«Com a introdução do princípio de realidade, um tipo de actividade do pensamento separou-se e manteve-se livre do teste de realidade, continuando subordinado exclusivamente ao princípio de prazer. Esta actividade é o fantasiar - ou acto de elaboração da fantasia, que começa logo nas brincadeiras infantis e, mais tarde, prossegue como devaneio e abandona a sua dependência dos objectos reais». (Sigmund Freud)
Os meus leitores estrangeiros mais jovens foram seduzidos pela utilização do conceito de Porto-Fantasia para designar a arquitectura da Cidade Invicta. Nos nossos diálogos privados, eles operam uma espécie de síntese erótica entre o meu olhar-(o)-Porto e a minha paixão pela cidade do Porto, por um lado, e as minhas supostas paixões carnais vividas em lugares de sonho - espaços de desejo-corpo-fusão - do Porto, por outro. E, como a paixão é um estado de alma do poeta, neste caso do "bardo da Cidade Invicta" (eu próprio!), concluem que o Porto-Fantasia é uma imagem poética, mediante a qual o meu corpo-olhar-libido investe o Porto e a libido do Porto investe o meu Eu-corpo. Esta fusão erótica Eu-corpo-Porto permite-lhes ver e ler o Porto no meu olhar-rosto-boca-nariz-mãos-cabelo, e o meu olhar-rosto-boca-nariz-mãos-cabelo nos espaços de gratificação do Porto. Enfim, eu sou o Porto - o rosto imortalizado da beleza do Eu-corpo-Porto - e o Porto sou eu enquanto corpo-espaço-animado por uma alma poeticamente apaixonada. Aqueles que conhecem melhor a história de Portugal introduzem uma figura de redenção - a figura de D. Sebastião, que pensam ser encarnada por mim, para reforçar a ontologia que me atribuem, onde o Ser é definido como Eros (a velha noção platónica de ser!), e a sua interpretação do Porto-Fantasia como corpo-espaço-promessa de gratificação plena e corpo-espaço-luta pela gratificação. Porém, a erotização da fusão Eu-corpo-Porto tem um carácter universal (o Porto como ninho do amor universal?), porque cada um dos traços ou das estruturas do meu-rosto-Porto traz a marca genética de outros povos e de outras cidades do mundo global: as culturas (urbanas) fundem-se no meu Eu-corpo-Porto e os espaços de desejo-sonho-utopia do meu Eu-corpo-Porto são espaços de fusão cultural. Um materialismo do corpo-desejo ou um vitalismo do corpo-desejo? Ou talvez uma fenomenologia do corpo-desejo-fusão-simbiose? Deixo ao leitor-possuidor de conhecimentos filosóficos a tarefa de seguir até ao fim um destes caminhos: as três chaves de leitura propostas permitem elaborar uma filosofia para estas conversas virtuais a propósito de fotografias da cidade do Porto que partilho no Facebook.
Os meus amigos(as) leitores(as) são jovens estrangeiros inteligentes e, se não se desviarem do caminho correcto que estão a trilhar, sérios candidatos a filósofos. Para fazer justiça à sua inteligência, escolhi uma citação de Freud, apresentada em epigrafe e extraída de Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental (1911), para dar conta do pressuposto psicanalítico da teoria estética do Porto-Fantasia. Quem acompanha regularmente este blogue sabe que já dediquei muitos textos à cidade do Porto e à arquitectura da cidade do Porto. A ideia orientadora do Porto-Fantasia nasceu da tentativa de elaborar uma teoria estética da arquitectura da cidade do Porto, acompanhando ora de perto ora de longe o esquema geral da arquitectura da cidade formulado por Aldo Rossi. Porém, quando forjei o conceito de Porto-Fantasia, usei-o para designar estilos arquitectónicos ou fragmentos - tais como casario, ruas, praças, espaços urbanos, comportamentos urbanos, escadarias, o carácter fálico da cidade, as torres, os jardins, etc. - da Cidade Invicta. Além disso, o conceito de Porto-Fantasia foi elaborado em diálogo com Herbert Marcuse, Gaston Bachelard, Ernst Bloch e Henri Lefebvre, para já não falar de Martin Heidegger e de Maurice Merleau-Ponty, tendo como fio condutor a relação entre Fantasia e Utopia: o conceito freudiano de fantasia e de fantasma foi esbatido por estas leituras que opõem à lógica da dominação a lógica da