sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Linguagem, Pensamento e Realidade (1)

I. ANTECEDENTES DA HIPÓTESE DE SAPIR-WHORF
«Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo». (Ludwig Wittgenstein)
A filosofia da linguagem (Von Kutschera, 1979) debate-se com um problema complexo, o de saber que tipo de relação existe entre linguagem e pensamento, por um lado, e entre linguagem e realidade, por outro lado. Diversas disciplinas têm tentado resolver este problema e as «soluções» apresentadas giram em torno de duas teorias da mente:
1) uma teoria empirista da mente (Locke, Hume), segundo a qual o conhecimento é uma reprodução e uma recordação passivas de impressões sensoriais, que se encontram coordenadas mediante mecanismos de associação ou de estímulo-resposta, as crenças e, em especial, as categorias de classificação, encontram-se embebidas na língua de cada cultura, e o raciocínio é uma função inata similar em todos os seres humanos adultos;
2) e uma teoria inatista da mente (Lévi-Strauss, Chomsky), segundo a qual a mente não recebe passivamente a impressão de representações colectivas geradas socialmente, mas encontra-se desde o início equipada com um conjunto de estruturas inatas, que, em vez de terem sido desenvolvidas de modo genético através da interacção com o ambiente, foram escolhidas e especializadas por diferentes culturas e impuseram-se às representações da realidade e à forma das instituições sociais.
Ambos os modelos de mente que procuram clarificar a natureza do pensamento são estáticos, no sentido em que convergem no conceito de que a mente é a mesma em todos os ambientes e que carece de um verdadeiro potencial de desenvolvimento. Jean Piaget procurou superar estes dois modelos, elaborando uma teoria genética da mente, isto é, uma teoria do desenvolvimento cognitivo. Curiosamente, Wittgenstein escreveu: «A teoria do conhecimento é a filosofia da Psicologia».
Contudo, nestes posts que dedicaremos ao estudo preparatório deste problema filosófico, iremos restringirmo-nos ao estudo da célebre hipótese de Sapir-Whorf, vista no âmbito da antropologia cognitiva marcada pela tradição sociológica de Émile Durkheim. Isto significa que a nossa atenção vai concentrar-se fundamentalmente nos dados fornecidos pela etno-linguística que possibilitam clarificar e resolver estes problemas da filosofia da linguagem e da mente. É certo que esta opção pode parecer muito arbitrária, dado ficar prisioneira de um nível de análise muito pouco sofisticado para um filósofo profissional, mas ela ajuda a clarificar o legado da nossa tradição, ao mesmo tempo que pode abrir novas vias de pesquisa empírica, que podem ajudar a elaborar um novo modelo epigenético da mente, desta vez levando em conta os dados da epistemologia genética e da psicologia cognitiva.
A etno-linguística é a ciência que estuda a linguagem e o pensamento dos povos primitivos, cuja cultura preservou, em consequência de um atraso no seu desenvolvimento cognitivo (Habermas), traços mais ou menos pronunciados de arcaísmo e que, por razões históricas e outras, pertencem a círculos culturais afastados e relativamente isolados do nosso. Ao adoptarmos esta abordagem retemos o problema das relações entre o pensamento primitivo ou selvagem e o nosso próprio pensamento racional, o qual ocupou antropólogos da craveira de Tylor, Frazer, Lévy-Bruhl, Bronislaw Malinowski, Needham, Evans-Pritchard, Gluckman, Radcliffe-Brown, Mary Douglas, Marcel Mauss, Lévi-Strauss, Paul Radin e C. R. Hallpike. Todos estes antropólogos foram fortemente influenciados pela teoria das representações colectivas (sociologia) e do seu primado sobre as representações individuais (psicologia) proposta por Durkheim (1858-1917), a qual recusa a escola intelectualista (Tylor e Frazer) e assume mais ou menos claramente a teoria empirista da mente reformulada nestes termos, com a excepção de Lévi-Strauss e de Hallpike: «A psique de um homem é social, não orgânica» (Gluckman). Se o estruturalismo de Lévi-Strauss é um «kantismo sem sujeito transcendental», segundo a feliz expressão de Paul Ricoeur, a sociologia de Durkheim pode ser definida como um "kantismo cujo sujeito é a própria sociedade", como se verifica na sua teoria da razão e dos conceitos exposta na sua obra As Formas Elementares da Vida Religiosa.
A tradição durkheimiana acentua a existência da cultura anterior ao indivíduo e, desta posição, conclui que o indivíduo é passivo perante o processo de socialização. O próprio Durkheim resumiu esta posição fundamental quando escreveu: «(...) Toda a educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais não teria chegado espontaneamente. (...) (A educação tem) justamente por objectivo fazer o ser social. (...) (A) pressão permanente exercida sobre a criança é a própria pressão do meio social que tende a moldá-la à sua imagem, e do qual os pais e os professores são meros representantes e intermediários».
Marx, Nietzsche e Freud também reconheceram este papel da sociedade na moldagem dos seus indivíduos. A linguística trouxe apenas novos conceitos, em particular o conceito de que a linguagem é anterior à «constituição do indivíduo». A este propósito, F. Saussure é peremptório: A língua, por oposição à fala, «é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, e este, por si só, não pode criá-la nem modificá-la; ela só existe em virtude de um contrato firmado entre os membros da comunidade. Por outro lado, o indivíduo tem necessidade de uma aprendizagem para lhe conhecer as regras; a criança só pouco a pouco a assimila (…)». «(…) A língua (…) é social na sua essência e independente do indivíduo». Dado ser «uma herança duma geração precedente», a língua já está constituída quando o indivíduo acede à fase de adquirir a palavra. Detectam-se nestas palavras de Saussure a forte presença de Émile Durkheim, embora esta concepção social tenha sido sistematicamente elaborada por L.S. Vygotsky, Mikhail Bakhtin e George H. Mead.
Lévy-Bruhl e Bronislaw Malinowski analisaram alguns problemas da linguagem, no contexto da cultura dos povos primitivos. Lévy-Bruhl (1857-1939) formulou o problema da especificidade das línguas dos povos primitivos e realizou observações sobre o carácter concreto dessas línguas, fundadas principalmente na análise do sistema numérico particular a estas sociedades, com o objectivo de definir e caracterizar a «mentalidade primitiva», fazendo a distinção entre o pensamento cartesiano e o pensamento pré-lógico. Malinowski (1884-1942) verificou que era impossível transportar textualmente essas línguas primitivas para as línguas europeias e que era necessário interpretá-las no contexto da situação cultural dos homens que as falam. Confirmando a tese de Lévy-Bruhl sobre o carácter concreto das línguas primitivas, Malinowski destacou a linguagem enquanto instrumento de acção e considerou que era necessário levar em conta todo o contexto da situação cultural para compreender as línguas das sociedades arcaicas.

