«O efeito global da indústria cultural é o de uma antidesmistificação, a de um anti-esclarecimento (anti-Aufklärung); nela, como Horkheimer e eu escrevemos, o esclarecimento (Aufklärung), isto é, o progressivo domínio técnico da Natureza, converte-se num logro colectivo, num instrumento de coacção da consciência. Ela impede a formação de indivíduos autónomos e independentes, capazes de avaliar com consciência e de tomar decisões.» (Adorno) John R. Searle é, de todos os filósofos da mente, o mais lúcido, o mais criativo (teoria dos actos de fala) e, por isso, merece um pouco mais de atenção. Porém, a sua teoria da mente é deveras redutora e, no fundamental, dogmática. Eis um resumo da sua teoria: «Consciência, em resumo, é uma característica biológica de cérebros de seres humanos e determinados animais. É causada por processos neurobiológicos, e é tanto uma parte da ordem biológica natural quanto quaisquer outras características biológicas, como a fotossíntese, a digestão ou a mitose» (Searle). Esta é uma formulação dogmática da teoria da mente. Embora não conheçamos «o detalhe de como cérebros causam consciência», Searle pensa que é neste sentido que devemos orientar a nossa pesquisa das relações entre cérebro e mente, porque está em sintonia com a "nossa visão científica do mundo", que resume nestes termos: «A nossa imagem do mundo, embora extremamente complicada em detalhe, fornece uma explicação bastante simples do modo de existência da consciência. De acordo com a teoria atómica, o universo é constituído de partículas. Estas partículas estão organizadas em sistemas. Alguns desses sistemas são vivos, e esses tipos de sistemas vivos evoluíram por longos períodos de tempo. Entre eles alguns desenvolveram cérebros que são capazes de causar e sustentar consciência. Consciência é, assim, uma característica biológica de determinados organismos, exactamente no mesmo sentido "biológico" em que a fotossíntese, a mitose, a digestão e a reprodução são características biológicas de organismos» (Searle). Apesar da sua profundidade de pensamento e da sua defesa da "ontologia da subjectividade", Searle limita-se, no fundamental, a proferir uma "profissão de fé" numa determinada "visão científica do mundo", fortemente materialista, redutora e simplista, porque no âmbito desta concepção os animais dotados de consciência exibem outras características não mencionadas mas intimamente relacionadas com a consciência, tais como aquilo a que Searle chama no final do seu livro "A Redescoberta da Mente" «o carácter social da mente». Afirmar que "o cérebro causa a mente" é assumir uma tese do materialismo mecanicista, a que chama "naturalismo biológico", superada pela versão histórica e dialéctica do materialismo proposta por Marx. Este "descuido" está bem patente na sua afirmação peremptória: «a ontologia do mental é uma ontologia irredutivelmente de primeira pessoa», como se a "sociedade" fosse estranha ou mesmo "externa" a essa ontologia da subjectividade! Não admira que Searle confesse que ainda não sabe «como analisar a estrutura do elemento social na consciência individual»! Se tivesse lido Mikhail Bakhtin, um discípulo de Marx, teria sido confrontado com este enunciado: «A consciência individual é um facto sócio-ideológico», porque a «consciência (só) adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso das suas relações sociais». Ou, no caso de desconfiar do marxismo, poderia ter levado mais a sério a teoria da génese social do "self" de George Mead ou mesmo a de Cooley! Mas Searle prefere fingir que re-descobre tudo o que já tinha sido descoberto, mediante o exercício individualista, portanto, descontaminado social e ideologicamente, do seu entendimento! Em última análise, podemos dizer que Searle se limita literalmente a "re-descobrir" (termo que se inspira em Bruno Snell, cuja teoria Searle parece não compreender) aquilo que já tinha sido descoberto por outros filósofos, mas que, em virtude da sua ortodoxia dogmática, é incapaz de captar no seu carácter genuíno, aquele que aponta para além do biologismo. Neste sentido, é possível colocar "Searle contra Searle", tarefa que levaremos a cabo noutros posts, levando a sério a sua perspectiva de que «a filosofia da linguagem é uma ramo da filosofia da mente». J Francisco Saraiva de Sousa
quinta-feira, 31 de janeiro de 2008
quarta-feira, 30 de janeiro de 2008
Mito, História e Terras Selvagens
«As florestas tropicais e, em particular, a Amazónia, tornaram-se um símbolo, assim como o buraco na camada de ozono e o efeito estufa. Um símbolo inquietante, ameaçador, representante de um planeta doente, à deriva.» (G. Bologna) Este é um título inspirado numa obra de Frederick Turner (1980), "Beyond Geography", onde este autor propõe uma nova filosofia da natureza encarada, em última análise, como uma filosofia da história, conceptualmente inspirada na fenomenologia religiosa de Mircea Eliade, mas congruente com a filosofia da história de Max Weber, fortemente influenciada pela crítica do cristianismo de Nietzsche, e retomada, em chave marxista, pela dialéctica do esclarecimento de Horkheimer e de Adorno.
Foi esta obra que me levou a lançar um desafio ao Manuel Rocha, o autor do blogue "Bolinas", o qual respondeu com este texto Desafio à Bolina, dando origem a uma polémica amigável. Porém, apesar de já ter apresentado a minha leitura neste post Ecologia Profunda e Política, aproveito esta ocasião para relembrar alguns conceitos muito esquecidos pelos portugueses, provavelmente nunca assimilados, a avaliar pelos debates anticristãos que surgem constantemente na blogosfera nacional. A nossa civilização ocidental foi profundamente moldada pelo judaísmo e pelo cristianismo, de uma forma não compreendida pelos portugueses. Conforme demonstrou Max Weber, o processo de secularização já está presente no Antigo Testamento e é esta a ideia retomada por Frederick Turner, que a plasma e a desenvolve como a «história de uma civilização que substituiu o mito pela história como forma de entender a vida». A história da expansão europeia na América é recontada de modo a mostrar esta concepção em acção: «A verdadeira história da exploração ocidental e, portanto, dos Estados Unidos, é de ordem espiritual», baseada na «mais certa das realidades: o espírito humano e a sua dura necessidade de realizar-se através do corpo e do espaço». O cristianismo operou uma passagem do mito para a história e esta passagem implica uma mudança de visão da natureza ou de paradigmas naturais, cuja diferença pode ser ilustrada «pelas expressões controle-pela-veneração e controle-pelo uso. Ou, como já foi observado, é a diferença entre tratar o cosmos por "Vós" ou tratar o cosmos por "Coisa"». De certo modo, esta diferença surge com «o aparecimento da civilização no Médio Oriente», posteriormente encarnada pela civilização ocidental. Onde surge a civilização, superam-se os sentimentos mais antigos e orgânicos: «a gratidão à natureza e a interdependência vital de todas as coisas. Estes sentimentos foram deslocados pelas noções masculinas de confrontar a força (natural) com outra força e da oposição permanente entre o homem e a natureza. A velha concepção de uma terra mãe e fecunda foi transformada na simbologia de uma luta vencida, com o falo metálico do arado a introduzir a sua semente grávida no subtilmente resistente útero/solo. As cidades verticais e estéreis, reluzindo na paisagem, esculpiam leões e bois para vigiar os seus portões contra todos os perigos exteriores. Da forma como surgiu nesta região, a civilização conscientemente criou muros que a separavam das harmonias orgânicas e definiu-se em termos de oposições» (Turner). Deste modo, o "impulso mitológico" é substituído pelo "impulso tecnológico". «Em todos os lugares em que as culturas humanas desenvolveram e mantiveram um contacto íntimo e vital com os seus habitats, sem os isolamentos da alta tecnologia e as concomitantes rupturas, arrogâncias e desperdícios, em suma, em todos os lugares onde a mitologia é a mais desenvolvida das tecnologias, aí existem esses artefactos de comunhão e de adaptação». Ora, a civilização impõe a desmitologização e, consequentemente, uma visão antropocêntrica, que incentiva o abandono da sensação generalizada de inviolabilidade de muitas partes da natureza e permite a sua exploração eficiente: este é o caminho percorrido pelo desenvolvimento cultural e pela acumulação de confortos, aquele caminho que Turner narra a propósito da conquista ocidental das terras selvagens americanas. Esta história espiritual encarnada pela civilização ocidental criou uma terrível ilusão: «Cada nova protecção contra o mundo natural ajuda um pouco a construir a de independência da natureza, que com o tempo ajuda a erigir a maior das ilusões: a omnipotência do homem» (Turner). No caso da nossa civilização, aquela que levou até às últimas consequências este processo de rejeição da natureza e de glorificação do poder do homem, consolidando o seu domínio do mundo, coube ao cristianismo, em continuidade com o judaísmo que fundou «o monoteísmo na geografia espiritual da humanidade», dessacralizar a natureza, encarando-a não como um poder com o qual os homens pudessem estabelecer uma relação de celebração e de reverência (a perspectiva do mito), mas como um poder maléfico que urge conquistar e domar (a perspectiva da história). Daí a inclinação cristã para levar a cabo a guerra contra os «povos politeístas», visível nas Cruzadas ou mesmo na Inquisição. Ao contrário do mito que exprimia um «terror pela história» através do alívio da tensão e da ansiedade do homem perante a morte e do congelamento do tempo, o cristianismo como história vive para o futuro, na esperança de recuperar num futuro apocalíptico aquilo que certa vez teve no passado (1), mortifica o corpo, o que produz a miséria gradual da alma (2), e luta contra os infiéis (3). «Em termos mais específicos, o grande fardo da história cristã traduz-se nas agressões contra o corpo, contra o mundo natural, contra os primitivos, heréticos e cépticos, e na esperança vã, trágica, pateticamente teimosa de alcançar deste modo uma fé ou um paraíso perdidos» (Turner). Ao secularizarem radicalmente esta concepção cristã da história, as filosofias da história tendem a aceitar a sua ideia-base: a rejeição da natureza permite ao homem ser «o único animal que faz história», uma história que, como sabemos hoje, está a destruir a natureza, ameaçando a própria continuidade da aventura humana numa "terra devastada" (Eliot). Apesar disso, como deixei bem patente num comentário feito no blogue de Manuel Rocha, qualquer tentativa de regressar atrás aos "tempos do mito" seria mais catastrófica do que continuar a caminhar para a frente, fazendo tudo o que podemos para repor os equilíbrios naturais destruídos, e convencer os povos vernaculares a não seguirem as nossas pisadas, na esperança de que as nossas acções não sejam demasiado tardias para salvar o futuro do nosso planeta. É certo que não expusemos toda a concepção da história espiritual da civilização tal como foi analisada por Turner, mas aquilo que dissemos é por agora suficiente para mostrar a necessidade de elaborar uma nova filosofia da natureza, portanto, um novo paradigma da natureza, do qual podem surgir novas orientações para as políticas ambientais capazes de conservar os ecossistemas naturais e a biodiversidade, sem os quais o homem não pode viver. J Francisco Saraiva de Sousa
Foi esta obra que me levou a lançar um desafio ao Manuel Rocha, o autor do blogue "Bolinas", o qual respondeu com este texto Desafio à Bolina, dando origem a uma polémica amigável. Porém, apesar de já ter apresentado a minha leitura neste post Ecologia Profunda e Política, aproveito esta ocasião para relembrar alguns conceitos muito esquecidos pelos portugueses, provavelmente nunca assimilados, a avaliar pelos debates anticristãos que surgem constantemente na blogosfera nacional. A nossa civilização ocidental foi profundamente moldada pelo judaísmo e pelo cristianismo, de uma forma não compreendida pelos portugueses. Conforme demonstrou Max Weber, o processo de secularização já está presente no Antigo Testamento e é esta a ideia retomada por Frederick Turner, que a plasma e a desenvolve como a «história de uma civilização que substituiu o mito pela história como forma de entender a vida». A história da expansão europeia na América é recontada de modo a mostrar esta concepção em acção: «A verdadeira história da exploração ocidental e, portanto, dos Estados Unidos, é de ordem espiritual», baseada na «mais certa das realidades: o espírito humano e a sua dura necessidade de realizar-se através do corpo e do espaço». O cristianismo operou uma passagem do mito para a história e esta passagem implica uma mudança de visão da natureza ou de paradigmas naturais, cuja diferença pode ser ilustrada «pelas expressões controle-pela-veneração e controle-pelo uso. Ou, como já foi observado, é a diferença entre tratar o cosmos por "Vós" ou tratar o cosmos por "Coisa"». De certo modo, esta diferença surge com «o aparecimento da civilização no Médio Oriente», posteriormente encarnada pela civilização ocidental. Onde surge a civilização, superam-se os sentimentos mais antigos e orgânicos: «a gratidão à natureza e a interdependência vital de todas as coisas. Estes sentimentos foram deslocados pelas noções masculinas de confrontar a força (natural) com outra força e da oposição permanente entre o homem e a natureza. A velha concepção de uma terra mãe e fecunda foi transformada na simbologia de uma luta vencida, com o falo metálico do arado a introduzir a sua semente grávida no subtilmente resistente útero/solo. As cidades verticais e estéreis, reluzindo na paisagem, esculpiam leões e bois para vigiar os seus portões contra todos os perigos exteriores. Da forma como surgiu nesta região, a civilização conscientemente criou muros que a separavam das harmonias orgânicas e definiu-se em termos de oposições» (Turner). Deste modo, o "impulso mitológico" é substituído pelo "impulso tecnológico". «Em todos os lugares em que as culturas humanas desenvolveram e mantiveram um contacto íntimo e vital com os seus habitats, sem os isolamentos da alta tecnologia e as concomitantes rupturas, arrogâncias e desperdícios, em suma, em todos os lugares onde a mitologia é a mais desenvolvida das tecnologias, aí existem esses artefactos de comunhão e de adaptação». Ora, a civilização impõe a desmitologização e, consequentemente, uma visão antropocêntrica, que incentiva o abandono da sensação generalizada de inviolabilidade de muitas partes da natureza e permite a sua exploração eficiente: este é o caminho percorrido pelo desenvolvimento cultural e pela acumulação de confortos, aquele caminho que Turner narra a propósito da conquista ocidental das terras selvagens americanas. Esta história espiritual encarnada pela civilização ocidental criou uma terrível ilusão: «Cada nova protecção contra o mundo natural ajuda um pouco a construir a de independência da natureza, que com o tempo ajuda a erigir a maior das ilusões: a omnipotência do homem» (Turner). No caso da nossa civilização, aquela que levou até às últimas consequências este processo de rejeição da natureza e de glorificação do poder do homem, consolidando o seu domínio do mundo, coube ao cristianismo, em continuidade com o judaísmo que fundou «o monoteísmo na geografia espiritual da humanidade», dessacralizar a natureza, encarando-a não como um poder com o qual os homens pudessem estabelecer uma relação de celebração e de reverência (a perspectiva do mito), mas como um poder maléfico que urge conquistar e domar (a perspectiva da história). Daí a inclinação cristã para levar a cabo a guerra contra os «povos politeístas», visível nas Cruzadas ou mesmo na Inquisição. Ao contrário do mito que exprimia um «terror pela história» através do alívio da tensão e da ansiedade do homem perante a morte e do congelamento do tempo, o cristianismo como história vive para o futuro, na esperança de recuperar num futuro apocalíptico aquilo que certa vez teve no passado (1), mortifica o corpo, o que produz a miséria gradual da alma (2), e luta contra os infiéis (3). «Em termos mais específicos, o grande fardo da história cristã traduz-se nas agressões contra o corpo, contra o mundo natural, contra os primitivos, heréticos e cépticos, e na esperança vã, trágica, pateticamente teimosa de alcançar deste modo uma fé ou um paraíso perdidos» (Turner). Ao secularizarem radicalmente esta concepção cristã da história, as filosofias da história tendem a aceitar a sua ideia-base: a rejeição da natureza permite ao homem ser «o único animal que faz história», uma história que, como sabemos hoje, está a destruir a natureza, ameaçando a própria continuidade da aventura humana numa "terra devastada" (Eliot). Apesar disso, como deixei bem patente num comentário feito no blogue de Manuel Rocha, qualquer tentativa de regressar atrás aos "tempos do mito" seria mais catastrófica do que continuar a caminhar para a frente, fazendo tudo o que podemos para repor os equilíbrios naturais destruídos, e convencer os povos vernaculares a não seguirem as nossas pisadas, na esperança de que as nossas acções não sejam demasiado tardias para salvar o futuro do nosso planeta. É certo que não expusemos toda a concepção da história espiritual da civilização tal como foi analisada por Turner, mas aquilo que dissemos é por agora suficiente para mostrar a necessidade de elaborar uma nova filosofia da natureza, portanto, um novo paradigma da natureza, do qual podem surgir novas orientações para as políticas ambientais capazes de conservar os ecossistemas naturais e a biodiversidade, sem os quais o homem não pode viver. J Francisco Saraiva de Sousa
terça-feira, 29 de janeiro de 2008
Prós e Contras: Economia: Dias de Incerteza
«Sem a persuasão maciça e hábil que cria o condicionamento da procura, a abundância crescente poderia ter enfraquecido o interesse das pessoas pela aquisição de maior número de bens. (...) Por isso, a publicidade e as técnicas contribuem para criar o tipo de indivíduo que se coaduna com os fins do sistema industrial: aquele que despende regularmente o que ganha e que trabalha constantemente porque tem sempre necessidade de mais». (John K. Galbraith) O programa "Prós e Contras" de hoje (28 de Janeiro de 2008), dedicado inicialmente ao "Optimismo ou Pessimismo", teve por objectivo analisar o impacto da crise financeira do capitalismo americano no mundo global, em especial na Europa e em Portugal. Dois dos convidados, Eduardo Catroga e Carlos Carvalhas, com o contributo de Ferreira do Amaral, discutiram o assunto numa perspectiva macroeconómica, enquanto Ferreira de Oliveira se referiu à microeconomia. Com excepção, aliás muito «moderada» de Carlos Carvalhas, todos preferiram apostar mais no «optimismo» do que no «pessimismo» e começaram a usar o termo "capitalismo" para designar o sistema económico vigente. Este facto revela uma tese que tenho defendido: a "economia burguesa" nada mais é do que a implementação de artifícios que visam evitar aquilo que Marx previu cientificamente: a irracionalidade da economia capitalista. Esta crise põe em questão a viabilidade da "sociedade de consumo" como modelo capaz de viabilizar um capitalismo sem crises. A exploração dos "consumidores" leva-os à penúria e os "ricos" estão cada vez mais "ricos".