gratificação. Ora, a necessidade de formular um novo Logos - o bem-estar, o mundo melhor, a gratificação, o prazer - justifica até certo ponto a interpretação do Porto-Fantasia apresentada pelos meus amigos virtuais, mas devo confessar que este projecto estético foi movido por um interesse autonómico: o Porto-Cidade-Estado livre de um país hostil. A Utopia da Independência é descoberta, revelada e antecipada na própria arquitectura da Cidade Invicta, a Cidade Azul-Celeste que resiste à dominação portuguesa. Por vezes, à margem dos textos, recorri a uma figura bíblica para reforçar o desejo de autonomia: a luta entre Jerusalém - o Porto-Vertical - e Babilónia - Lisboa-Corrupta, o que me valeu a honroso título mundial de David (o rei judeu!) de Portugal. E foi assim que os meus amigos estrangeiros ficaram a saber que o Porto deu o nome a Portugal - Portucale, tal como é dito por Alexandre Herculano e pelo Hino do Futebol Clube do Porto. Hoje, a teoria do Porto-Fantasia precisa ser reformulada em função da concepção apocalíptica da História que formulei recentemente. Como disse num texto anterior: «A tonalidade apocalíptica que descubro na obra de Daniel Gamelas e de Daniel Africano, bem como nos quadros de transparências e de luz de Armando Aguiar, agrada-me especialmente: os mistérios escondidos nas ruas e no casario do Porto são sinais apocalípticos - memórias e ruínas de um passado que não pode ser esquecido sem que o mundo mergulhe na catástrofe».
Com esta frase, dei início à nova reformulação da teoria do Porto-Fantasia que, para ser fiel ao espírito de fusão das culturas proposto pelos meus amigos estrangeiros, vejo doravante como Porto-(Abrigo-)Seguro. Aos amigos judeus, concedo um desejo: A Assembleia dos 36 Homens Justos, entre os quais está o Santo Oculto (nistar), está sediada virtual e anonimamente no Porto-Abrigo-Seguro. Segundo uma tradição que remonta aos tempos talmúdicos, há, em cada geração, trinta e seis homens justos que zelam pelos fundamentos do mundo: eles agem oculta e anonimamente - longe da visibilidade dos espaços públicos oficiais onde mora o Mal Radical - para garantir a ordem do mundo sem o conhecimento da humanidade. Os místicos judeus acreditam que o Messias pode estar entre estes homens ocultos, permanecendo oculto até a época estar à sua altura, mas nós sabemos hoje que o mundo caminha inexoravelmente para a catástrofe final. Por isso, em vez de um Redentor, condenado a permanecer oculto até à catástrofe final, porque a humanidade nunca estará à sua altura, precisamos de um Santo Oculto - o Anjo Azul-Negro da Noite Eterna - que anuncie o Apocalipse sem salvação possível. Meus amigos estrangeiros: Eu não sou D. Sebastião e muito menos o Salvador de Portugal, a terra da maldição perpétua, mas sim o Anjo Azul-Negro que, perante a impotência de Deus, anuncia a catástrofe final como sentido último da história dos homens. O materialismo dos encontros aleatórios de Althusser reconduziu-me à termodinâmica dos processos irreversíveis de Ilya Prigogine: o nosso universo - aquele em que vivemos - não se construiu contra as leis da termodinâmica; pelo contrário, «foi graças ao segundo princípio (da termodinâmica) que o universo se desenvolveu, e que a matéria leva em si o signo da flecha do tempo». A finitude radical do nosso universo condena desde logo a aventura histórica humana à aniquilação absoluta, o que quer dizer que o futuro não nos pertence e que não adianta, pelo menos no plano da história humana, tentar colonizá-lo. O universo inteiro caminha para a catástrofe e o tempo que precede esta nossa existência poderá fazer nascer outros universos, mas estes novos universos já não serão o nosso universo. É certo que a aventura humana não é limitada apenas por este horizonte cosmológico finito, mas ele é suficiente para mostrar o carácter ilusório da conquista do tempo e da tentativa de subjugar a morte. A fecha do tempo implica uma outra reapropriação da história da Filosofia Ocidental, mediante a qual nos libertamos da velha ilusão do círculo fechado - encerrando em si o