quarta-feira, 30 de março de 2011

Agustina Bessa-Luís: O Resgate

«Os sábios experimentados da ciência da morte sabem que os moribundos têm de ser mantidos despertos e em plena consciência dos sintomas do seu fim. Doutro modo, eles não poderiam reconhecer a Luz Fundamental na sua realidade. A vida dos poetas assemelha-se a esse estado de confrontação em que o espírito se equilibra como uma agulha sobre um delgado fio; movida pelo sopro dos desejos egoístas e a força do eu, a agulha cai e a vida é arrastada de novo para a sua roda de padecimentos. Bardo significa entre dois estados; quer dizer, situação crepuscular e incerta que oscila entre a morte e o renascimento. Os lamas chamam bardo ao estado imediato à morte; o corpo bárdico começa então a usar as suas faculdades supranormais e pode atingir diversos graus duma nova existência. O bardo celta, ligado à função sacerdotal, manifesta-se pela poesia lírica ou heróica, e provavelmente teve origem na escola búdica, que ensina que tudo o que o homem pode aprender pode crer também. As imagens semeadas no seu pensamento durante a vida são fecundas no espírito que o acompanha na morte. O poeta ocidental, o que resta do bardo celta ou do seu mísero canto de cego e de vagabundo, contém a mentalidade do sonhador, baseada em experiências humanas incomensuráveis; é um produto intemporal que subleva a própria força de viver e a vontade de acreditar, de amar e de criar um mundo». (Agustina Bessa-Luís)

Infelizmente, Agustina Bessa-Luís (nascida em 1922) encontra-se nessa situação crepuscular e incerta que oscila entre a morte e o renascimento. O povo português é ingrato e cruel para com os seus intelectuais mais brilhantes e originais, reservando-lhes o esquecimento em vida e também depois da morte. O esquecimento ganha a forma de um homicídio intencional quando se trata de uma figura intelectual da Cidade do Porto: a inveja que as almas medíocres e saloias nutrem pelo espírito cultural da Cidade Invicta leva-as a adulterar e a falsificar a história da literatura portuguesa e do pensamento lusófono. Agustina Bessa-Luís agravou o seu exílio interior ao envolver-se voluntariamente com as forças partidárias da Direita: este seu compromisso político gerou desconfiança no espírito daqueles poucos homens libertos que poderiam fazer renascer a sua imensa obra literária e ensaística, ligando-a ao grande legado da tradição ocidental que luta pela emancipação do homem. As falsas amizades que rodearam Agustina Bessa-Luís foram fatais para a recepção da sua obra: as suas cores cinzentas eclipsaram o brilho e a luz que emanam da sua obra. Quem escreve deve saber escolher os seus amigos, e os bajuladores oportunistas são os piores inimigos que um autor pode escolher, porque no seu espírito mesquinho e atrofiado nada germina. Os pseudo-amigos de Agustina Bessa-Luís criaram um abismo entre a sua obra e os seus potenciais leitores inteligentes: eles secaram a fonte, não no sentido de se apropriarem da sua «mensagem» e do seu mundo, mas no sentido de a privarem do seu poder de fecundação em espíritos preparados para lhe dar continuidade. As sementes cognitivas lançadas por Agustina Bessa-Luís não germinaram nestas terras estéreis que são as terras portuguesas: a prova disso reside no facto de não termos ao nosso dispor um único estudo sério e profundo sobre o seu universo literário. A alma lusitana é, cultural e filosoficamente, estéril: Sampaio Bruno esboçou a evolução do romance na civilização europeia, mas o seu esforço teórico não surtiu nenhum efeito positivo sobre a alma estéril dos portugueses vindouros que preferem fingir que conhecem as últimas modas parisienses ou estrangeiras, em vez de actualizarem e de reinventarem o legado histórico da cultura portuguesa, em diálogo produtivo e dinâmico com as tradições literárias mundiais.