Porém, quem procurava neste programa novos esclarecimentos sobre as causas e as consequências desta crise do capitalismo e recessão económica deve ter chegado ao fim sem ter percebido grande coisa. Isso acontece devido ao "formato" (sentido genérico) do próprio programa: um mostruário de pessoas fortemente envolvidas nas diversas esferas de decisão nacional, que, dada a sua responsabilidade na situação pouco confortável do país, acabam por fazer uma defesa do sistema português. Vou tentar exemplificar isto centrando-me em duas frases muito curiosas de Catroga.
1) "A economia não é uma ciência exacta". O recurso a uma suposta «autoridade científica» é recorrente na política nacional. Os nossos lideres apresentam e fundamentam as suas decisões políticas com base em «estudos científicos ou técnicos». Deste modo, evitam debater as decisões e apresentar argumentos racionais a seu favor. Os «estudos» são usados como "anti-argumentos": a decisão é incontornável e parece estar previamente tomada! Já temos desmistificado esta ausência de transparência, provavelmente favorável à prática da corrupção generalizada em que está mergulhado o país. Catroga parece ter desmentido o carácter inexorável da decisão tomada exclusivamente com base em «estudos técnicos», porque afirmou que a economia não era uma ciência exacta. Mas esqueceu-se de dizer que, na verdade, não existem "ciências exactas" e que esta é uma noção ideológica, precisamente aquela que permite utilizar os estudos para implementar políticas dadas como incontornáveis: aquelas que garantem a continuidade do status quo.
Contudo, podemos ser mais benevolentes com Catroga e desculpar-lhe este "lapso político positivista", porque ele reconheceu que esta crise do capitalismo deve levar as pessoas a pensar que este sistema, apesar dos seus méritos inegáveis, aliás apontados por Marx e Engels no "Manifesto Comunista", não resolve da melhor forma todos os problemas. Citando Bill Gates, Catroga defendeu um "capitalismo criativo", sem definir o que entende por tal expressão. Porém, ao reconhecer as limitações internas do próprio capitalismo e os perigos da globalização em curso, Catroga revela, de algum modo, preocupação com o impacto "imprevisível" desta recessão na economia e na sociedade portuguesas, aliás bem esmiuçada por Carlos Carvalhas, o único que tentou fazer uma análise económica desta recessão que ameaça os USA.
2) Afinal, a economia não é exacta, porque não pode fazer previsões seguras! Porém, quando se referiu ao Instituto Nacional de Estatística e à qualidade dos seus estudos, Catroga explicita aquilo que deveras pensa mas não quis partilhar, talvez por ter tido as suas próprias responsabilidades políticas. A expressão "metodologia técnica" usada por todos os países da Europa é ambígua: ela significa que todos fazem os mesmos cálculos e, neste aspecto, os instrumentos da economia de mercado são pouco criativos, porque a matemática também é vítima deste sistema económico, que negligencia as Matemáticas Qualitativas ou mesmo a Matemática Discreta, a favor da Matemática Contínua. Existem muitas alternativas a explorar e os cálculos podem ser feitos de modo a não omitir "variáveis" socialmente relevantes, de resto apontadas e vividas pelo jovem electricista ou por outro jovem que combate a lei do apoio aos jovens em termos de arrendamentos participados pelo Estado. Carvalhas mostrou isso, mas sem sistematizar ou mesmo mostrar a necessidade da utilização de novos cálculos, mais orientados pela justiça social e pela igualdade de oportunidades do que pelo enriquecimento dos empresários ou dos altos funcionários do Estado ("os colarinhos-brancos"), aqueles que mais benefícios arrancam do estado da situação actual.
Com esta crítica pretendemos mostrar que um efeito positivo desta recessão económica (baixa vertiginosa das vendas) seria lançar uma nova economia e a necessidade de a pensar: Imaginação Económica, verdadeiramente criativa e capaz de revitalizar as economias, as sociedades e as culturas ocidentais, num mundo cada vez mais obscuro, pouco transparente e em risco, completamente dominado pelo terrorismo globalizado e em concorrência desleal com fórmulas autoritárias e selvagens de capitalismos regionalmente emergentes, tais como o indiano ou o chinês. Com efeito, a uniformização das metodologias técnicas no espaço europeu pode estar a encobrir uma orientação da política monetarista do Banco Central Europeu, embora não seja pessoalmente contra a sua tentativa de fortalecer o euro num momento em que o dólar parece estar em declínio acentuado, correndo o risco de deixar de ser a moeda mundial das trocas. Portanto, ao contrário do que afirmou Fátima Campos, não vejo o "capitalismo anglo-saxónico" e o seu "Estado de Bem-Estar Social" necessariamente condenados ao colapso, a menos que que o Ocidente abdique de lutar pela sua supremacia mundial, deixando que os "capitalismos autocráticos" dominem a cena internacional. Nesta hora de crise de efeitos imprevisíveis e de concorrência desleal, o Ocidente deve imaginar novas formas económicas capazes de defender a nossa «prosperidade» e o nosso estilo de vida, numa palavra, a democracia, a liberdade e a justiça social. Mas, para que isso aconteça, o Ocidente precisa ter consciência de onde vem, onde está e para onde deseja ir. Sem essa filosofia política de cariz pragmático no que respeita às suas relações com os não-ocidentais, corremos o risco de vermos a "profecia" de Spengler realizar-se.
A economia portuguesa vai ressentir-se desta crise, como frisou Carlos Carvalhas, até porque a Espanha e a Inglaterra (países com quem Portugal tem fortes relações comerciais) já estão a sentir alguns dos seus efeitos, com as casas a serem desvalorizadas, e em Portugal as famílias estão fortemente endividadas, a dívida externa é fabulosamente monstruosa e a poupança praticamente não existe. Esta crise mostra, como já disse em "Crise do Capitalismo", que Marx tinha razão quando referia as contradições internas que levam o capitalismo a viver ciclicamente crises e esta recessão pode vir a ter efeitos mais graves do que a crise de 1929, até porque abrange um número vastíssimo de pessoas ou famílias em risco de perderem as suas casas ou mesmo os seus empregos, devido à queda das vendas das empresas onde trabalham. É provável que esta crise não conduza ao fim do capitalismo, aliás extremamente maleável e criativo, porque conta com a ajuda dos Estados e das suas políticas pouco transparentes de defesa dos interesses instalados, mas, pelo menos, pode ser vista como uma nova oportunidade para exercitar uma nova imaginação económica, mais fiel aos princípios que presidem e presidiram ao longo de milénios à construção da nossa civilização ocidental. Antes de terminar este comentário, gostaria de fazer mais umas observações, a primeira das quais prende-se com a concepção dominante de "juventude". Quando a idade das reformas sobe para os 67 anos, não faz sentido estigmatizar as pessoas mais velhas, como se essas fossem por um lado demasiado velhas para usufruir dos mesmos benefícios sociais, mas por outro lado são obrigadas a trabalhar mais tempo para auferir finalmente das suas reformas. A imaginação económica deve unir forças com a imaginação sociológica e cultural, de modo a mostrar que todos beneficiam com a coexistência das diversas gerações, sobretudo quando o sistema de ensino e de educação tem fracassado desde os governos de Cavaco Silva em dotar os jovens de conhecimentos seguros e de competências científicas ou técnicas, lacunas que só podem ser colmatadas com o convívio estreito com os mais velhos e a sua «sabedoria». Há, pois, uma contradição entre a exigência de trabalharem até mais tarde e o facto de serem noutros aspectos tratados como "idosos" sem os mesmos direitos ou as mesmas regalias que são actualmente dadas aos mais jovens impreparados para assumir responsabilidades, dado o seu analfabetismo funcional e a sua paixão pela ignorância activa. Uma política que sacrifique uma geração em nome do futuro é uma política de assassinato geracional e de socialista não tem nada! Finalmente, penso que o Estado de Bem-Estar Social deve tomar medidas para evitar o consumo devorador e o desperdício, até para garantir uma via de sustentabilidade racional, e, em vez de permitir que os bancos forneçam empréstimos ao consumo (crédito ao consumo), nomeadamente para a compra de casa e de carros, devia impor uma nova política de "consumo moderado", fomentando a "poupança" (ideia avançada por Catroga que não se coaduna com a solução que propôs para atenuar os efeitos desta crise: o consumo) a todos os níveis e a criação de novas empresas, bem como o fortalecimento das empresas já estabelecidas, de modo a torná-las mais competitivas no mercado global e mais justas nos salários que dão aos seus trabalhadores, em vez de os explorar indecentemente. Viver quase toda a vida escravo de um empréstimo bancário, cujas prestações flutuam em função das taxas de juros, é um modo de vida irracional, não justificável pelo facto, de resto aparente, de "serem proprietários". O arrendamento com as rendas controladas pelo Estado, para evitar especulações, pode ser uma boa medida. Pelo menos, evitaria o endividamento das famílias, embora não favorecesse o modelo actual de sociedade de consumo e a sua política de créditos ao consumo, mais outro estratagema para evitar a crise do capitalismo, constantemente adiada pelas novas técnicas políticas da economia "burguesa". Nenhum ser humano inteligente precisa destes luxos e de consumos conspícuos que ameaçam a saúde da natureza para ter uma boa vida! J Francisco Saraiva de Sousa
Porém, quem procurava neste programa novos esclarecimentos sobre as causas e as consequências desta crise do capitalismo e recessão económica deve ter chegado ao fim sem ter percebido grande coisa. Isso acontece devido ao "formato" (sentido genérico) do próprio programa: um mostruário de pessoas fortemente envolvidas nas diversas esferas de decisão nacional, que, dada a sua responsabilidade na situação pouco confortável do país, acabam por fazer uma defesa do sistema português. Vou tentar exemplificar isto centrando-me em duas frases muito curiosas de Catroga.
1) "A economia não é uma ciência exacta". O recurso a uma suposta «autoridade científica» é recorrente na política nacional. Os nossos lideres apresentam e fundamentam as suas decisões políticas com base em «estudos científicos ou técnicos». Deste modo, evitam debater as decisões e apresentar argumentos racionais a seu favor. Os «estudos» são usados como "anti-argumentos": a decisão é incontornável e parece estar previamente tomada! Já temos desmistificado esta ausência de transparência, provavelmente favorável à prática da corrupção generalizada em que está mergulhado o país. Catroga parece ter desmentido o carácter inexorável da decisão tomada exclusivamente com base em «estudos técnicos», porque afirmou que a economia não era uma ciência exacta. Mas esqueceu-se de dizer que, na verdade, não existem "ciências exactas" e que esta é uma noção ideológica, precisamente aquela que permite utilizar os estudos para implementar políticas dadas como incontornáveis: aquelas que garantem a continuidade do status quo.
Contudo, podemos ser mais benevolentes com Catroga e desculpar-lhe este "lapso político positivista", porque ele reconheceu que esta crise do capitalismo deve levar as pessoas a pensar que este sistema, apesar dos seus méritos inegáveis, aliás apontados por Marx e Engels no "Manifesto Comunista", não resolve da melhor forma todos os problemas. Citando Bill Gates, Catroga defendeu um "capitalismo criativo", sem definir o que entende por tal expressão. Porém, ao reconhecer as limitações internas do próprio capitalismo e os perigos da globalização em curso, Catroga revela, de algum modo, preocupação com o impacto "imprevisível" desta recessão na economia e na sociedade portuguesas, aliás bem esmiuçada por Carlos Carvalhas, o único que tentou fazer uma análise económica desta recessão que ameaça os USA.
2) Afinal, a economia não é exacta, porque não pode fazer previsões seguras! Porém, quando se referiu ao Instituto Nacional de Estatística e à qualidade dos seus estudos, Catroga explicita aquilo que deveras pensa mas não quis partilhar, talvez por ter tido as suas próprias responsabilidades políticas. A expressão "metodologia técnica" usada por todos os países da Europa é ambígua: ela significa que todos fazem os mesmos cálculos e, neste aspecto, os instrumentos da economia de mercado são pouco criativos, porque a matemática também é vítima deste sistema económico, que negligencia as Matemáticas Qualitativas ou mesmo a Matemática Discreta, a favor da Matemática Contínua. Existem muitas alternativas a explorar e os cálculos podem ser feitos de modo a não omitir "variáveis" socialmente relevantes, de resto apontadas e vividas pelo jovem electricista ou por outro jovem que combate a lei do apoio aos jovens em termos de arrendamentos participados pelo Estado. Carvalhas mostrou isso, mas sem sistematizar ou mesmo mostrar a necessidade da utilização de novos cálculos, mais orientados pela justiça social e pela igualdade de oportunidades do que pelo enriquecimento dos empresários ou dos altos funcionários do Estado ("os colarinhos-brancos"), aqueles que mais benefícios arrancam do estado da situação actual.
Com esta crítica pretendemos mostrar que um efeito positivo desta recessão económica (baixa vertiginosa das vendas) seria lançar uma nova economia e a necessidade de a pensar: Imaginação Económica, verdadeiramente criativa e capaz de revitalizar as economias, as sociedades e as culturas ocidentais, num mundo cada vez mais obscuro, pouco transparente e em risco, completamente dominado pelo terrorismo globalizado e em concorrência desleal com fórmulas autoritárias e selvagens de capitalismos regionalmente emergentes, tais como o indiano ou o chinês. Com efeito, a uniformização das metodologias técnicas no espaço europeu pode estar a encobrir uma orientação da política monetarista do Banco Central Europeu, embora não seja pessoalmente contra a sua tentativa de fortalecer o euro num momento em que o dólar parece estar em declínio acentuado, correndo o risco de deixar de ser a moeda mundial das trocas. Portanto, ao contrário do que afirmou Fátima Campos, não vejo o "capitalismo anglo-saxónico" e o seu "Estado de Bem-Estar Social" necessariamente condenados ao colapso, a menos que que o Ocidente abdique de lutar pela sua supremacia mundial, deixando que os "capitalismos autocráticos" dominem a cena internacional. Nesta hora de crise de efeitos imprevisíveis e de concorrência desleal, o Ocidente deve imaginar novas formas económicas capazes de defender a nossa «prosperidade» e o nosso estilo de vida, numa palavra, a democracia, a liberdade e a justiça social. Mas, para que isso aconteça, o Ocidente precisa ter consciência de onde vem, onde está e para onde deseja ir. Sem essa filosofia política de cariz pragmático no que respeita às suas relações com os não-ocidentais, corremos o risco de vermos a "profecia" de Spengler realizar-se.