passado, o presente e o futuro - que a domina desde Aristóteles (nous theos) até Nietzsche (eterno retorno), passando por Hegel (ideia absoluta) e Marx (comunismo). Oh, amigos alucinados que devoram o mundo, como se vivessem num oásis paradisíaco alheio ao destino do universo, escutai-me: as duas lógicas testadas para vencer o tempo - a da dominação e a da gratificação - são filhas de uma mesma ilusão: a ilusão da estabilidade que se fecha à criação e da eternidade que recusa o devir. Além de não conseguirem travar a flecha do tempo, estas lógicas mergulham a aventura histórica humana no abismo. Ora, a grande política está para além deste velho antagonismo entre dominação e gratificação: a grande política que recusa domesticar a morte e a angústia é, essencialmente, criação permanente de uma sociedade que saiba adiar a catástrofe final e dar um sentido à própria finitude. O homem só será verdadeiramente livre no dia em que aceitar serenamente a sua própria finitude e souber viver sem ilusões, completamente desenganado: a sua morte é necessária para a renovação da vida e da sociedade. A utopia médica louvada por Ernst Bloch - sobretudo no seu aspecto de prolongamento da vida humana - condena o mundo ao envelhecimento e à morte: a utopia médica é a anti-utopia por excelência, aquela que não permite continuar a sonhar um mundo melhor num universo condenado à aniquilação. Sem a morte - a Grande e Bela Senhora Morte! - a vida não pode ser renovada para criar uma sociedade que resista aos poderes aniquiladores que se abrigam no seu próprio tecido temporal. Festejemos a Morte, em vez de a chorar! Festejemos as guerras mortíferas que renovam as sociedades! Festejemos os que recusam viver uma vida que não escolheram! Festejemos simplesmente a Morte, a nossa por antecipação e a dos outros próximos ou distantes! A imprevisibilidade do futuro - afinal, quem previu a Queda do Muro de Berlim?, quem prevê o colapso iminente do capitalismo? - orienta a nossa atenção - no momento presente - para o passado. E é precisamente a memória redentora do passado que permite elaborar a teoria estética do Porto-Fantasia no âmbito mais vasto da concepção apocalíptica da história, tarefa que levaremos a cabo noutros textos. A redenção que nos é negada pela impotência de Deus pode e deve ser vivida e realizada no tempo de agora - aqui e agora no Porto-Abrigo-Seguro - em comunhão com as vítimas do passado opressor: a recordação-em-fantasia desse passado e a sua restituição são tudo o que nos resta depois de termos quebrado o feitiço de todas as ilusões e adições, neste universo finito que nos esquecerá quando ocorrer a catástrofe final. (Photo: Rua da Reboleira, Centro Histórico, OPorto.)
J Francisco Saraiva de Sousa
5 comentários:
Hummm..., comecei bem o 3º parágrafo, mas logo a seguir desviei-me do Porto-Abrigo-Seguro. Porque será? A termodinâmica está a esquentar os meus neurónios: Preciso dela e da fecha do tempo para anunciar o Apocalipse sem redenção possível, mas ao mesmo tempo ando a ser assediado por Hobbes numa versão que vos escapa de todo. Quero resistir ao Mal olhando de frente - missão terrivelmente perigosa. Mas como não alimento ilusões tb não temo a Morte. Terei vencido o Medo? Nesse caso, posso avançar com a Revelação da Verdade!
Ah, amigos, não me digam - Hello Nietzsche de Portugal! Porque para mim Nietzsche foi um "profeta"; eu sou efectivamente o fim das ilusões que abre um novo, novíssimo horizonte...
A verdade - a grande verdade é que a filosofia contemporânea ainda não consegui escapar ao assédio da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Eu só consigo escapar dela através de uma teoria do anti-desejo que fulmina Nietzsche, mas nesse caso seria um bin-activista! :(
Porém, não consigo evitar que essa teoria do anti-desejo opere desde logo - de forma velada - na teoria apocalíptica da história. Daí o outro assédio - o de Hobbes. Pensar é perigoso - deixa-nos nus...
É humilhante como Portugal se submete ao capitalismo necrófilo mundial!
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