Porém, apesar deste eclipse em vida da obra de Agustina Bessa-Luís - aliás o destino de todas as mentes brilhantes portuguesas e das suas obras, podemos resgatar a sua obra para a posteridade, libertando-a dessa prisão política e ideológica e trazendo-a - sozinha sem o halo cinzento que a obscurece - à nossa presença: a obra deve ser lida sem a mediação obscura dessas figuras cinzentas que lhe negaram a germinação espiritual. A densidade psicológica das personagens dos romances de Agustina Bessa-Luís - por exemplo, Quina e Germa do romance A Sibila de 1954 - contrasta fortemente com a pobreza da vida psicológica dos seus leitores portugueses. Como já se tornou evidente, estou a «utilizar» a teoria da recepção para mostrar que a indigência mental e cognitiva dos leitores portugueses empobrece o universo de sentido das obras literárias e filosóficas: «No triângulo formado pelo autor, a obra e o público, este último não é de forma alguma um elemento passivo, que apenas reagiria em cadeia, mas antes uma fonte de energia que contribui para fazer a própria história. A vida da obra na história não é pensável sem a participação activa daqueles a quem se dirige. É a sua intervenção que faz entrar a obra na continuidade de um horizonte dinâmico de experiência, na qual se opera a permanente passagem de uma recepção simples a um comportamento crítico, de uma recepção passiva a uma recepção activa, e das normas estéticas reconhecidas a uma produção nova» (Hans Robert Jauss). Os textos literários são processos de significação que só se materializam e se concretizam na prática da leitura produtiva: quer dizer que sem a participação activa do leitor - e do seu acervo de conhecimentos prévios - não há obra literária (Wolfgang Iser). O leitor inteligente deve preencher as indeterminações - os hiatos e as lacunas - da obra literária, através da formulação de hipóteses construtivas sobre o seu significado e da sua revisão permanente: a leitura não é, portanto, um movimento linear e progressivo, mas antes um movimento para trás e para a frente (Roman Ingarden), no decorrer do qual as nossas suposições iniciais que geraram um quadro de referência para a interpretação do que vem a seguir estão constantemente a ser revistas e reformuladas pelo que se segue até alcançarmos a inteligibilidade da harmonia da sua totalidade orgânica. A teoria da recepção, pelo menos na versão de Iser e de Ingarden, implica o circuito fechado entre o leitor e a obra e, no plano social e ideológico, reflecte a condição fechada da instituição académica da Literatura: a abertura da obra é gradualmente eliminada à medida que o leitor consegue construir uma hipótese de trabalho capaz de reduzir o seu potencial polissémico a alguma forma de ordem - o texto fechado - que garanta o eu unificado do leitor. A agudeza da consciência histórica que atravessa a obra de Agustina Bessa-Luís permite romper com o modelo normativo - e funcionalista, no sentido das partes estarem adaptadas coerentemente ao todo - de Iser que bloqueia e refreia o potencial ilimitado da linguagem, situando desde logo as obras literárias num horizonte histórico: a obra literária é produzida num determinado contexto de significados culturais que o leitor crítico deve conhecer para poder em seguida explorar as suas relações variáveis com os horizontes históricos de todos os seus leitores históricos, de modo a produzir um novo tipo de história da literatura, centrada não nos autores, mas na literatura tal como foi definida e interpretada pelos seus diversos momentos de recepção histórica (Hans Robert Jauss). Nesta perspectiva, as obras literárias e as tradições literárias não permanecem constantes ao longo do tempo: elas sofrem modificações activas, de acordo com os diversos horizontes históricos dentro dos quais são recebidas, interpretadas e apropriadas. Se toda a obra literária encerra em si mesma um leitor implícito, como defendeu Sartre, então a obra de Agustinha Bessa-Luís exige um leitor dotado de uma consciência histórica suficientemente profunda para lhe permitir operar uma fusão de horizontes (Hans-Georg Gadamer). Ora, os leitores portugueses não se enquadram dentro do perfil geral do leitor posicionado na história: a escola portuguesa, sobretudo depois do 25 de Abril, com a emergência das novas pedagogias do atrasado mental, ensinou-os a fingir que descobrem os textos no vácuo social e cognitivo. Como é que criaturas destituídas de conhecimentos prévios podem interpretar e compreender correctamente obras literárias? Os zombies fabricados em série pela escola portuguesa são desafiados pelos seus professores a opinar arbitrariamente sobre os textos, sem terem aprendido que estão social e historicamente situados e que o modo pelo qual interpretam as obras literárias é profundamente marcado e condicionado por esse facto. Entre a obra literária e o público português não há faísca capaz de desencadear um diálogo produtivo, ou seja, uma leitura activa capaz de catalisar uma visão mais crítica das próprias identidades dos leitores: além de não ser capaz de preencher as lacunas do texto que está a ler, por falta de conhecimentos prévios, o leitor português não adquire através da prática da leitura um auto-conhecimento enriquecido. Ele compra as obras e coloca-as nas prateleiras da estante - lá de casa ou do gabinete de trabalho - para indicar aos outros um pretenso status cultural que não é efectivamente o seu. Em Portugal, a cultura é uma simulação mentirosa, um mero jogo de sociedade.