A economia portuguesa vai ressentir-se desta crise, como frisou Carlos Carvalhas, até porque a Espanha e a Inglaterra (países com quem Portugal tem fortes relações comerciais) já estão a sentir alguns dos seus efeitos, com as casas a serem desvalorizadas, e em Portugal as famílias estão fortemente endividadas, a dívida externa é fabulosamente monstruosa e a poupança praticamente não existe. Esta crise mostra, como já disse em "Crise do Capitalismo", que Marx tinha razão quando referia as contradições internas que levam o capitalismo a viver ciclicamente crises e esta recessão pode vir a ter efeitos mais graves do que a crise de 1929, até porque abrange um número vastíssimo de pessoas ou famílias em risco de perderem as suas casas ou mesmo os seus empregos, devido à queda das vendas das empresas onde trabalham. É provável que esta crise não conduza ao fim do capitalismo, aliás extremamente maleável e criativo, porque conta com a ajuda dos Estados e das suas políticas pouco transparentes de defesa dos interesses instalados, mas, pelo menos, pode ser vista como uma nova oportunidade para exercitar uma nova imaginação económica, mais fiel aos princípios que presidem e presidiram ao longo de milénios à construção da nossa civilização ocidental. Antes de terminar este comentário, gostaria de fazer mais umas observações, a primeira das quais prende-se com a concepção dominante de "juventude". Quando a idade das reformas sobe para os 67 anos, não faz sentido estigmatizar as pessoas mais velhas, como se essas fossem por um lado demasiado velhas para usufruir dos mesmos benefícios sociais, mas por outro lado são obrigadas a trabalhar mais tempo para auferir finalmente das suas reformas. A imaginação económica deve unir forças com a imaginação sociológica e cultural, de modo a mostrar que todos beneficiam com a coexistência das diversas gerações, sobretudo quando o sistema de ensino e de educação tem fracassado desde os governos de Cavaco Silva em dotar os jovens de conhecimentos seguros e de competências científicas ou técnicas, lacunas que só podem ser colmatadas com o convívio estreito com os mais velhos e a sua «sabedoria». Há, pois, uma contradição entre a exigência de trabalharem até mais tarde e o facto de serem noutros aspectos tratados como "idosos" sem os mesmos direitos ou as mesmas regalias que são actualmente dadas aos mais jovens impreparados para assumir responsabilidades, dado o seu analfabetismo funcional e a sua paixão pela ignorância activa. Uma política que sacrifique uma geração em nome do futuro é uma política de assassinato geracional e de socialista não tem nada! Finalmente, penso que o Estado de Bem-Estar Social deve tomar medidas para evitar o consumo devorador e o desperdício, até para garantir uma via de sustentabilidade racional, e, em vez de permitir que os bancos forneçam empréstimos ao consumo (crédito ao consumo), nomeadamente para a compra de casa e de carros, devia impor uma nova política de "consumo moderado", fomentando a "poupança" (ideia avançada por Catroga que não se coaduna com a solução que propôs para atenuar os efeitos desta crise: o consumo) a todos os níveis e a criação de novas empresas, bem como o fortalecimento das empresas já estabelecidas, de modo a torná-las mais competitivas no mercado global e mais justas nos salários que dão aos seus trabalhadores, em vez de os explorar indecentemente. Viver quase toda a vida escravo de um empréstimo bancário, cujas prestações flutuam em função das taxas de juros, é um modo de vida irracional, não justificável pelo facto, de resto aparente, de "serem proprietários". O arrendamento com as rendas controladas pelo Estado, para evitar especulações, pode ser uma boa medida. Pelo menos, evitaria o endividamento das famílias, embora não favorecesse o modelo actual de sociedade de consumo e a sua política de créditos ao consumo, mais outro estratagema para evitar a crise do capitalismo, constantemente adiada pelas novas técnicas políticas da economia "burguesa". Nenhum ser humano inteligente precisa destes luxos e de consumos conspícuos que ameaçam a saúde da natureza para ter uma boa vida! J Francisco Saraiva de Sousa
segunda-feira, 28 de janeiro de 2008
O Feiticeiro Vodu e seus Zombies
Este título pode parecer estranho, mas ele tem a sua razão de ser. Vodun é o nome foneticamente correcto do complexo cultual popularmente chamado vodu. Trata-se de uma "religião" sincrética dos negros do Haiti que combina elementos cristãos com elementos africanos, especialmente originários de Daomé, que foram introduzidos na região caraíba pelos escravos negros, nos quais tem origem a população actual. Os fundadores do clã de Daomé são conhecidos como tovodun e é deles que provém o culto vodu. Os ritos de vodu são basicamente rituais familiares com ofertas e sacrifícios acompanhados de cânticos e de danças, nos quais vários deuses são personificados e invocados para assistirem à cerimónia. À medida que cada deus é invocado com a sua saudação tocada nos tambores, os dançarinos que os representam vão ficando possuídos. O comportamento de transe dos devotos e o êxtase dos adoradores dão um aspecto sinistro à cerimónia, donde resultou a sua má reputação universal. O termo zombie deriva desta tradição popular haitiana e é usado para referir um «morto vivo», castigado por ter cometido algum crime e condenado a vaguear errante, balbuciando e olhando atentamente com os seus olhos mortos, obedecendo cegamente às ordens de algum sacerdote ou xamã do culto vodu. Wade Davis (1985, 1988) descreveu a poção neurofarmacológica que os praticantes do vodu preparam e que tem supostamente a propriedade de pôr um ser humano num estado semelhante à morte. Estes seres são enterrados vivos durante alguns dias e, posteriormente, são exumados. É-lhes administrado um alucinogéno que provoca desorientação e amnésia, após a qual se convertem em seres errantes como os zombies dos filmes de terror e, por vezes, acabam por ser escravizados pelos seus «feiticeiros». Conforme refere Daniel Dennett, os filósofos retomaram este termo para referir uma categoria distinta de ser humano imaginário: um zombie filosófico é ou seria um ser humano que, apesar de exibir uma conduta perfeitamente normal ou natural, não é consciente e, portanto, é uma espécie de autómato. Ora, a leitura da obra "Consciousness Explained" de Daniel Dennett (1991) permite-nos retribuir-lhe a prática de vodu, no seu sentido originário. Como? Afirmando que o feiticeiro vodu é Daniel Dennett e que os seus zombies são todos aqueles que, de um modo ou de outro, lhe obedecem quando julgam ter descoberto a solução para o velho problema da consciência. Todos negam a ontologia da primeira pessoa, portanto, a existência de estados subjectivos e conscientes. Como se sabe, Dennett, na sua obra «Consciousness Explained», nega a existência dos sentimentos e das experiências subjectivos, portanto, as qualias, e, quando ataca o "teatro cartesiano", opondo-lhe o "modelo dos esboços múltiplos da consciência", não o faz para defender a ideia de que tais estados ocorram difusamente em todo o cérebro, uma hipótese plausível se levarmos em conta a memória, mas para negar a existência de um "local unificado das nossas experiências conscientes", como se a consciência fosse simplesmente a implementação de um certo tipo de "programa ou programas de computador numa máquina paralela" que evolui na natureza. Apesar de pretender ser muito científica no sentido duro do termo, porquanto parece estar em sintonia com a "visão científica do mundo" assumida dogmáticamente como a mais correcta, a teoria de Dennett não dá conta dos estudos neurocientíficos, em particular dos estudos que usam a ressonância magnética funcional para «observar» os correlatos neurais das experiências cognitivas, místicas e estéticas, e, o que é ainda mais grave, omite praticamente toda a «história dogmática da filosofia», preferindo fingir que pensa pela sua própria cabeça, quando realmente mais não faz do que retomar os velhos problemas da escolástica. Por isso, estas novas tentativas anglo-saxónicas de solucionar o problema da consciência, sem o recurso aos conhecimentos adquiridos ao longo da história da filosofia, condenam a filosofia da mente a um estado de indigência muito preocupante, além de incentivar a opinião em detrimento do conhecimento, sobretudo daquele que procura «dizer a verdade» (Canguilhem). De uma ou de outra forma, tanto o feiticeiro Daniel Dennett quanto os seus escravos alucinados pela sua falsa solução que nega que o cérebro produza estados internos qualitativos conscientes, já que rejeita a existência de tais coisas, afiguram-se-me como zombies destituídos de consciência, sobretudo de consciência histórica (Gadamer), que se comportam aparentemente como seres humanos naturais, a avaliar pelos seus comportamentos externos, analisados do ponto de vista da terceira pessoa, como se eles, em conformidade com a sua própria perspectiva, fossem destituídos de uma ontologia da primeira pessoa. Contudo, como demonstrou Sartre nas suas primeiras obras, os cientistas analisam o comportamento das outras pessoas a partir do ponto de vista da terceira pessoa, como se fossem destituídas de uma ontologia da primeira pessoa, embora eles próprios não queiram abdicar da sua subjectividade. A "heterofenomenologia" é aplicada aos outros, porque esse é o procedimento científico normal, mas não se aplica aos próprios que reservam um estatuto fenomenológico especial. Ora, uma tal visão revela a miséria desta filosofia da mente, na qual, falando com rigor, só o feiticeiro não seria um zombie, dado controlar os outros reduzidos a meros autómatos obedientes às suas orientações heterofenomenológicas. J Francisco Saraiva de Sousa
domingo, 27 de janeiro de 2008
Cosmologia Asteca e Filosofia
Com este post pretendo partilhar a minha paixão pelas civilizações pré-colombianas (Alberto Ruz Lhuillier, Nigel Davies), em especial pela asteca, maia e inca (Henri Favre, Alfred Métraux), e, sobretudo, abrir um novo território para a pesquisa filosófica. A ideia não é completamente original, porquanto muitos antropólogos (J. G. Frazer, Evans-Pritchard, M. Griaule, Lévi-Strauss, G. Lienhardt, B. Malinowski, E. Durkheim, R. Needhand, P. Radin, V. Turner, B. L. Whorf, E. Sapir, C. R. Hallpike) e filósofos (Lévy-Bruhl, Jean-Pierre Vernant, J. Burnet, G. Thomson, L. Gernet, E. R. Dobbs, Bruno Snell, W. Jaeger, Cornford, M. Eliade) já dedicaram muito do seu tempo a falar sobre o "pensamento primitivo" ou mesmo sobre a "filosofia primitiva". Contudo, estas análises foram levadas a cabo quase sempre no âmbito da antropologia religiosa ou mesmo cognitiva, mas sem fazer uma análise conceptual sofisticada capaz de fornecer uma determinada visão do mundo, com a qual a filosofia possa estabelecer um diálogo produtivo. Não se trata de apreender a "filosofia" de um determinado povo não-ocidental, mas de recuperar a sua imagem do mundo e pensá-la filosoficamente nos nossos próprios termos ou conceitos abstractos: a filosofia pode emprestar ou elaborar uma "filosofia" a partir dessas concepções primitivas ou não-ocidentais do mundo, sejam elas religiosas, mitológicas, políticas ou simplesmente sociais. Portanto, podemos conceber uma "filosofia comparada dos conhecimentos" ou mesmo uma "arqueologia dos saberes" (Hannah Arendt, Michel Foucault).
Com a ajuda dos estudos de Jacques Soustelle, podemos resumir, de forma simplificada, a cosmologia dos astecas (Walter Krickeberg, Lewis Spence, Laurette Séjouné, M. Simoni-Abbat), dizendo que acreditavam que o nosso mundo foi precedido por quatro outros universos, os "Quatro Sóis".
1º. O primeiro Sol, naui-ocelotl ("quatro-jaguar"), desapareceu num gigantesco massacre, no qual os homens foram devorados por jaguares. O jaguar simboliza as forças telúricas e, para os astecas, correspondia a Tezcatlipoca, o deus das trevas e do céu nocturno pontilhado de estrelas, qual pelagem do felino.
2º. O segundo universo chamava-se naui-eecatl ("quatro-vento"). Quetzalcoatl, a Serpente de Plumas, o deus do vento e o rival mítico de Tezcatlipoca, fez soprar sobre este segundo mundo uma tempestade mágica, transformando os homens em macacos. Laurette Séjourné realizou um belo estudo sobre "o universo de Quetzalcoatl", prefaciado por Mircea Eliade.
3º. O terceiro universo, chamado naui-quiauitl ("quatro-chuva"), foi destruído por Tlaloc, a divindade benfeitora da chuva e o terrível deus do raio, submergindo-o numa chuva de fogo.
4º. Finalmente, o quarto Sol, chamado naui-atl ("quatro-água"), situado sob o signo de Chalchiuhtlicue, o deus da água, terminou num dilúvio que durou 52 anos. Salvaram-se apenas um homem e uma mulher que se agarraram a um tronco de cipreste. Mas, por terem desobedecido às ordens de Tezcatlipoca, foram transformados em cães. A humanidade actual não descende desses seres salvos da quarta catástrofe: a sua existência deve-se a Quetzalcoatl, que, sob a forma de um deus com cabeça de cão, Xolotl, resgatou dos infernos os ossos descarnados dos mortos e, regando-os com o seu próprio sangue, lhes restituiu a vida. O nosso mundo foi designado pelo signo naui-ollin ("quarto tremor de terra") e está fadado a ser destruído por fortes sismos. Os Tzitzimime, os monstros esqueléticos que vagueiam na orla ocidental do universo, surgirão das trevas para aniquilar a humanidade. Esta catástrofe final podia acontecer a qualquer momento, porque, segundo os astecas, o retorno do Sol e a sucessão das estações não estavam garantidos. Daqui podemos concluir que a alma asteca era dominada pela angústia perante a possibilidade do mundo ser aniquilado a qualquer momento. Por isso, ao fim de cada ciclo de 52 anos, os astecas temiam que a "liga dos anos" não pudesse completar-se e que o Fogo Novo não se acendesse, mergulhando o mundo no caos. Neste mundo fatalmente ameaçado de destruição, a tarefa do homem, em especial do povo do Sol, era conjurar o assalto do nada, e, para levar a cabo essa tarefa, devia fornecer a "água preciosa", o próprio sangue humano, ao Sol, à Terra e a todas as outras divindades que garantiam o funcionamento da engrenagem do mundo. As guerras sagradas e a prática de sacrifícios humanos iniciaram-se, segundo os mitos (Walter Krickeberg, Laurette Séjourné), com a criação do mundo, tendo por finalidade abastecer os deuses com o "alimento" que exigiam: o sangue humano (Jacques Soustelle, Christiam Duverger). O único deus que não o exigia era Quetzalcoatl que foi vencido por Tezcatlipoca (Laurette Séjourné). Além dos benefícios positivos para o Estado asteca, como a conquista de territórios, a imposição e cobrança de tributos e o direito de livre-passagem para os seus comerciantes, a guerra devia fundamentalmente fornecer prisioneiros para os sacrifícios (Jacques Soustelle, Marvin Harris). Por isso, as batalhas eram travadas não para ferir ou matar os inimigos mas para capturar o maior número possível de prisioneiros. Nos períodos de paz, os soberanos inventaram a "guerra florida" (Christian Duverger) que eram torneios destinados a fornecer vítimas para serem sacrificadas aos deuses sedentos de sangue. Estas guerras sagradas não eram somente praticadas pelos astecas, mas também por povos vizinhos, como por exemplo os Maias de Yucatán e os Tarascos de Michoacán (J. Eric S. Thompson), entre outros, que, além dos prisioneiros de guerra, sacrificavam aos deuses escravos, voluntários e mulheres. O processo mais comum de sacrifício consistia em deitar a vítima sobre a pedra, abrir-lhe o peito com um golpe violento do machado de sílex, arrancar-lhe o coração e oferecê-lo ao Sol. Seguidamente, a vítima era decapitada e o seu crânio era posto numa estaca especial, o tzompentli. Apesar da diversidade dos rituais praticados e dos tratamentos dados, em seguida, às vítimas, estas cerimónias macabras eram encerradas com o canibalismo ritual. Contudo, nem todos os autores aceitam esta explicação religiosa das guerras sagradas e do canibalismo bélico, mas trataremos desse assunto da antropofagia noutros posts. Neste "mito" asteca da criação do mundo, o tempo que surge em cena não é o tempo primordial ou ontológico, mas o tempo histórico submetido ao princípio de desgaste, mais precisamente ao princípio de desperdício. Como não existe um modelo de representação da totalidade, os tempos originais participam do tempo actual, donde resulta a impossibilidade de pensar a eternidade e a perenidade. O devir catastrófico do mundo está inscrito no próprio nome de cada um dos "sóis" (ou eras): a água, o fogo, o ar e a terra. O "quinto sol" aparece como a combinação sintética dos quatro elementos já destruídos separadamente. Isto significa que o "quinto sol" está condenado à destruição desde a sua origem, porque "carrega" e transporta em si os princípios da sua própria aniquilação. Para os astecas, toda a destruição já está contida na geração: as forças colocadas em jogo na criação são precisamente aquelas que conduzem todo o organismo à ruína. O nome naui-ollin dado ao "quinto sol" revela que os astecas sabiam que o "movimento" (ollin) é inexoravelmente entrópico. O fim não é contingente, mas consequência lógica de uma existência totalmente submetida às leis da física e da perda de energia. Apesar disso, os astecas não cruzaram os braços, aguardando o fim do mundo, mas colocaram em acção uma política económica destinada a conservar os equilíbrios existentes e a consolidar o poder da sua sociedade, de resto também ela condenada ao esgotamento. J Francisco Saraiva de Sousa
sábado, 26 de janeiro de 2008
Sartre: Juramento, Violência e Terror
«Toda a aventura humana, pelo menos até aqui, é uma luta obstinada contra a escassez.» (Jean-Paul Sartre) Infelizmente, não posso expor neste post toda a filosofia de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e mostrá-la em toda a sua riqueza conceptual, sobretudo quando Sartre, como sucede na Crítica da Razão Dialéctica (1960), tenta a "fusão" entre o marxismo e o existencialismo, de resto já bem visível no seu ensaio introdutório Questões de Método, publicado originalmente numa revista polaca em 1957. Por isso, vamos restringir o nosso tema a uma breve análise da sua teoria dialéctica da origem da sociedade.
