonomia em relação ao continente Vida: ela mais não é do que um sistema reflexivo de regulação colocado ao serviço exclusivo da gestão e da protecção da vida, a premissa fundamental do princípio do valor biológico que guiou tanto a evolução das estruturas cerebrais como a evolução das operações cerebrais ou mentais. A teoria alargada da homeostase de Damásio visa, em última análise, naturalizar a mente - e os seus produtos e instrumentos culturais - numa perspectiva darwinista perfeitamente modificada pela elaboração do conceito de valor biológico: aceitar este alargamento da homeostase fisiológica à cultura e à sociedade é aceitar a cerebralidade da mente - e a sua mortalidade - e, no caso do homem, a cerebralidade difusa do maestro ou do chefe de orquestra que é o eu autobiográfico - e a sua mortalidade. Apesar de estarem separadas por milhares de milhões de anos de evolução biológica, as variedades básica e sociocultural da homeostase - que actuam como curadoras do valor biológico - «promovem o mesmo objectivo - a sobrevivência de organismos vivos - embora em nichos ecológicos distintos» (Damásio). Aquilo que parecia ser uma dissonância insuportável na teoria do desenvolvimento cultural de Damásio - o choque entre a sua perspectiva da cultura como sistema regulador da vida e a sua tese da mente independente e rebelde que surgiu com o eu auto-biográfico para «questionar os actos da natureza» - mais não é do que o reforço do núcleo duro da sua teoria alargada da homeostase. Com a entrada em cena da homeostase sociocultural no decurso de um longo período evolutivo, «mais uma vez o Pleistoceno», o objectivo da sobrevivência de organismos vivos expande-se, «englobando a procura deliberada do bem-estar». Quando menciona a arte rupestre do homem pré-histórico, Damásio destaca apenas o seu valor para a sobrevivência e o seu contributo para o desenvolvimento do conceito de bem-estar. Questionar os actos da natureza não significa - para o homem - libertar-se do quadro zoológico e construir consciente e livremente o seu próprio mundo e o seu próprio destino. A mais-valia da homeostase reflexiva reside tão-somente na procura deliberada do bem-estar. «Se o cérebro prevaleceu na evolução por oferecer uma regulação vital mais ampla, os sistemas cerebrais que levaram à mente consciente prevaleceram por oferecer uma mais vasta possibilidade de adaptação e de sobrevivência, a par do tipo de regulação capaz de manter e expandir o bem-estar»: com o uso do conceito de bem-estar, a teoria alargada da homeostase de Damásio torna-se alvo da crítica ideológica, que, de um modo puramente imanente, a confronta com os efeitos de mal-estar (obesidade, praga humana, envelhecimento da população europeia, doença de Alzheimer, atrofia dos órgãos mentais e cognitivos, perturbações psiquiátricas, exclusão social, pobreza, violência, guerras, fome, crescimento demográfico excessivo, stress, insegurança, angústia, depressão, incerteza, crises, etc.) e de crise ecológica (as doenças de Gaia identificadas por James Lovelock) produzidos pela procura deliberada do bem-estar - organizada e incentivada pelo hiper-capitalismo que nega ao homem a sua transcendência. A revolta da natureza é a revolta contra a ideologia do bem-estar que, depois de ter sido incorporada pelo organismo nas suas trocas metabólicas com a natureza e com os outros organismos, domesticou o homem (Konrad Lorenz), fazendo dele um animal metabolicamente reduzido, cujo estilo devorador de vida ameaça a continuidade da aventura biológica na terra.
J Francisco Saraiva de Sousa