«Podemos encarar a consciência humana e as funções que ela tornou possível - linguagem, memória expandida, raciocínio, criatividade, todo o edifício cultural - como as curadoras do valor dentro dos nossos seres tão ricos em mente, consciência e capacidade de interacção social. Podemos também imaginar um longo cordão umbilical que une a mente consciente, ainda mal separada das suas origens e para sempre dependente delas aos reguladores profundos, elementares e sem consciência, do princípio de valor. A história da consciência não pode ser contada de forma convencional. A consciência surgiu devido ao valor biológico, enquanto contribuidora para uma gestão mais eficiente do valor. Mas a consciência não inventou o valor biológico, nem o processo de valorização. Na mente humana, a consciência viria a revelar o valor biológico e permitiu o desenvolvimento de novas formas e meios de o gerir.» (António Damásio)
Comprometo-me a retomar a crítica das teorias - ou melhor, das hipóteses - de António Damásio. Infelizmente, a teoria crítica não elaborou uma teoria sistemática das relações entre cérebro e mente. Apesar desta lacuna teórica, lastimada por Theodor W. Adorno, possuímos os contributos decisivos de muitos filósofos e cientistas que trabalharam fora do âmbito da Escola de Frankfurt - mais preocupada com a psicanálise e a síntese freudo-marxista do que com as neurociências, dos quais destaco cinco figuras pioneiras: Mikhail Bakhtin, L.S. Vygotsky, A.R. Luria, Joseph Gabel e Ernst Bloch. As lacunas rudimentares da teoria neurobiológica da consciência de António Damásio, sobretudo como foi exposta na sua última obra, encontram-se «preenchidas» e superadas nas obras dos autores referidos. O materialismo dialéctico e histórico dos sábios marxistas pode completar - se essa fosse a minha tarefa - o materialismo neuro-redutor - por vezes, muito mecanicista - de Damásio, acrescentando-lhe o sentido como empreendimento cooperativo humano, fornecendo-lhe os conteúdos sociais da mente consciente e, sobretudo, evitando o seu desvio idealista financeiro no que se refere à concepção da sociedade, da história, da linguagem e da cultura. As referências filosóficas de Damásio são figuras filosoficamente pobres: John R. Searle, Patricia Churchland, R. McCauley, Daniel Dennett, Simon Blackburn, Ned Block, Owen Flanagan, T. Merzinger, David Chalmers, Galen Strawson e Thomas Nagel são, de um modo geral e talvez com a excepção do primeiro, figuras destituídas de verdadeira erudição filosófica e contaminadas pelo terrível deslumbramento do capitalismo fetichista de bolsa. A «cientificidade» da neuro-filosofia produzida por tais figuras é suspeita: a síntese cérebro-mente - a ciência unificada de P. Churchland - é instrumental e, por isso, presta-se à sua utilização ideológica por parte da ordem social estabelecida. Desgraçadamente, Damásio herda destas tristes e sombrias figuras filosóficas não só o seu estilo de pensar e de argumentar - a pobreza de imaginação criadora - mas também o seu individualismo burguês elevado a princípio metodológico (Karl Popper) e profundamente avesso à psicologia social de George H. Mead ou à sociologia da Escola Sociológica de Durkheim, para já não falar da teoria marxista da sociedade: «A perspectiva adoptada neste livro engloba uma hipótese que não é universalmente apreciada, e muito menos aceite - ou seja, a ideia de que os estados mentais e os estados cerebrais são, no seu essencial, equivalentes» (Damásio). Damásio é materialista quando estabelece esta identidade entre estados mentais e estados cerebrais, mas logo a seguir, depois de ter formulado a sua hipótese neurobiológica da consciência, abraça o idealismo para explicar as criações sociais e culturais da consciência, isto é, a história do homem: o seu individualismo cerebral é responsável por este desvio idealista que faz da história do homem um mero produto da consciência - sufragado pelo valor biológico. O neuro-reducionismo de Damásio não é, portanto, consistente em si mesmo e também não é congruente com a abordagem teórica - a quarta perspectiva dos aspectos neurobiológicos da mente - que adoptou logo no início do Livro da Consciência: «a busca de antecedentes do eu e da consciência no passado evolutivo». Ora, Vygotsky & Luria adoptaram a mesma perspectiva na sua obra Estudos sobre a História do Comportamento: Símios, Homem Primitivo e Criança, e, dado terem articulado a filogénese, a história e a ontogénese, recolheram resultados culturais e sociais mais ricos do que os obtidos por Damásio. O que falta a Damásio é o conceito de abertura do homem ao mundo, em especial ao mundo social e cultural, que não é estranho a Jean-Pierre Changeux: «Uma das mais-valias da divergência evolutiva que conduziram ao Homo sapiens é, bem entendido, o alargamento das capacidades de adaptação do encéfalo ao meio ambiente, acompanhado de um evidente aumento das aptidões para criar objectos mentais e para os combinar entre si. O pensamento desenvolve-se e enriquece-se a comunicação entre os indivíduos. Os laços sociais intensificam-se e, durante o período que se segue ao nascimento, deixam no cérebro de cada indivíduo uma marca original e em larga medida indelével» (Changeux). Changeux - tal como Charles Sherrington com a sua noção de cérebro como órgão de união - abre a porta das neurociências a uma teoria da construção social do cérebro consciente sem colidir com o interesse de emancipação que orienta a teoria crítica. Não conheço o modo como Damásio relaciona a consciência com a liberdade humana, mas, se a sua perspectiva for a mesma de Francis Crick, então o meu receio fica justificado: a síntese neurobiológica priva o homem da liberdade. A sua concepção fundamental da consciência como estando ao serviço do valor biológico - mediante o desenvolvimento de novas formas e meios de o gerir - aponta no sentido da negação da autonomia da História em relação à evolução biológica: a concepção hegeliana da história como «progresso na consciência da liberdade» é absolutamente estranha a Damásio, que não refere uma única vez essa jóia da «Filosofia da Consciência» que é a Fenomenologia do Espírito de Hegel. O que move a luta de vida ou de morte da consciência do escravo contra a consciência do senhor não é o valor biológico: hoje, no mundo árabe, os jovens dão a vida pela liberdade. Ao fazer da história do homem um anexo ou uma província da evolução biológica, Damásio silencia a sua voz perante o terrível e cruel espectáculo da exploração e da dominação do homem pelo homem, e este silêncio que é um apagão neural reflecte-se na sua concepção paupérrima da memória (Walter Benjamin) e do sonhar acordado (Ernst Bloch), o devaneio de Gaston Bachelard. A teoria neurobiológica da consciência de Damásio é o produto típico de um cérebro satisfeito consigo mesmo, com a sua "vidinha" egoísta - a do eu auto-biográfico que utiliza a introspecção para dar substância aos conceitos metafóricos que cria - e com o mundo tal como ele é - um inferno.
As obras de António Damásio:
Damásio, António (1994). O Erro de Descartes: Emoção, razão e cérebro humano. Mem Martins: Publicações Europa-América.
Damásio, António (2000). O Sentimento de Si: O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência. Mem Martins: Publicações Europa-América.
Damásio, António (2003). Ao Encontro de Espinosa: As emoções sociais e a neurobiologia do sentir. Mem Martins: Publicações Europa-América.
Damásio, António (2010). O Livro da Consciência: A construção do cérebro consciente. Lisboa: Círculo de Leitores.
J Francisco Saraiva de Sousa
9 comentários:
O que escrevi é suficiente para apresentar António Damásio. A discussão da sua hipótese nos seus detalhes será objecto de outros textos.
Estou triste porque sou forçado a superar filosoficamente Marx, mas vou conservar o espírito do marxismo. :)
Acho graça ao materialismo eliminativo de P. Churchland: não reduz o mental ao cerebral; elimina o mental. Um convite à eliminação dela própria! Absolutamente instrumental!
Porém, ao ver a psicologia popular como um programa científico degenerado, ela coloca um desafio, sobretudo quando elimina o feiticeiro e a possessão demoníaca: um desafio ao estudo da mente do homem primitivo...:)
Aprecio o monismo anómalo de D. Davidson: uma perspectiva interessante.
O monismo anómalo rejeita a tese da identidade dos tipos ou das propriedades mentais e dos tipos ou propriedades físicas, mas afirma a identidade dos tokens acontecimentos mentais e dos tokens acontecimentos físicos. Mas, sendo compatível com a realização múltipla dos acontecimentos mentais, não é reducionista: aliás, ele afirma a irredutibilidade da explicação psicológica à explicação física. Porém, é um monismo ontológico, segundo o qual só há acontecimentos físicos. Davidson definiu-o como um materialismo fraco ou minimal.
É - pelo menos - uma hipótese elegante, que infelizmente pode ser refutada com muito sucesso. :(
Enfim, certo, certo é o facto da nossa consciência ser uma espécie de anjo talmúdico: aparece para desaparecer pouco tempo depois. Parece ser mortal! E é isto que angustia as pessoas: o desaparecimento, a noite longa e profunda da morte.
E, quando Damásio fala das diversas patologias da consciência, destacando a cerebralidade da mente, mais não faz do que acentuar a sua mortalidade. Mistério!
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