Para explicar o antagonismo mútuo, um conceito presente desde "O Ser e o Nada", Sartre introduz o "princípio da escassez", originalmente elaborado por Locke mas sobretudo por David Hume e retomado por Malthus: «tal substância ou tal produto manufacturado existe, em determinado campo social, em número insuficiente, levando em consideração o número dos membros dos grupos ou dos habitantes da região: não existe o suficiente para todos» (Sartre).
Toda a história humana é uma história da escassez e da luta obstinada contra a escassez. O mundo não dispõe do suficiente para distribuir por todos os homens. A escassez tanto une como divide os homens. Une-os, porque somente unindo os seus esforços podem os homens lutar com êxito contra a escassez. Divide-os, porque cada homem sabe que o obstáculo à abundância individual reside na existência dos outros. Segundo Sartre, a escassez é o «motor passivo da história». Como os homens não podem eliminar completamente a escassez, são «forçados» a colaborar uns com os outros para minimizar os seus efeitos.
Contudo, esta colaboração é paradoxal. Cada homem sabe que a escassez se deve exclusivamente à existência dos outros. Isto significa que os homens são rivais uns dos outros e, sempre que colaboram ou trabalham juntos para minimizar a escassez, estão a alimentar os seus rivais. A escassez molda não somente a nossa atitude em relação ao mundo natural, mas também a nossa atitude em relação aos vizinhos: os outros homens. A escassez faz dos homens rivais, obrigando-os ao mesmo tempo a colaborar uns com os outros. Sozinho o homem é impotente: a luta contra a escassez só pode ser travada com a divisão do trabalho e outros empreendimentos colectivos.
A natureza é "inerte" e indiferente ao bem-estar humano. O mundo que habitamos é composto pelo mundo da natureza e pelo mundo construído pelos nossos antepassados no decorrer da sua longa história de luta contra a escassez. Sartre chama-lhe o "prático-inerte": campo que compreende o mundo da praxis, na medida em que é o resultado do trabalho e dos projectos dos seus habitantes passados e presentes, e o mundo natural que foi transformado mediante o seu trabalho sobre a materialidade passiva ou inerte. Ora, neste universo hostil definido pela escassez, o homem torna-se o inimigo do homem ou, como diz Sartre, converte-se em "anti(contra)-homem".
Esta é a explicação económica que Sartre dá dos antagonismos ou conflitos entre os homens. Considerado dialecticamente, o antagonismo é a reciprocidade negativa, negada na e pela colaboração dos homens imposta pela necessidade de superar a escassez. A partir daqui Sartre elabora a sua teoria dialéctica da origem da sociedade.
Sartre distingue duas formas significativamente diferentes de estrutura social: as séries e os grupos. Uma "série" é um ajuntamento de pessoas unidas somente pela proximidade exterior e, por isso, não existe como um todo «dentro» de nenhum dos seus membros. Sartre ilustra a série com a fila de pessoas numa paragem de autocarro: todas as pessoas que observamos numa fila têm a mesma finalidade, embora não partilhem um objectivo comum ou colectivo. Devido à escassez de lugares no autocarro, cada elemento da fila é um rival dos demais membros e vice-versa: os outros também desejariam que ele não estivesse ao lado. Por isso, como cada um é "um a mais", todos acordam entrar ordenadamente na fila, formando assim uma série para evitar uma luta pelo acesso de entrada no autocarro. Esta série ordenada é uma relação recíproca negativa que constitui a negação do antagonismo, portanto, a negação de si mesma! Além das séries que são «pluralidades de solidões», existe outro tipo de reuniões na sociedade, a que Sartre chama "grupo". Um grupo é um conjunto de pessoas que, ao contrário daquelas que formam uma série, têm um objectivo ou uma finalidade comuns. Sartre dá como exemplo uma equipa de Futebol. O que distingue o grupo da série é o facto de cada membro ter-se comprometido (ou ter jurado) a agir como um membro desse grupo. O grupo é reunido e constituído pelo juramento (le serment): cada membro converteu a sua própria praxis individual numa praxis comum ou social. Isto significa que a origem do grupo se deve ao facto de termos de trabalhar juntos ou morrer a lutar uns contra os outros. Ao contrário da série, o grupo não é impotente e, por isso, pode realizar e fazer coisas.
A força motriz continua a ser a escassez, porque é ela que obriga os homens a trabalhar juntos, tendo em vista um fim comum. Sartre introduz três noções que ajudam a compreender a origem das sociedades humanas a partir da escassez: o "juramento", a "violência" e o "Terror". Com efeito, o grupo começa a existir quando cada indivíduo assume o compromisso de se tornar um membro do grupo e de não o trair ou desertar dele. A sociedade como grupo é, portanto, um conjunto ajuramentado. Mas, para que o juramento seja cumprido e os membros do grupo tenham a certeza de que será cumprido, são necessárias a violência e o Terror, porque, segundo Sartre, é o medo que impele os homens a formar grupos e que os mantém unidos nos seus grupos.
Ora, o medo que os vincula ao grupo é o Terror. O juramento em si é, como diz Sartre, um pedido de violência a ser usada contra alguém que não cumpra a sua palavra, e a existência do Terror é uma garantia de que essa violência será usada contra qualquer membro que não cumpra a sua palavra. Os grupos correm o risco de se dissolverem em séries e cada indivíduo está consciente da ameaça de dispersão em si próprio e nos outros. O terror é, segundo Sartre, «a garantia estatutária, livremente assumida (jurada), de que ninguém recairá na série». Ou, por outras palavras, o Terror é a "solicitude mortal", graças à qual um homem se torna um ser social, criado por si próprio e pelos outros. O Terror é, portanto, a violência que nega a violência e, com tal, é a "fraternidade", porque é a garantia de que o meu vizinho permanecerá o meu irmão. O Terror vincula-o a mim pela ameaça da violência que poderá ser utilizada caso ouse tornar-se "não-fraterno".
Sartre analisa o Estado como um grupo que «se reconstitui incessantemente e que modifica a sua composição por uma renovação (descontínua ou contínua) dos seus membros». O "grupo em fusão" cria lideres e, mais tarde, perpetua-se fundando instituições. Esta é a base da soberania. A autoridade está ligada ao Terror, porque o soberano é o homem autorizado a exercer o Terror. Enquanto numa sociedade serial o homem obedece porque tem de obedecer, num Estado o homem obedece a si próprio, porque foi ele que, pelo seu compromisso juramentado, se incorporou ao grupo e autorizou o soberano a comandar. Cada homem desse grupo não fez o juramento pessoalmente, mas por "procuração": um compromisso não deixa de ser um compromisso. O Terror não é somente fraternidade, mas também é liberdade. O homem incorporou livremente o seu projecto individual no projecto comum quando se comprometeu ou foi comprometido por procuração com o Estado. Assim, quando o soberano comanda em nome do Estado está a devolver-lhe a sua liberdade.
J Francisco Saraiva de Sousa
sexta-feira, 25 de janeiro de 2008
Humanismo e Terror
«O marxismo é a insuperável filosofia do nosso tempo». (Sartre, Critique de la Raison Dialectique) Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) é muito mal conhecido, embora a sua obra "Fenomenologia da Percepção" seja referida algumas vezes mas sem ter sido devidamente assimilada. Juntamente com Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty é uma das figuras de proa da fenomenologia existencial e do existencialismo francês. Contudo, os seus poucos falsos adeptos ignoram sistematicamente as suas ligações ao marxismo e, portanto, as suas duas obras dedicadas à defesa da filosofia de Marx: "Humanisme et Terreur: essai sur le problème communiste" (1947) e "Les Aventures de la Dialectique" (1955), as quais estão fortemente marcadas pela influência decisiva de Sartre.
Este post é dirigido aos mais jovens, aqueles que nunca aprenderam a pensar, porque foram educados a procurar activamente a ignorância, pensando que vivem num "mundo pacífico", onde basta reivindicar para obter aquilo que desejam, sem esforço e sem mérito: a geração da desilusão e da consciência feliz! Para os arrancar desse estado de letargia mental muito pouco heróico e corajoso, resolvi reler de forma descontextualizada "Humanismo e Terror" de Merleau-Ponty e, se algum candidato a sociólogo ler este post, espero que aprenda que, no seio da Civilização Ocidental, os conceitos não têm pátria e que, portanto, posso como pensador profissional apropriar-me do seu "sentido in-temporal" liberto das marcas da sua «história contextualizada», de resto pouco relevante para avaliar a sua validade intrínseca e o seu potencial para iluminar novas realidades, aquelas que não conheceram quando foram forjados. Isto chama-se pensamento conceptual (abstracto) e a sua elaboração pertence exclusivamente à filosofia e não às supostas ciências humanas bastardas como a "sociologia". Merleau-Ponty colocou o problema do "humanismo socialista" com muita claridade, rejeitando a alternativa entre "humanismo" e "terror". Para este filósofo subtil, não há alternativa entre violência e não-violência, mas apenas entre dois modos de violência: a violência capitalista e a violência socialista. Esta alternativa foi colocada nestes termos: «Na U.R.S.S., a violência e a fraude são oficiais, a humanidade existe na vida quotidiana. Nas democracias, pelo contrário, os princípios são humanos, mas a fraude e a violência encontram-se na prática. A partir daí, a propaganda possui vasto campo de manobra». Ora, segundo Merleau-Ponty, a violência revolucionária é legítima, pela simples razão de que «tem um sentido, que é possível compreendê-la, ler nela um desenvolvimento racional, tirar dela um futuro humano». Mais adiante esclarece melhor esta ideia: «A revolução assume e dirige uma violência que a sociedade burguesa tolera no desemprego e na guerra e disfarça sob o nome da fatalidade. Mas todas as revoluções reunidas não derramaram mais sangue que os impérios. Só há violências e a violência revolucionária deve ser preferida porque ela tem um futuro de humanismo». Ao contrário da violência revolucionária cujo uso é legitimado pelo seu sentido humanista, a violência retrógrada carece de perspectiva humanista, porque «a contingência do futuro, que explica as violências do poder, lhe tira ao mesmo tempo toda a legitimidade, ou legitima igualmente a violência dos opositores. O direito da oposição é exactamente igual ao do poder». Estes dois sistemas sociais (actualmente a ganância financeira pelo lucro a qualquer preço e os ideais socialistas ainda não-realizados) estão encerrados numa luta global em que a renúncia da violência revolucionária leva ao fortalecimento do reino da exploração capitalista que, como reconheceu Mário Soares ainda hoje no seu programa "O Caminho faz-se caminhando" (24 de Janeiro de 2008/RTP1), constitui uma realidade bem evidente dos dias de hoje. No entanto, a violência daqueles que lutam pela liberdade e pela justiça social tem a oportunidade de romper o círculo infernal do terror e contra-terror, na medida em que é veiculada pela solidariedade supranacional da única classe que, «segundo a lógica interna da sua condição» (Merleau-Ponty), é capaz de traduzir o humanismo de ideologia em realidade: o proletariado de Marx. Porém, depois de ter visto o seu nível de vida melhorado substancialmente, o proletariado recusa-se a lutar pelo salvamento ideológico do humanismo. Merleau-Ponty reconheceu que, na actual conjuntura política, essa «condição revolucionária» deixou de existir e que o proletariado cessou de figurar como «termo de referência» no pensamento e na política marxista. Muitos ideólogos do "pensamento unidimensional" (Marcuse) viram neste facto o fracasso da filosofia de Marx e, com a ajuda perigosa dos mass media, começaram a falar do fim das classes sociais e da luta de classes, como se vivêssemos numa sociedade quase perfeita. Mas, como lhes lembra Merleau-Ponty, embora a história não seja conduzida actualmente pelo proletariado mundial, mas, como sabemos, pelo capitalismo financeiro global, esta classe pode a qualquer momento «retomar a palavra» e lutar contra o sistema de exploração capitalista estabelecido. Por isso, não adianta opor ao marxismo, «o único humanismo que ousa desenvolver as suas consequências» (Merleau-Ponty), um princípio moral abstracto, porque uma tal atitude «é ignorar o que ele disse de mais verdadeiro e que originou o seu êxito no mundo, é continuar a mistificação e passar ao lado do problema». «O marxismo não tem talvez a força de convencer-nos que, um dia e pelos caminhos que ele indica, o homem será para o homem o ser supremo, mas guarda a (força) de nos fazer compreender que a humanidade não é humanidade senão de nome enquanto a maior parte dos homens vive por procuração e que uns são senhores, outros escravos. Dizer que a história é (entre outras coisas) a história da propriedade e que onde há proletariado não há humanidade, isso não é adiantar uma hipótese que se deveria em seguida provar, como se prova uma lei da física, é simplesmente enunciar essa intuição do homem como ser relacionado com a natureza e com os outros, que Hegel desenvolve na sua dialéctica do senhor e do escravo e que Marx lhe tomou emprestado». Tal como Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty considera que o marxismo, mesmo na impossibilidade de ser realizado, devido à integração social e cultural da classe trabalhadora no sistema capitalista e ao fracasso da revolução socialista na U.R.S.S., continua a ser a filosofia inultrapassável do nosso tempo, simplesmente porque «como crítico do mundo existente e de outros humanismos, ele permanece válido. A este título, pelo menos não poderia ser ultrapassado. Mesmo incapaz de dar forma à história mundial, permanece bastante forte para desacreditar as outras soluções. Considerado de perto, o marxismo não é uma hipótese qualquer, substituível amanhã por uma outra, é o simples enunciado das condições sem as quais não haverá humanidade no sentido de uma relação recíproca entre os homens, nem racionalidade na história. Nesse sentido, não é uma filosofia da história, é a filosofia da história, e renunciar é fazer a cruz sobre a Razão histórica. Após o que não há mais do que fantasias ou aventuras». Merleau-Ponty foi um dos últimos grandes filósofos a fazer a justificação filosófica da violência legítima usada contra o sistema de exploração capitalista (a violência retrógrada instalada no poder), recorrendo à dialéctica hegeliana do senhor e do escravo, a qual mostra que a história é essencialmente luta em que «cada consciência persegue a morte da outra». O poder implica necessariamente terror e este só pode ser combatido pela contra-violência que visa a realização do humanismo. Esta concepção de poder é forte e nada amorfa como a de Michel Foucault que, ao generalizar o poder e dispersá-lo pelas relações, desviou a atenção daquele poder que é necessário combater e mudar: o poder político, na sua acepção hegeliano-marxista. Em termos mais actuais, podemos dizer que, no seio das actuais sociedades democráticas, a pureza dos princípios, tais como o respeito à lei e o respeito à liberdade, inscritos nas suas Constituições, tolera e necessita das violências que se manifestam diariamente nas relações de trabalho, nas escolas, nos tribunais, no desemprego, no crescente empobrecimento das pessoas e das famílias, no serviço militar, nas relações entre o Estado e os cidadãos, nas prisões, nas descargas policiais, na hipocrisia das relações com os países pobres, nas empresas, nos despedimentos colectivos, enfim nas assimetrias de poder e nas desigualdades sociais cada vez mais gritantes, devido à globalização financeira. As violências existem em todas as esferas sociais e na vida quotidiana, apesar da hipocrisia do discurso moralista oficial da defesa dos direitos humanos e dos princípios puros. Não admira que as nossas sociedades condenem a violência: a pacificação da vida visa tornar as pessoas submissas aos poderes estabelecidos, os da corrupção generalizada, aos quais é reservado o direito de usar a violência física "legítima" sempre que um cidadão saia da ordem estabelecida, tal como moldada pelos interesses das classes dirigentes. O Código Penal (a arma dos corruptos) é cada vez mais severo a punir todos os actos de desacato das leis da falsa paz social. Contudo, as penas mais graves não são aplicadas àqueles que se entregam à alta corrupção, as classes dirigentes, mas aos pequenos delitos praticados pelo povo. Esta diferença social de aplicação de punições em função da categoria social a que pertencem os infractores mostra que vivemos numa sociedade pouco democrática, na qual uns poucos são mais iguais do que os muitos outros. A guilhotina inventada para arrancar as cabeças dos traidores da grande política, daquela que visa a libertação da humanidade, cedeu o seu lugar a outros meios de punição, incluindo nalguns países a pena de morte, para castigar os pequenos infractores. Os infractores pertencentes às classes dirigentes nunca são punidos! Contudo, em nome do humanismo, esses corruptos das altas esferas da sociedade são aqueles que merecem as maiores e mais graves punições. E, enquanto o povo não exigir a decapitação dos seus dirigentes corruptos, a democracia corre o risco de tornar-se uma oligarquia. Sem violência contra os corruptos das classes dirigentes, a luta pela liberdade e pela justiça está condenada ao fracasso. No momento presente, a mudança social qualitativa exige o uso da violência para pôr termo à corrupção que ameaça o futuro do humanismo. A violência é a única arma não-política capaz de renovar a sociedade, sobretudo quando dirigida em nome do humanismo contra os corruptos das altas esferas que condenam o mundo à miséria e à destruição! De facto, numa sociedade bloqueada e profundamente corrupta como a nossa, a mudança social qualitativa exige a circulação de elites (Pareto) e como as elites instaladas se perpetuam no poder através do sistema nacional da cunha, como se fossem titulares nobiliárquicos, só a violência as pode desalojar e abrir a sociedade ao futuro. É isto que está em questão: a corrupção que bloqueia o futuro de Portugal! J Francisco Saraiva de Sousa