(Recomendo a leitura da trilogia O Princípio da Incerteza de Agustina Bessa-Luís: Jóia de Família (2001), A Alma dos Ricos (2002) e Os Espaços em Branco (2003).)

J Francisco Saraiva de Sousa

11 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estou chocado com a coligação negativa no Parlamento. Em suma, em Portugal só há um partido de esquerda - o PS, o resto é loucura que nos lança no abismo.

Denise disse...

O Porto tem um rosto que é também o de Portugal. Agustina. Merecedora do grande Nobel da Literatura.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Depois de concluir este texto introdutório, vou ver se analiso alguma obra dela, logo que tenha mais tempo. Ela merece o P Nobel.

Denise disse...

Agustina é um mar imenso. Até porque promove a inter-arte. Agustina vive nas palavras escritas mas também no cinema.

André LF disse...

Francisco, gostei muito da sua homenagem a Agustina.Também acho que ela merece um Nobel.
Infelizmente no Brasil, este país de hominídeos carnavalescos, a obra de Agustina é desconhecida. Sempre mantive contato estreito com esta escritora genial, um "mar imenso" como bem disse a Denise. Aprecio imenso a obra de Agustina, Miguel Torga e Vergílio Ferreira. Tenho a impressão de que os portugueses ainda não valorizam estes artistas inspirados pelo Absoluto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Os portugueses não prestam e, com a visita da vossa presidente, revelaram outro traço triste: são uns chulos. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Denise

Manuel de Oliveira deu vida ao universo de Agustina no cinema. E temos também as peças de teatro.

André

O conhecimento foi liquidado no mundo ocidental. Tenho estado atento às pessoas e fico aterrorizado com a sua desumanização - são hoje meros animais entregues às trocas metabólicas com a natureza. É provável que tenham sido sempre estes animais feios... A Filosofia fez uma imagem muito irrealista da natureza humana. Julgo ser necessário rever essas imagens do homem para pensar um outro futuro.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummm... estou contente por ter tb audiência no Irão! :)

Anónimo disse...

bem Agustina Bessa-Luis viveu muito tempo em Figueiró Amarante terra de meu falecido pai aldeia com profundas origens judaicas inspiração essa que prespassa a obra de tão talentosa escritora ninguém repara que é muito raro kafka não estar presente nos seus textos nem que seja a expia los

Anónimo disse...

mas acerca do nobel é um crime ainda não ter sido atribuido a Agustina mas é importante promovê la como deve ser com os melhores criativos que temos como a Espanha promoveu Saramago

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Barreiro

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