Este post é dirigido aos mais jovens, aqueles que nunca aprenderam a pensar, porque foram educados a procurar activamente a ignorância, pensando que vivem num "mundo pacífico", onde basta reivindicar para obter aquilo que desejam, sem esforço e sem mérito: a geração da desilusão e da consciência feliz! Para os arrancar desse estado de letargia mental muito pouco heróico e corajoso, resolvi reler de forma descontextualizada "Humanismo e Terror" de Merleau-Ponty e, se algum candidato a sociólogo ler este post, espero que aprenda que, no seio da Civilização Ocidental, os conceitos não têm pátria e que, portanto, posso como pensador profissional apropriar-me do seu "sentido in-temporal" liberto das marcas da sua «história contextualizada», de resto pouco relevante para avaliar a sua validade intrínseca e o seu potencial para iluminar novas realidades, aquelas que não conheceram quando foram forjados. Isto chama-se pensamento conceptual (abstracto) e a sua elaboração pertence exclusivamente à filosofia e não às supostas ciências humanas bastardas como a "sociologia". Merleau-Ponty colocou o problema do "humanismo socialista" com muita claridade, rejeitando a alternativa entre "humanismo" e "terror". Para este filósofo subtil, não há alternativa entre violência e não-violência, mas apenas entre dois modos de violência: a violência capitalista e a violência socialista. Esta alternativa foi colocada nestes termos: «Na U.R.S.S., a violência e a fraude são oficiais, a humanidade existe na vida quotidiana. Nas democracias, pelo contrário, os princípios são humanos, mas a fraude e a violência encontram-se na prática. A partir daí, a propaganda possui vasto campo de manobra». Ora, segundo Merleau-Ponty, a violência revolucionária é legítima, pela simples razão de que «tem um sentido, que é possível compreendê-la, ler nela um desenvolvimento racional, tirar dela um futuro humano». Mais adiante esclarece melhor esta ideia: «A revolução assume e dirige uma violência que a sociedade burguesa tolera no desemprego e na guerra e disfarça sob o nome da fatalidade. Mas todas as revoluções reunidas não derramaram mais sangue que os impérios. Só há violências e a violência revolucionária deve ser preferida porque ela tem um futuro de humanismo». Ao contrário da violência revolucionária cujo uso é legitimado pelo seu sentido humanista, a violência retrógrada carece de perspectiva humanista, porque «a contingência do futuro, que explica as violências do poder, lhe tira ao mesmo tempo toda a legitimidade, ou legitima igualmente a violência dos opositores. O direito da oposição é exactamente igual ao do poder». Estes dois sistemas sociais (actualmente a ganância financeira pelo lucro a qualquer preço e os ideais socialistas ainda não-realizados) estão encerrados numa luta global em que a renúncia da violência revolucionária leva ao fortalecimento do reino da exploração capitalista que, como reconheceu Mário Soares ainda hoje no seu programa "O Caminho faz-se caminhando" (24 de Janeiro de 2008/RTP1), constitui uma realidade bem evidente dos dias de hoje. No entanto, a violência daqueles que lutam pela liberdade e pela justiça social tem a oportunidade de romper o círculo infernal do terror e contra-terror, na medida em que é veiculada pela solidariedade supranacional da única classe que, «segundo a lógica interna da sua condição» (Merleau-Ponty), é capaz de traduzir o humanismo de ideologia em realidade: o proletariado de Marx. Porém, depois de ter visto o seu nível de vida melhorado substancialmente, o proletariado recusa-se a lutar pelo salvamento ideológico do humanismo. Merleau-Ponty reconheceu que, na actual conjuntura política, essa «condição revolucionária» deixou de existir e que o proletariado cessou de figurar como «termo de referência» no pensamento e na política marxista. Muitos ideólogos do "pensamento unidimensional" (Marcuse) viram neste facto o fracasso da filosofia de Marx e, com a ajuda perigosa dos mass media, começaram a falar do fim das classes sociais e da luta de classes, como se vivêssemos numa sociedade quase perfeita. Mas, como lhes lembra Merleau-Ponty, embora a história não seja conduzida actualmente pelo proletariado mundial, mas, como sabemos, pelo capitalismo financeiro global, esta classe pode a qualquer momento «retomar a palavra» e lutar contra o sistema de exploração capitalista estabelecido. Por isso, não adianta opor ao marxismo, «o único humanismo que ousa desenvolver as suas consequências» (Merleau-Ponty), um princípio moral abstracto, porque uma tal atitude «é ignorar o que ele disse de mais verdadeiro e que originou o seu êxito no mundo, é continuar a mistificação e passar ao lado do problema». «O marxismo não tem talvez a força de convencer-nos que, um dia e pelos caminhos que ele indica, o homem será para o homem o ser supremo, mas guarda a (força) de nos fazer compreender que a humanidade não é humanidade senão de nome enquanto a maior parte dos homens vive por procuração e que uns são senhores, outros escravos. Dizer que a história é (entre outras coisas) a história da propriedade e que onde há proletariado não há humanidade, isso não é adiantar uma hipótese que se deveria em seguida provar, como se prova uma lei da física, é simplesmente enunciar essa intuição do homem como ser relacionado com a natureza e com os outros, que Hegel desenvolve na sua dialéctica do senhor e do escravo e que Marx lhe tomou emprestado». Tal como Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty considera que o marxismo, mesmo na impossibilidade de ser realizado, devido à integração social e cultural da classe trabalhadora no sistema capitalista e ao fracasso da revolução socialista na U.R.S.S., continua a ser a filosofia inultrapassável do nosso tempo, simplesmente porque «como crítico do mundo existente e de outros humanismos, ele permanece válido. A este título, pelo menos não poderia ser ultrapassado. Mesmo incapaz de dar forma à história mundial, permanece bastante forte para desacreditar as outras soluções. Considerado de perto, o marxismo não é uma hipótese qualquer, substituível amanhã por uma outra, é o simples enunciado das condições sem as quais não haverá humanidade no sentido de uma relação recíproca entre os homens, nem racionalidade na história. Nesse sentido, não é uma filosofia da história, é a filosofia da história, e renunciar é fazer a cruz sobre a Razão histórica. Após o que não há mais do que fantasias ou aventuras». Merleau-Ponty foi um dos últimos grandes filósofos a fazer a justificação filosófica da violência legítima usada contra o sistema de exploração capitalista (a violência retrógrada instalada no poder), recorrendo à dialéctica hegeliana do senhor e do escravo, a qual mostra que a história é essencialmente luta em que «cada consciência persegue a morte da outra». O poder implica necessariamente terror e este só pode ser combatido pela contra-violência que visa a realização do humanismo. Esta concepção de poder é forte e nada amorfa como a de Michel Foucault que, ao generalizar o poder e dispersá-lo pelas relações, desviou a atenção daquele poder que é necessário combater e mudar: o poder político, na sua acepção hegeliano-marxista. Em termos mais actuais, podemos dizer que, no seio das actuais sociedades democráticas, a pureza dos princípios, tais como o respeito à lei e o respeito à liberdade, inscritos nas suas Constituições, tolera e necessita das violências que se manifestam diariamente nas relações de trabalho, nas escolas, nos tribunais, no desemprego, no crescente empobrecimento das pessoas e das famílias, no serviço militar, nas relações entre o Estado e os cidadãos, nas prisões, nas descargas policiais, na hipocrisia das relações com os países pobres, nas empresas, nos despedimentos colectivos, enfim nas assimetrias de poder e nas desigualdades sociais cada vez mais gritantes, devido à globalização financeira. As violências existem em todas as esferas sociais e na vida quotidiana, apesar da hipocrisia do discurso moralista oficial da defesa dos direitos humanos e dos princípios puros. Não admira que as nossas sociedades condenem a violência: a pacificação da vida visa tornar as pessoas submissas aos poderes estabelecidos, os da corrupção generalizada, aos quais é reservado o direito de usar a violência física "legítima" sempre que um cidadão saia da ordem estabelecida, tal como moldada pelos interesses das classes dirigentes. O Código Penal (a arma dos corruptos) é cada vez mais severo a punir todos os actos de desacato das leis da falsa paz social. Contudo, as penas mais graves não são aplicadas àqueles que se entregam à alta corrupção, as classes dirigentes, mas aos pequenos delitos praticados pelo povo. Esta diferença social de aplicação de punições em função da categoria social a que pertencem os infractores mostra que vivemos numa sociedade pouco democrática, na qual uns poucos são mais iguais do que os muitos outros. A guilhotina inventada para arrancar as cabeças dos traidores da grande política, daquela que visa a libertação da humanidade, cedeu o seu lugar a outros meios de punição, incluindo nalguns países a pena de morte, para castigar os pequenos infractores. Os infractores pertencentes às classes dirigentes nunca são punidos! Contudo, em nome do humanismo, esses corruptos das altas esferas da sociedade são aqueles que merecem as maiores e mais graves punições. E, enquanto o povo não exigir a decapitação dos seus dirigentes corruptos, a democracia corre o risco de tornar-se uma oligarquia. Sem violência contra os corruptos das classes dirigentes, a luta pela liberdade e pela justiça está condenada ao fracasso. No momento presente, a mudança social qualitativa exige o uso da violência para pôr termo à corrupção que ameaça o futuro do humanismo. A violência é a única arma não-política capaz de renovar a sociedade, sobretudo quando dirigida em nome do humanismo contra os corruptos das altas esferas que condenam o mundo à miséria e à destruição! De facto, numa sociedade bloqueada e profundamente corrupta como a nossa, a mudança social qualitativa exige a circulação de elites (Pareto) e como as elites instaladas se perpetuam no poder através do sistema nacional da cunha, como se fossem titulares nobiliárquicos, só a violência as pode desalojar e abrir a sociedade ao futuro. É isto que está em questão: a corrupção que bloqueia o futuro de Portugal! J Francisco Saraiva de Sousa
quinta-feira, 24 de janeiro de 2008
Ociosidade e Filosofia
«Assim como chamamos homem livre aquele (homem) que pertence a si mesmo e não tem dono, de igual modo esta ciência (a Filosofia) é a única entre todas as ciências que pode ser chamada livre. Só ela depende efectivamente de si própria.» (Aristóteles, Metafísica) Tenho lido na blogosfera textos envenenados pelo ódio e, como sou homem de pensamento, sou obrigado a responder em cima do acontecimento, sem mencionar os seus diabólicos autores. Recentemente, li que nos acusam, a nós filósofos profissionais, de ser ociosos e alguns, os mais sociologistas e atarefados, inventaram um novo "ramo do saber": a ócio-logia, talvez entendida como uma "socio-logia" com a primeira letra rasurada (o "s"), o que equivale a dizer que praticamos "filosofia" entendida preconceituosamente como uma actividade alienada do mundo e, portanto, «inútil», imagem gravada no riso da mulher da Trácia (Hans Blumenberg), e/ou como discurso teorético que trata o homem sem ver que este é um produto da sociedade. Assumo a ócio-logia pela simples razão do ócio ser uma categoria filosófica pensada pelos gregos, em especial por Aristóteles, como uma condição necessária para o exercício do pensamento e da vida teórica (contemplativa), por oposição à vida activa (Arendt) e, como não me vejo como uma marioneta manipulada por poderes obscuros que escapam ao controle da minha inteligência, dado ser racional e livre, aceito retomar a designação de ócio-logia e repensá-la no âmbito da meta-filosofia. De facto, sem ociosidade, isto é, "tempo livre" controlado por mim próprio (autonomia versus heteronomia) e não pelas indústrias culturais e de diversão (Adorno), não podemos pensar, isto é, dialogar comigo mesmo, longe do mundo (Arendt/Sócrates), visando a destruição dos ídolos (Nietzsche), mediante o seu exame e o seu questionamento; pelo menos, nós filósofos não conseguimos pensar enquanto estamos sentados na retrete a defecar, façanha realizada diariamente pelos sociólogos ocupados que dispensaram o pensamento autónomo, porquanto, de acordo com a sua própria concepção de homem, são meros portadores de determinações sociais que escapam ao seu controle. Mas vamos com cuidado: nós filósofos somos "profissionais do pensamento" (Kant) e, mesmo quando julgamos estar a ironizar, traçamos linhas de demarcação entre teses justas e teses não-justas e, como se constata facilmente, acabei de enunciar, mediante este procedimento teórico, várias teses filosóficas que merecem ser pensadas e justificadas. Dito de modo incisivo, enunciei a tese fundamental de que a "sociologia" não pensa e, mesmo quando julga estar ao serviço da transformação do mundo, presta um serviço administrativo, não a favor da mudança social qualitativa, mas a favor da manutenção do sistema estabelecido, simplesmente porque a sua concepção do Homo sociologicus, bem desenvolvida por Ralf Dahrendorf, bloqueia o elemento rebelde ou, como diria Hegel ou mesmo Sartre, a negatividade inerente à condição humana. A sociologia como tarefa dos ocupados com os negócios da vidinha metabolicamente reduzida (Platão) "explica" (ou julga explicar) e, sobretudo, ajuda a manter a ordem estabelecida e é, por isso, que Marx nunca afirmou ser um "sociólogo": ao contrário dos seus maléficos discípulos intoxicados por lugares-comuns, Marx sabia que a sociologia era a arma ideológica usada pela burguesia para justificar ideologicamente a conservação da ordem estabelecida e a sua dominação, apresentando-a como uma "ordem natural". Para quem conhece bem o pensamento de Marx, sabe que estamos diante de uma das operações utilizada frequentemente pela "ideologia dominante" para apresentar a sociedade estabelecida como um sistema incontornável, acima da "vontade humana" e da história. Ao proceder assim, a ideologia dominante deturpa e encobre tudo, não só as possibilidades históricas de mudança social, como também o espírito da própria ciência, como se esta tivesse por missão descobrir ou revelar leis naturais incontornáveis e verdadeiras de uma vez para sempre. Daí a sua obsessão pelos fundamentos últimos, que, como todos sabemos, constituíam (e constituem) a preocupação fundamental do idealismo. Também neste aspecto Marx foi o primeiro filósofo a romper com o discurso fundacionalista e a esboçar uma epistemologia crítica adequada à nova ciência que criou: o "materialismo histórico" ou ciência da história. Mas já ouço os "comunistas pseudo-revolucionários" a relembrar aos berros a famosa XI Tese sobre Feuerbach, onde Marx diz que, em vez de interpretar o mundo de diversas maneiras, é preciso mudar o mundo, como se esta tese enunciasse o primado da praxis sobre a teoria, portanto, uma filosofia da praxis! Erro de interpretação! Althusser mostrou que esta tese enuncia uma «nova prática da filosofia» ou talvez, como penso, novas práticas de fazer filosofia, não uma filosofia alheia ao mundo, mas uma filosofia que, atenta ao mundo e à empiria, pode ajudar a melhorá-lo, mostrando que as categorias filosóficas devem orientar a praxis que visa transformar qualitativamente o mundo. Mas, como disse Lucien Sebag, que procurou reconciliar a fenomenologia e o marxismo, de resto tentativa que já tinha sido realizada pelo jovem Herbert Marcuse, discípulo de Heidegger, «o marxismo é incompreensível sem o reconhecimento desta essência humana que, independentemente dos seus modos de exteriorização, o define como Negatividade, Trabalho, Acção, Prática social, etc,; é na medida em que todas as sociedades são formalizações desse essência que simultaneamente a desenvolvem, marcam e alienam, que o projecto de uma comunidade humana, em que a alienação tivesse sido assumida/superada, uma vez levantado o véu, se torna concebível». Isto significa que a obra científica de Marx «assenta» numa antropologia, a que foi explanada nos seus escritos de juventude, que não podem ser vistos como obras não-marxistas, como fez Althusser que, ao abraçar o estruturalismo, se impediu de pensar a possibilidade de uma mudança social qualitativa, caindo inadvertidamente nas armadilhas do funcionalismo e do seu problema fundamental: Como é possível uma ordem social?, quando, na verdade, o problema de Marx era este: Como é possível mudar a ordem estabelecida? O facto do próprio Marx ter gastado mais tempo a estudar o modo de produção capitalista (objecto abstracto/formal) e a formação social capitalista (objecto concreto/real) do que a lutar politicamente pela causa do proletariado mostra que, para ele, não pode haver transformação qualitativa da "sociedade" burguesa (uma categoria ideológica, não-científica) sem antes ter elaborado, isto é, criado, o seu conhecimento. Isto equivale a dizer que, sem conhecimento daquilo que se pretende mudar, não pode haver mudança racional do mundo (Sebag). O próprio vector epistemológico (Bachelard) que vai do racional ou abstracto ao real ou concreto evidencia a linha geral da nova epistemologia que Marx coloca ao serviço da nova ciência: aquela que visa melhorar o mundo. Mas este "interesse de emancipação", associado à autoreflexão (Habermas), que orienta a ciência de Marx foi, por vezes, formulado em termos historicistas. Gramsci protagonizou esse historicismo, na esteira de B. Croce, mas preferimos ilustrá-lo recorrendo a Marcuse que, na sua obra "O Homem Unidimensional", escreveu: «Teoria social é teoria histórica e a história é a esfera da possibilidade na esfera da necessidade. (...) A teoria social interessa-se pelas alternativas históricas que assombram a sociedade estabelecida como tendências e forças subversivas. Os valores ligados às alternativas tornam-se realmente factos quando transformados em realidade pela prática histórica. Os conceitos teóricos terminam com a transformação social». Com este primeiro post, iniciámos um conjunto de reflexões dedicadas à clarificação das relações existentes entre o ócio e a filosofia, denunciando o carácter ideológico, portanto, não-científico, da "socio-logia ocupada", aquela que abdicou do pensamento em nome da produção de discursos apologéticos de alguma ordem estabelecida. (Continua) J Francisco Saraiva de Sousa
quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
Crise do Capitalismo
«A necessidade de evitar por qualquer preço a repetição de uma crise do tipo da de 1929 tornou-se uma questão de vida ou morte para o capitalismo...» (Ernst Mandel, 1962)
Estamos em 2008, o capitalismo sofreu desde os tempos de Marx algumas mudanças cosméticas, o bloco soviético e o seu modelo "socialista de economia planificada" ruíram e eis aí a grande crise do capitalismo em marcha acelerada, em plena era da Globalização: Os USA estão "falidos" e o seu sistema económico-financeiro ameaça derrocar, com milhares de famílias a ficarem brevemente sem casas, o desemprego a atingir taxas inimagináveis, enfim a pobreza e as desigualdades sociais a crescerem infinitamente a ritmos galopantes. A Europa confia na autonomia do seu Banco Europeu, como se as suas políticas monetaristas merecessem alguma confiança, sobretudo no momento presente em que todos sabemos o que significa "corrupção financeira e bancária"!
Esta crise do capitalismo mostra que a análise de Marx do capitalismo continua a ser válida, pelo menos nas suas linhas gerais e mais profundas, e os economistas "burgueses" sempre souberam disso, porque a sua "economia" mais não é do que uma tentativa de controlar e evitar a repetição de uma crise do tipo da de 1929 (Galbraith, 1954), com o consequente resultado visível de terem manipulado o Estado para se constituirem em "classe dirigente". Como escreveu Paul M. Sweezy (1942), «o inimigo realmente mortal do capitalismo é o seu próprio carácter contraditório», ou, como disse Marx, «a verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital». Em plena Guerra Fria, Ernest Mandel (1962) mostrou que o capitalismo exacerba uma série de contradições inerentes ao sistema: (1) a contradição entre a socialização da produção e a apropriação privada, (2) a contradição entre o carácter organizado, planificado, do processo de produção no interior das empresas e a anarquia da economia capitalista no seu conjunto, (3) a contradição entre a unificação global da economia e a conservação dos móbeis de lucro capitalista e (4) a contradição entre a tendência para o avanço das forças produtivas e os obstáculos que se opõem a esse avanço, devidos à própria existência do capital, às quais acrescenta outras mais actuais que ameaçam internamente o sistema. A globalização do capitalismo agravou estas contradições e produziu muitas outras, algumas das quais produziram guerras e toleraram massacres inúteis, criaram conflitos intercivilizacionais profundos, agravaram a distância entre ricos e pobres, e ameaçam, de uma ou outra forma, a própria Civilização Ocidental.
A herança do capitalismo é, portanto, pesada e intolerável. Esquematicamente, a lógica irracional do capitalismo destruiu, provavelmente de modo irreversível, a natureza e ameaça a biodiversidade e a própria vida na Terra (crise ecológica), produz continuamente desigualdades sociais e assimetrias de poder (crise social), engorda o Estado a ponto deste e os seus "administradores" estarem a liquidar a democracia, a cidadania e a invadir a esfera privada dos seus "cidadãos" (crise política), e, não satisfeito com tais façanhas, o capitalismo coloniza e comercializa a cultura (crise cultural) e ameaça gravemente o domínio da tradição ocidental a ponto de quase a liquidar (crise de civilização).
Estas crises (apresentadas esquematicamente) são muito evidentes desde há muito tempo, mas ninguém se preocupou verdadeiramente com elas, porque o capitalismo conseguiu domesticar a própria natureza humana, reduzida por todos os lados à sua dimensão estritamente metabólica e, portanto, satisfeita (crise humana), desde que os seres metabolicamente reduzidos tenham uns trocos no bolso ou crédito garantido fraudulentamente pelo sector bancário, para garantir o seu estacionamento nas grandes áreas comerciais, especialmente nas praças da alimentação, onde pastam pausadamente, qual gado completamente alienado do mundo (Arendt).
Diante desta crise financeira do capitalismo como sistema, cujo desfecho desconhecemos, estamos perfeitamente desarmados: não temos um modelo económico alternativo e também não desejamos retomar o "modelo soviético", apesar deste ter tido os seus aspectos positivos, como demonstrou Herbert Marcuse; e isto porque durante muito tempo os economistas defenderam um "discurso keynesiano optimista", como se estivessem na posse de uma solução milagrosa para garantir um "capitalismo sem crises". No entanto, desde a queda do Muro de Berlim, estes mesmos economistas, pelo menos na Europa, retomaram um "discurso fatalista", como se a única solução fosse "fazer sacrifícios" (redução do poder de compra, desemprego galopante, congelamento dos salários, etc.) para garantir a sustentabilidade do "Estado da Providência Social", uma criação "socialista" bastarda da economia keynesiana. De repente, o futuro deixa de estar garantido, embora as "classes dirigentes" (os "administradores" de James Burnham) estejam mais ricas do que nunca, dado a necessidade da intervenção do Estado para evitar o deflagrar das crises do capitalismo.
Ora, para fazer frente aos efeitos nefastos desta crise, convém regressar aos textos dos autores já clássicos e ignorados, devido à propaganda da "ideologia dos economistas", rejeitando todos os autores contemporâneos: Karl Marx, Rudolf Hilferding, Lenine, Paul M. Sweezy, Paul A. Baran, Maurice Dobb, Ernest Mandel, John K. Galbraith, W. W. Rostow, J. M. Keynes, Raymond Aron, enfim J. Schumpeter, entre os quais Keynes definiu O Capital de Marx como «um manual de economia desactualizado, (...) sem interesse e sem aplicação no mundo moderno». Ora, Keynes enganou-se completamente e auto-iludiu-se quando pensou ter descoberto o "antídoto anti-crise", porquanto a sua economia foi superada por novas tentativas de impedir o deflagrar das crises cíclicas do capitalismo.
Com este regresso aos textos clássicos, independentemente da sua orientação político-ideológica, procuramos novas vias e novas alternativas que possibilitem continuar a "sonhar para a frente" (Ernst Bloch), mas sem visar a "colonização do futuro" (auto-crítica marxista e liberal) e sem esquecer que devemos estar preparados para "dar a vida" em defesa do domínio Ocidental ameaçado interna e externamente pelos bárbaros (homenagem a Oswald Spengler). Esta busca só é possível mediante a revitalização da Filosofia, de resto a única jóia ocidental que não se presta à "prostituição", como sucede com a ciência e a tecnologia ocidentais, mais neutras em termos etnoculturais, e, por isso, desprezada e combatida pelos novos bárbaros que desejam as supostas "riquezas ocidentais" quando nós já sabemos que muitas delas são uma falsa e perigosa miragem, portanto, um sonho vão, quase um pesadelo. O actual clima de conflituosidade intercultural volta a colocar na ordem do dia o tema da Guerra e, segundo o prognóstico de Spengler, devemos defender o Ocidente com as armas nas mãos, em vez de cruzarmos os braços.
Na sua obra "Der Mensch und die Technik", Spengler escreveu estas belas palavras: «O optimismo é cobardia. Nascidos nesta época, temos de percorrer até final, mesmo que violentamente, o caminho que nos está traçado. Não existe alternativa. O nosso dever é permanecermos, sem esperança, sem salvação, no posto já perdido, tal como o soldado romano cujo esqueleto foi encontrado diante de uma porta de Pompeia, morto por se terem esquecido, ao estalar a erupção vulcânica, de lhe ordenarem a retirada. Isso é nobreza, isso é ter raça. Esse honroso final é a única coisa de que o homem nunca poderá ser privado». Morrer a lutar pelo seu posto é tarefa nobre, mas actualmente perdeu-se o sentido da luta pelas causas nobres e muito menos pela nossa civilização. Os jovens perderam os vínculos com a nossa tradição e caminham com as pernas abertas a qualquer invasor. Contudo, a missão da Filosofia é zelar pela nossa Tradição Ocidental. Aliás, a alma da Cultura Superior Ocidental é a Filosofia. J Francisco Saraiva de Sousa
Estamos em 2008, o capitalismo sofreu desde os tempos de Marx algumas mudanças cosméticas, o bloco soviético e o seu modelo "socialista de economia planificada" ruíram e eis aí a grande crise do capitalismo em marcha acelerada, em plena era da Globalização: Os USA estão "falidos" e o seu sistema económico-financeiro ameaça derrocar, com milhares de famílias a ficarem brevemente sem casas, o desemprego a atingir taxas inimagináveis, enfim a pobreza e as desigualdades sociais a crescerem infinitamente a ritmos galopantes. A Europa confia na autonomia do seu Banco Europeu, como se as suas políticas monetaristas merecessem alguma confiança, sobretudo no momento presente em que todos sabemos o que significa "corrupção financeira e bancária"!
Esta crise do capitalismo mostra que a análise de Marx do capitalismo continua a ser válida, pelo menos nas suas linhas gerais e mais profundas, e os economistas "burgueses" sempre souberam disso, porque a sua "economia" mais não é do que uma tentativa de controlar e evitar a repetição de uma crise do tipo da de 1929 (Galbraith, 1954), com o consequente resultado visível de terem manipulado o Estado para se constituirem em "classe dirigente". Como escreveu Paul M. Sweezy (1942), «o inimigo realmente mortal do capitalismo é o seu próprio carácter contraditório», ou, como disse Marx, «a verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital». Em plena Guerra Fria, Ernest Mandel (1962) mostrou que o capitalismo exacerba uma série de contradições inerentes ao sistema: (1) a contradição entre a socialização da produção e a apropriação privada, (2) a contradição entre o carácter organizado, planificado, do processo de produção no interior das empresas e a anarquia da economia capitalista no seu conjunto, (3) a contradição entre a unificação global da economia e a conservação dos móbeis de lucro capitalista e (4) a contradição entre a tendência para o avanço das forças produtivas e os obstáculos que se opõem a esse avanço, devidos à própria existência do capital, às quais acrescenta outras mais actuais que ameaçam internamente o sistema. A globalização do capitalismo agravou estas contradições e produziu muitas outras, algumas das quais produziram guerras e toleraram massacres inúteis, criaram conflitos intercivilizacionais profundos, agravaram a distância entre ricos e pobres, e ameaçam, de uma ou outra forma, a própria Civilização Ocidental.
A herança do capitalismo é, portanto, pesada e intolerável. Esquematicamente, a lógica irracional do capitalismo destruiu, provavelmente de modo irreversível, a natureza e ameaça a biodiversidade e a própria vida na Terra (crise ecológica), produz continuamente desigualdades sociais e assimetrias de poder (crise social), engorda o Estado a ponto deste e os seus "administradores" estarem a liquidar a democracia, a cidadania e a invadir a esfera privada dos seus "cidadãos" (crise política), e, não satisfeito com tais façanhas, o capitalismo coloniza e comercializa a cultura (crise cultural) e ameaça gravemente o domínio da tradição ocidental a ponto de quase a liquidar (crise de civilização).
Estas crises (apresentadas esquematicamente) são muito evidentes desde há muito tempo, mas ninguém se preocupou verdadeiramente com elas, porque o capitalismo conseguiu domesticar a própria natureza humana, reduzida por todos os lados à sua dimensão estritamente metabólica e, portanto, satisfeita (crise humana), desde que os seres metabolicamente reduzidos tenham uns trocos no bolso ou crédito garantido fraudulentamente pelo sector bancário, para garantir o seu estacionamento nas grandes áreas comerciais, especialmente nas praças da alimentação, onde pastam pausadamente, qual gado completamente alienado do mundo (Arendt).
Diante desta crise financeira do capitalismo como sistema, cujo desfecho desconhecemos, estamos perfeitamente desarmados: não temos um modelo económico alternativo e também não desejamos retomar o "modelo soviético", apesar deste ter tido os seus aspectos positivos, como demonstrou Herbert Marcuse; e isto porque durante muito tempo os economistas defenderam um "discurso keynesiano optimista", como se estivessem na posse de uma solução milagrosa para garantir um "capitalismo sem crises". No entanto, desde a queda do Muro de Berlim, estes mesmos economistas, pelo menos na Europa, retomaram um "discurso fatalista", como se a única solução fosse "fazer sacrifícios" (redução do poder de compra, desemprego galopante, congelamento dos salários, etc.) para garantir a sustentabilidade do "Estado da Providência Social", uma criação "socialista" bastarda da economia keynesiana. De repente, o futuro deixa de estar garantido, embora as "classes dirigentes" (os "administradores" de James Burnham) estejam mais ricas do que nunca, dado a necessidade da intervenção do Estado para evitar o deflagrar das crises do capitalismo.
Ora, para fazer frente aos efeitos nefastos desta crise, convém regressar aos textos dos autores já clássicos e ignorados, devido à propaganda da "ideologia dos economistas", rejeitando todos os autores contemporâneos: Karl Marx, Rudolf Hilferding, Lenine, Paul M. Sweezy, Paul A. Baran, Maurice Dobb, Ernest Mandel, John K. Galbraith, W. W. Rostow, J. M. Keynes, Raymond Aron, enfim J. Schumpeter, entre os quais Keynes definiu O Capital de Marx como «um manual de economia desactualizado, (...) sem interesse e sem aplicação no mundo moderno». Ora, Keynes enganou-se completamente e auto-iludiu-se quando pensou ter descoberto o "antídoto anti-crise", porquanto a sua economia foi superada por novas tentativas de impedir o deflagrar das crises cíclicas do capitalismo.
Com este regresso aos textos clássicos, independentemente da sua orientação político-ideológica, procuramos novas vias e novas alternativas que possibilitem continuar a "sonhar para a frente" (Ernst Bloch), mas sem visar a "colonização do futuro" (auto-crítica marxista e liberal) e sem esquecer que devemos estar preparados para "dar a vida" em defesa do domínio Ocidental ameaçado interna e externamente pelos bárbaros (homenagem a Oswald Spengler). Esta busca só é possível mediante a revitalização da Filosofia, de resto a única jóia ocidental que não se presta à "prostituição", como sucede com a ciência e a tecnologia ocidentais, mais neutras em termos etnoculturais, e, por isso, desprezada e combatida pelos novos bárbaros que desejam as supostas "riquezas ocidentais" quando nós já sabemos que muitas delas são uma falsa e perigosa miragem, portanto, um sonho vão, quase um pesadelo. O actual clima de conflituosidade intercultural volta a colocar na ordem do dia o tema da Guerra e, segundo o prognóstico de Spengler, devemos defender o Ocidente com as armas nas mãos, em vez de cruzarmos os braços.
Na sua obra "Der Mensch und die Technik", Spengler escreveu estas belas palavras: «O optimismo é cobardia. Nascidos nesta época, temos de percorrer até final, mesmo que violentamente, o caminho que nos está traçado. Não existe alternativa. O nosso dever é permanecermos, sem esperança, sem salvação, no posto já perdido, tal como o soldado romano cujo esqueleto foi encontrado diante de uma porta de Pompeia, morto por se terem esquecido, ao estalar a erupção vulcânica, de lhe ordenarem a retirada. Isso é nobreza, isso é ter raça. Esse honroso final é a única coisa de que o homem nunca poderá ser privado». Morrer a lutar pelo seu posto é tarefa nobre, mas actualmente perdeu-se o sentido da luta pelas causas nobres e muito menos pela nossa civilização. Os jovens perderam os vínculos com a nossa tradição e caminham com as pernas abertas a qualquer invasor. Contudo, a missão da Filosofia é zelar pela nossa Tradição Ocidental. Aliás, a alma da Cultura Superior Ocidental é a Filosofia. J Francisco Saraiva de Sousa
terça-feira, 22 de janeiro de 2008
Prós e Contras: Cigarros Apagados
O programa "Prós e Contras" de hoje (21 de Janeiro de 2008), dedicado à nova "lei anti-tabaco", foi hilariante: de um lado, Fátima Bonifácio e Sá Fernandes, dois iluminados, do outro, dois "talibans (talibãs) sanitaristas", ambos da Escola de Saúde Pública Nacional. Este debate mostra até que ponto a democracia portuguesa está a ser subvertida internamente por um grupo de talibãs profundamente sedentos de poder e que usam a "ciência" como "fonte de uma autoridade inexistente", protagonizada neste programa pelos dois talibãs sanitaristas. Devo dizer que estou de acordo com a posição corajosamente defendida por Fátima Bonifácio e secundada pela experiência jurídica e polémica de Sá Fernandes e do Presidente do Casino Estoril. Apenas lamento que Fátima Bonifácio tenha cedido o argumento dos estudos científicos que demonstram ou não os supostos malefícios do tabaco. É esse argumento que quero recuperar: a "autoridade científica" exibida pelos talibãs sanitaristas foi nula e, pelos vistos, eles divulgam essa "charlatanice" nas suas aulas. A ciência não é em si mesma uma autoridade ou fonte de autoridade e, se o fosse, seria uma autoridade não-política falível. Contudo, Francisco George menciona um estudo realizado em casais em que um dos membros fuma e o outro, não, cujos resultados mostraram que o membro que não fuma tem grandes probabilidades de vir a ter um cancro pulmonar. Deste estudo foi concluído que o fumo passivo é tão perigoso (ou mais) quanto o fumo activo. Ora, um "cientista honesto" sabe que se trata de um estudo estatístico e que, por isso, os seus resultados devem ser interpretados com muito cuidado, levando em conta questões relativas à sua validade interna e externa. À partida são possíveis outros estudos que, controlando as mesmas variáveis, podem descobrir uma terceira variável que explane melhor a correlação ou associação estabelecida pelo estudo anterior. Muitos outros factores podem intervir e facilitar a ocorrência de qualquer doença. Com isto não pretendo justificar o uso do tabaco, embora o ache menos nefasto que o uso de muitas outras substâncias, aliás bem mais perigosas para a saúde pública. (O monóxido de carbono expelido pelos carros é um desses perigos e talvez o mais fatal, ao qual podemos acrescentar o abuso do álcool e de drogas pesadas.) Mais há outro tipo de estudos, especialmente antropológicos, que podem mostrar os benefícios (sociais, psicológicos e de saúde) do tabaco: estes estudos também existem e são fáceis de fazer. (Infelizmente, devido às limitações do "blogger", não posso simular os resultados de um estudo prévio e mostrar que uma associação estabelecida nesse estudo pode encobrir uma terceira variável explicitada num estudo mais cuidadoso e com outro delineamento experimental, usando outras técnicas estatísticas. Mas devo dizer que uma correlação não deve ser vista como uma relação de causa/efeito, até que se façam novos estudos, de preferência laboratoriais.) Mas independentemente dos estudos, uns científicos, outros claramente ideológicos, a política não pode estar subordinada a "estudos higienistas", marcadamente talibãs e fundamentalistas, muitos dos quais financiados por grupos que têm interesses obscuros noutras áreas da economia, mesmo na economia clandestina e ilegal. Como socialista, espero que os socialistas tenham escutado e visto este programa e que pressionem o governo para demitir estes talibãs fundamentalistas, tal como foi exigido por alguns dos presentes. Com efeito, proferiram um discurso claramente antidemocrático e ideologicamente totalitário: tentaram e tentam criminalizar o uso do tabaco e, pelos vistos, sem suporte legal e técnico legítimo. Até falaram da "morte precoce", como se uma sociedade idosa constituisse alguma estratégia evolutivamente estável ou simplesmente desejável! Os seres vivos nascem, vivem e morrem e é assim que deve ser: o mito do prolongamento da vida é absolutamente irracional, além de ser hipócrita quando usado para defender interesses pouco transparentes! Em democracia, as liberdades individuais devem ser, como disse repetidamente Fátima Bonifácio, defendidas e o Estado não deve imiscuir-se na esfera privada, até porque já detém muitos instrumentos electrónicos panópticos de controle. Um dos talibãs, o Constantino, mencionou a democracia grega e o contrato social, a favor da proibição absoluta do uso de tabaco nos espaços públicos (concepção totalitária) e ninguém o confrontou com a sua ignorância e a sua malvadez. Democracia grega? Mas ele sabe o que era a esfera pública da polis grega? Contrato social? Mas ele sabe que o contrato garantia a propriedade privada que quer controlar? Um "mísero médico", que envergonhou publicamente a medicina, pretende dar lições de filosofia, integrando o divino Platão entre os liberais? Mas ele sabe o que é o liberalismo político? A melhor medida é realizar campanhas de sensibilização e deixar que os proprietários dos estabelecimentos comerciais em causa optem ou pelo fumo devidamente ventilado e purificado ou pelo não-fumo. Com as etiquetas visíveis, cabe a cada cidadão optar: entro ou não entro, independentemente de ser ou não fumador. Esta medida protege os direitos de todos: fumadores e não-fumadores. Mas querer proibir o uso do tabaco constitui um atentado contra as liberdades individuais e, se assim é, temos o direito de exigir maior competência àqueles que lideram o país. E, como o lideram muito mal, devemos lutar activamente pela sua retirada forçada dos órgãos de decisão nacional: a incompetência, aliada à maldade, é o maior inimigo da saúde pública! Isto é uma vergonha nacional: A ignorância activa está instalada no poder e, sem argumentos racionalmente motivadores, usam e abusam da propaganda para intimidar os portugueses! E, infelizmente, com algum sucesso, dado o estado depauperado dos habitantes deste país e a sua muito fraca auto-estima. (Sobre a degradação da democracia ocidental reconduzo para outros posts onde abordo esse tema.) PORTUGUESES: O medo destrói a mente. Por favor, libertem-se do medo e digam: Basta, NÃO queremos mais estes burrecos! J Francisco Saraiva de Sousa
segunda-feira, 21 de janeiro de 2008
Helmuth Plessner: Conditio Humana
«Sem o sopro da vida o corpo humano é um cadáver; sem o pensar o espírito humano está morto.» (Hannah Arendt) Os posts que tenho editado sobre antropologia filosófica visam, em última análise, destruir toda a história da sociologia "atarefada" e o seu pretenso relativismo, que, quando foi levado a sério, como no caso da ex-URSS ou nos gabinetes de pesquisa administrativa, contribuiu para a liquidação da individualidade e da dignidade da vida humana, como testemunham os erros cometidos pela interpretação "comunista" da teoria de Marx. Alheios à tradição de Sócrates e, portanto, à tradição do pensamento crítico, os sociólogos "atarefados" atarefam-se em mil e uma actividades rotineiras, sem imaginação, em busca de fama ou de algum prémio, como se essa ambição mesquinha lhes restituísse a dignidade do exercício de pensamento. E o seu Homo sociologicus (Ralf Dahrendorf) mais não é do que um fantoche, manipulado pela má-publicidade (Habermas) e, portanto, destituído de "verdadeiro self" (Rogers) e de pensamento autónomo, figura contra a qual a antropologia filosófica na sua ociosidade criativa elabora a noção de Homo absconditus. Esta é a única figura que faz justiça à afinidade existente entre dialéctica e tragédia que Lucien Goldmann soube captar na sua obra "Le Dieu Caché", retomando os textos do jovem Georg Lukács. Em 1928, Helmuth Plessner (1892-1985) publicou a sua obra fundamental de antropologia filosófica, "Die Stufen des Organischen und der Mensch", mas, quando regressa à Alemanha após o seu exílio holandês, em 1945, confronta-se com duas obras, a de Heidegger que ilude o aspecto "natural e social" do ser humano, e a de Arnold Gehlen que destaca o seu aspecto biológico. Plessner não se inibe e procura retomar o seu caminho já presente na sua obra anterior "Die Einheit der Sinne" (1923). Para Plessner, o homem não é um animal dotado de um espírito que lhe foi insuflado de fora (concepção quase bíblica), mas um "ser de uma-só-peça" (aus-einem-Guss-Sein), composto pelo biológico-natural e pelo espiritual-cultural, pela physis e pela psyche. Isto equivale a dizer que a condição humana é um corpo animado e um espírito encarnado. Deste modo, Plessner afirma a unidade indissolúvel, sem fissuras, da interioridade (Innen) e da exterioridade (Aussen) do ser humano. Contra o dualismo platónico, cristão e cartesiano, Plessner elabora o conceito de "posicionalidade" (Positionalität) como categoria unitária dos seres vivos. Isto significa que a posicionalidade é própria dos organismos vivos por oposição ao inorgânico: os organismos vivos mantêm as suas relações com o seu meio e afirmam-nas, enquanto o inorgânico se caracteriza pela sua "a-relacionalidade" com o mundo-circundante. Com este conceito de posicionalidade, a antropologia de Plessner estuda as estruturas, não como essências ou princípios absolutos, mas na sua relação com as conjunturas ambientais, históricas e emocionais, sempre mutáveis e imprevisíveis. Fundada na relação entre o organismo e o meio, a antropologia de Plessner distancia-se da oposição mantida pela antropologia de Max Scheler entre espírito e vida. Com o homem, a esfera da vida dá um salto radical e alcança um nível distinto do "desenrolar normal" do existente. A identidade humana reconhece-se no seu ser-corpo e também no seu ser-no-corpo. Isto significa que o "eu" pode reconhecer-se plenamente tanto na esfera física como na esfera psíquica. Por causa da sua "posição excêntrica", portanto, anticartesiana, o homem pode relacionar-se tanto com a dimensão corporal como com a dimensão espiritual, tanto com o mundo externo como com o mundo interno. Isto quer dizer que o homem se tem a si mesmo e é si mesmo, ou seja, pode compreender o seu corpo (Körper) como um objecto qualquer, analisá-lo e compará-lo com outros corpos e objectos, mas também pode identificar-se com o seu corpo (Leib), identificado com o centro das suas sensações, acções e emoções. Ao contrário dos animais, o homem não é somente um corpo, mas tem também um corpo, o que permite a Plessner falar do duplo-aspecto (Doppelaspektivität) do ser humano. A posição excêntrica em que se encontra o homem permite-lhe descentrar-se, renunciar à sua própria centralidade em relação às coisas e às pessoas do próprio meio, e, quando se distancia de si próprio, o homem pode ver-se a si mesmo e a sua situação no cosmos. Esta distância foi chamada consciência, vista como sinónimo de laceração ou de fractura incurável que se manifesta em todos os momentos da existência humana. A necessidade de ser um corpo no sentido somático e psíquico e a necessidade de ter um corpo no sentido material conduzem a uma fractura irremediável no interior da existência humana. O homem é supostamente essa fractura, o centro da incessante mediação entre o exterior e o interior e, por isso, em todos os momentos da sua existência, deve procurar um equilíbrio, sempre provisório e precário, que é expressão da sua condição utópica, da sua inalcançável fixação de homo absconditus. A obra "Die Stufen des Organischem und der Mensch" propõe uma teoria dos modelos orgânicos essenciais, chamada "teoria apriorística dos caracteres orgânicos essenciais", onde leva a cabo uma dedução, em sentido kantiano, das categorias e dos princípios a priori de que dependem as características da vida em geral e, muito especialmente, do homem. O centro desta teoria é ocupado pelo princípio de posicionalidade, que permite estabelecer, ao nível ontológico e cognitivo, a diferenciação entre realidade orgânica e realidade inorgânica e entre o mundo animal e o mundo humano. Esta diferenciação posicional entre os diferentes reinos da natureza (vegetal, animal e humano) é entendida como um verdadeiro princípio constitutivo da natureza, mais do que uma mera classificação, da qual se originam os distintos níveis do orgânico, cujo carácter gradual se fundamenta na coesão interna do vivente, na sua capacidade de relação com o mundo externo e na autonomia interior do próprio eu. Nesta "escala posicional", o homem ocupa o vértice, sendo cada uma das escalas autónoma em relação às outras. 1) O primeiro nível da escala é o vegetal. Marcado por uma forma aberta, o organismo vegetal encontra-se englobado numa área concreta, sem poder distinguir-se dela e, deste modo, destacar a sua individualidade. Torna-se impossível distinguir, no mundo vegetal, entre um mundo interno e um mundo externo, porque não há um centro, um si mesmo, que confira consciência ao sujeito. Isto significa que, na ausência de um órgão central, uma planta não é um individuum, mas um dividuum, incapaz de se mover voluntariamente e, por conseguinte, de alcançar a plenitude. A planta permanece para sempre incompleta: é um inacabamento intrínseco. 2) No reino animal, a forma aberta transforma-se em forma fechada, porque as interacções com o meio ocorrem através da mediação de uma estrutura central determinante, que activa a inserção do animal no seu habitat. O animal é um organismo autónomo que reage ao seu ambiente de acordo com os seus próprios impulsos, sensações e instintos. Além disso, o animal é dotado de consciência, porque é capaz de distinguir-se do seu meio e de opor-se ao seu meio. Contudo, apesar de possuir um centro, o animal não possui capacidade reflexiva: «O animal vive no seu centro e retorna a ele, mas não vive como centro» (Plessner), porque, embora saiba conhecer e actuar, o animal não tem consciência dos seus conhecimentos e das suas acções. Isto significa que o animal não tem consciência do que faz, porque ainda não possui um "eu". 3) O homem encontra-se na posição mais elevada da escala do orgânico. Tal como o animal, o homem possui uma forma fechada, mas, ao contrário do animal, é capaz de distanciar-se de si próprio e alcançar a autoconsciência, que constitui o ponto culminante de todo o sistema dos seres vivos. Por causa desta sua capacidade reflexiva, o homem pode distanciar-se voluntariamente do seu centro, o que lhe permite superar a necessidade biológica à qual o animal permanece prisioneiro, dado ser incapaz de ter consciência daquilo que faz. A autoreflexão possibilita ao homem transcender o seu próprio centro biológico e, deste modo, conquistar uma posição excêntrica: «Esta posição de ser centro e, simultaneamente, estar na periferia, merece o nome de excentricidade» (Plessner). A posição excêntrica do homem manifesta-se através de uma pluralidade de formas e torna-o capaz de interpretar diversas personagens no cenário do grande "teatro do mundo". Como vimos, com o animal passa-se do dividuum, que é típico do vegetal, para o individuum, que é a singularidade garantida pelo centro. Com a sua excentricidade, o homem passa do indivíduo para a pessoa, que é a perfeita realização da excentricidade como autoconsciência. Embora saiba distinguir entre ele mesmo e o seu meio, o animal é incapaz de distinguir entre ele e ele próprio, portanto, não consegue estabelecer uma distância consigo próprio. Ora, o homem constitui-se como tal a partir da autoreflexão, a qual implica uma visão, ponderação e interpretação de si próprio desde um ponto exterior, descentrado e crítico, aquilo a que Plessner chama a sua "posição excêntrica" (exzentrische Positionalität). Plessner procurou formular uma «doutrina das leis fundamentais ou categorias da vida», com o objectivo de estabelecer lógica e sistematicamente (não em termos evolutivos) as etapas do desenvolvimento dos seres vivos, entre os quais o homem ocupa um lugar privilegiado. Estas leis antropológicas fundamentais são a artificialidade natural, a imediatez mediada e o lugar utópico, as quais explicam como o homem constrói a sua vida a partir da separação originária da "imediatez mediada", expressão que Plessner retoma da dialéctica de Hegel. 1) A primeira lei é a da "artificialidade natural". O homem não vive em contacto imediato com o seu meio, porque é forçado a transformar o mundo natural num mundo artificial. Esta transformação implica a imersão do homem na instabilidade e na perplexidade que o confrontam constantemente com a atitude interrogativa e o desafiam a responder às questões: Que devo fazer?, Como devo viver? ou Como devo solucionar os meus problemas? O homem não pode ser exclusivamente um ser natural, mas é obrigado a produzir instrumentos que lhe permitam transformar o mundo natural e convertê-lo no seu próprio habitat: um mundo artificial, no qual encontra a sua "terra natal", a sua "segunda natureza". Dado ser um "animal carente" (Gehlen), o homem deve suprir com o seu engenho, artificialmente, as suas carências naturais: quer dizer que o homem é naturalmente um "ser artificial" e tudo o que produz (moral, valores e vinculação às normas ideais) é resultado da artificialidade humana. Ao contrário do animal, que se mantém em equilíbrio consigo mesmo e com o meio, o homem é um "coração inquieto": está sempre à procura de equilíbrio, reconciliação, porque não possui um meio natural próprio. 2) A segunda lei é a da "imediatez mediada". O homem vive ao mesmo tempo como organismo animal na imediatez da natureza e como ser excêntrico através da mediação cultural. Na peugada de Hegel, Plessner destaca a importância das mediações na existência humana, as quais são reflexivas, devido à sua posição excêntrica. Ao contrário do animal, o homem é confrontado com uma "imediatez mediada" (Unmittelbarkeit) e uma fractura da imediatez que é própria do animal: o homem deve proceder a constantes transformações do natural, para dar vida ao inexistente, as múltiplas criações artificiais que alcança através das interrogações e dos reptos que lhe coloca a própria existência. 3) A terceira lei é a do "lugar utópico", à qual Plessner dedicou uma obra inteira. Como ser excêntrico, o homem encontra-se constantemente projectado para além de qualquer para além. Isto significa que o homem nunca se sente em casa, nem nas suas objectivações culturais, nem nas suas ordenações sociais, simplesmente porque para o homem não há nenhum lugar fixo no universo. Até a história carece de sentido definitivo. A tese da excentricidade humana é incompatível com toda a posição definitivamente consolidada, colocando o homem à procura constante de novas possibilidades, sempre abertas e, portanto, condenadas a não conseguir fixar a sua posição. Como diz Plessner: «(O homem) está em posição excêntrica esteja onde estiver, e, ao mesmo tempo, não está onde está». (Este texto está sujeito a alterações ou mesmo acrescentos, provavelmente editados num novo post.) J Francisco Saraiva de Sousa
domingo, 20 de janeiro de 2008
Arnold Gehlen: a Abertura do Homem ao Mundo
«Visto como um animal nu, destituído de instintos, o homem é o mais miserável dos seres!» (Herder)
De acordo com a "história dogmática da disciplina", a antropologia filosófica foi fundada propriamente por Max Scheler e levada a cabo pelos seus seguidores: H. Plessner, A. Portmann. A. Gehlen, E. Rothacker e M. Landmann. Estas primeiras antropologias filosóficas esboçaram uma síntese ou imagem filosófica coerente do homem a partir da biologia e, muito especialmente, da etologia tal como foi fundada por K. Lorenz. Por isso, esta primeira abordagem filosófica do homem foi justamente designada antropobiologia, ao lado da qual surgiram mais recentemente novas antropologias filosóficas distintas entre si pelas abordagens adoptadas: Rothacker e, parcialmente, Cassirer adoptaram uma abordagem culturalista, Ph. Lersch segue uma abordagem psicológica, Marcuse adopta uma abordagem sociológica marcadamente freudomarxista, Lévi-Strauss abraça a etnologia e W. Pannenberg, J. Moltmann e Karl Rahner apresentam o repto teológico.
Neste post, pretendemos apresentar em linhas gerais a antropologia filosófica de Arnold Gehlen, que, apesar de ser herdeira da abordagem de Max Scheler, traz para o centro da reflexão antropológica o contributo decisivo da etologia de K. Lorenz e de um autor menos conhecido Herder (1744-1803). Tanto Scheler quanto Gehlen aceitam a questão do homem tal como tinha sido formulada por Herder: «O que falta ao animal que se aproxima mais do homem (quer dizer, ao macaco) que explique a razão por que ele não se tornou homem?» Esta formulação da questão do homem implica necessariamente uma ruptura com todas as imagens filosóficas do homem ao longo da história da filosofia: a grega (Platão e Aristóteles), a cristã (Santo Agostinho e São Boaventura) e a moderna (Descartes), possibilitando o recurso aos dados recolhidos pelas ciências empíricas particulares. Como a resposta de Gehlen é muito semelhante à de Herder, vale a pena citar na integra um texto deste último:
«Visto como um animal nu, destituído de instintos, o homem é o mais miserável dos seres! Não há nele nenhum impulso obscuro e inato que o conduza no seu elemento e no seu círculo de acção à sobrevivência e às tarefas que lhe são próprias. Não tem faro, cheiro instintivo, que o arraste para as ervas capazes de lhe matar a fome! Não dispõe dum mestre mecânico, cego, que lhe venha construir um ninho! Ei-lo, abandonado e só! Fraco e ameaçado, sujeito à fúria dos elementos, à fome, a todos os perigos, à rapina dos animais mais fortes. a mil mortes possíveis! Sem o ensinamento imediato da natureza criadora, sem a condução segura dessa mão! Cercado e perdido!»
Contudo, após ter apresentado o homem como um ser deficiente, Herder passa, logo a seguir, a apresentar os seus aspectos vantajosos:
«Mas, por mais viva que seja esta imagem, a verdade é que não é a imagem do homem... É apenas um aspecto superficial e, mesmo esse, colocado sob uma falsa luz. Se o entendimento e a reflexão são o dom natural da espécie humana, então esta tinha que se exprimir de imediato, ao mesmo tempo que se exprimiam a fraqueza da sua sensibilidade e a miséria das suas privações. A criatura miserável, sem instintos, vinda das mãos da natureza em estado de tal abandono, era também, desde o primeiro momento, a criatura livre e racional que havia de se socorrer a si própria porque, aliás, outra coisa não podia. As carências e necessidades enquanto animal, tornaram-se causas prementes para mostrar, com todas as suas forças, que era homem. (...) O centro de gravidade do homem, o direccionamento principal da sua actividade anímica, residia no entendimento, na reflexão humana, do mesmo modo que na abelha reside sem mediações na sucção e na construção dos favos».
«(...) E, do mesmo modo (o amor maternal), também na totalidade do género humano a natureza sabe transformar a fraqueza em força. É por isso mesmo que o homem vem ao mundo tão fraco, tão necessitado, tão destituído de ensinamentos naturais, todo ele sem talentos, sem habilidade, como nenhum animal; para que possa, como nenhum animal, gozar duma educação e para que o género humano, como nenhuma espécie animal, possa tornar-se um todo intimamente ligado!» A imagem do homem elaborada por Herder é bastante complexa e, neste último parágrafo citado, ele, partindo do modelo do amor maternal, procura mostrar que o "ser prematuramente nascido" (Bolk) precisa dos cuidados maternais e da comunidade onde nasceu, de modo a adquirir a linguagem e outros traços que farão dele um ser adulto capaz de construir o seu próprio mundo, de modo a proteger-se das adversidades e colmatar as suas fraquezas biológicas: «Somos, pois, afirma Herder, criaturas da linguagem». Comparados com os outros animais, nascemos demasiado fracos, destituídos de instintos e, por isso, incapazes de fazer face às adversidades; se não fossem os cuidados maternais prestados durante esse período crítico das nossas vidas, estaríamos condenados ao abandono e à morte. Apesar disso, somos dotados de entendimento e de reflexão e possuímos o dom da linguagem, qualidades da nossa natureza que compensam as nossas deficiências naturais e que "fazem de nós homens" e, como tal, distintos dos restantes animais. Na sua obra "O Homem, sua Natureza e seu Lugar no Mundo", Arnold Gehlen (1940) considera que a qualidade essencial do homem reside na ausência de adaptação a um determinado meio-ambiente. Face à elevada especialização e à segurança instintiva do animal, o homem surge biologicamente como um «ser deficiente», devido à sua falta de especialização, à sua imaturidade e à sua pobreza de instintos. Para sobreviver, o homem tem de compensar esta falta de especialização com a sua própria acção, a qual lhe permite construir um mundo cultural, onde surgem as suas mais elevadas realizações espirituais e culturais. Gehlen chama ao homem o «ser incompleto» (ou "em busca permanente") e pensa que foi constrangido, por carência de adaptações morfológicas especiais, a fabricar o seu próprio mundo de cultura, através da sua acção: «Com efeito, morfologicamente, o homem, em contraposição aos mamíferos superiores, está determinado pela carência que é necessário explicar no seu sentido biológico exacto como não-adaptação, não-especialização, primitivismo, isto é: não-evoluído; de outra forma: essencialmente negativo» (Gehlen). Isto significa que a sua conduta universal se caracteriza pelo conceito de «abertura ao mundo«, em contraste com a «vinculação ao meio» que caracteriza a conduta dos animais: «(...) O homem é um ser desesperadamente inadaptado. É de uma mediania biológica única no seu género (...) e só conseguiu sair desta carência mediante a sua capacidade de trabalho ou o dom da acção; isto é: com as suas mãos e a sua inteligência. Precisamente por isso está erecto, circum-spectans (olhando ao redor) e as suas mãos estão livres» (Gehlen). O comportamento animal está «vinculado ao meio», enquanto a conduta humana está «livre do meio» e, por isso, é uma conduta «aberta ao mundo». O animal tem um meio limitado; o homem, pelo contrário, vive num mundo aberto; é um "ser aberto ao mundo". O meio ambiente (Umwelt) significa um espaço vital perfeitamente limitado sobre o qual se estabelece de forma específica um ser vivo. O mundo (welt) significa, pelo contrário, um horizonte vasto que rompe, por definição, qualquer limitação precisa e elimina toda a fixação, sendo por isso mais amplo que o espaço vital imediato. Daqui resulta que o animal é um ser ligado ao meio porque está ligado ao instinto, e que o homem está aberto ao mundo, precisamente porque carece da adaptação animal a um "ambiente-fragmento": «A abertura ao mundo, vista (como uma incapacidade natural de viver num ambiente-fragmento), é fundamentalmente uma tarefa» (Gehlen). Isto significa que, face à carência de um meio ambiente (circum-mundo) com distribuição de significados realizada por via instintiva, o homem tem de realizar essa tarefa, mediante os seus próprios meios e por si mesmo, isto é, o homem precisa «transformar por si mesmo os condicionamentos carenciais da sua existência em oportunidades de prolongamento da sua vida» (Gehlen). O homem é «um ser práxico porque é não-especializado e carece, portanto, de um meio ambiente adaptado por natureza. A essência da natureza transformada por ele em algo útil para a vida chama-se cultura e o mundo cultural é o mundo humano» (Gehlen). A partir desta noção de homem como um ser carencial e, por isso, um "ser em-risco", Gehlen elabora uma imponente teoria da cultura como conceito antropobiológico e do homem como «um ser de cultura por natureza», porque "não-terminado". K. Lorenz critica a noção do homem como "ser não-completo", alegando que não se trata de um conceito biológico, porque «não há seres não adaptados, ou então são simplesmente seres isolados, condenados a desaparecer, feridos por factores mortíferos». De facto, como lembra Lorenz, o cérebro do homem, com as suas dimensões grandiosas, representa uma adaptação morfológica especial e absolutamente evidente. Apesar disso, Lorenz reconhece que a teoria de Gehlen encerra qualquer coisa de fundamentalmente verdadeiro: «um ser que possuísse uma adaptação morfológica claramente especializada nunca poderia ter dado o homem». Adolf Portmann mostrou que as realizações culturais superiores não podem ser explicadas a partir deste elemento negativo de uma deficiência biológica, mas, como vimos, Lorenz que partilha esta crítica não descarta completamente a teoria do homem de Gehlen: um ser especializado não daria um homem, um ser que deve assumir a tarefa de criar o seu próprio mundo. O seu cérebro prepara-o biologicamente para levar a cabo essa tarefa, sem lhe garantir nada, até porque o cérebro é, ele próprio, um "órgão aberto ao mundo", portanto em-risco permanente de fracassar. Contudo, quando elabora a sua teoria das instituições sociais, em diálogo permanente com a etologia, Gehlen reforça a sua teoria do homem como "ser incompleto". J Francisco Saraiva de Sousa
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