Todavia, na literatura antropológica, a hipótese de Sapir-Wholf é a única que pretende resolver os problemas da linguagem colocados no início deste post. As ideias contidas nesta hipótese concordam com o pensamento de W. von Humboldt e sua teoria do campo e foram formuladas nos anos 20 e 30 do século XX. Ligada directamente às pesquisas etno-linguísticas da antropologia cultural americana, esta hipótese inspira-se nos estudos linguísticos realizados por F. Boas.

Franz Boas (1859-1942) rejeitou as teorias que atribuíam à linguagem um papel criador em relação à cultura, pronunciando-se a favor das teorias que sublinhavam a função activa da cultura em relação à linguagem. Boas sublinhou sempre a importância dos estudos linguísticos para a etnologia e etnólogos, tais como R. Benedict, A.A. Goldenweiser, M. Y. Herskovits, A. L. Kroeber, R. H. Lowie, R. Radin ou E. Sapir, foram seus alunos. (Continua)

J Francisco Saraiva de Sousa

25 comentários:

Manuel Rocha disse...

As noções de “primitivo”, “atraso”, “arcaísmo” associadas á definição de etnolinguística arrepiam-me até á medula …:) e recordam-me que o etnocentrismo é algo dificilmente contornável.

De resto boa parte da obra de Levi- Staruss é feita sobre a premissa da inadequação do nosso conceito de racionalidade para avaliar formas de estar alheias ao nosso percurso - tal como a língua também a razão é uma construção cultural, ou não ?
Que factos estudados nos permitem asseverar que determinados estados culturais não resultam de elaboradas opções racionais, mas de outro tipo de racionalidade ?
Ainda ontem falávamos da ecologia profunda e da ausência de sentido da nossa deriva civilizacional. Face à deriva da nossa teoria e prática económica e aos pressupostos de ética ambiental que ontem se enunciavam, não será legitimo questionar se não haverá algo de muito errado com a nossa asserção da razão e se nesse capitulo, surprise, surprise, não existirão por aí culturas muito mais desenvolvidas que a nossa ?

Quanto ao mais, excelente recensão, mas isso já é hábito!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, ainda só estou nos preliminares do estudo. De resto, este constrangimento linguístico suavisa a nossa racionalidade. Mas até Habermas considera que devemos elaborar uma teoria do desenvolvimento cognitivo e, nesse caso, como mostrou Gellner e antes Weber, a racionalidade ocidental é dominante. Em termos gramaticais e léxicais, as nossas línguas são superiores: gramática, lógica e matemática. Imagine estes "cálculos" escritos em ideogramas chineses! É por isso que se apropriam da nossa ciência e técnica.
O etnocentrismo não é um papão e, na esquerda, é necessário ultrapassar certos traumas. Ainda confio na racionalidade ocidental, a única capaz de resolver os problemas que criou. Temo mais o relativismo e a deriva... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, a racionalidade ocidental está ligada à dominação e isto cria dificuldades, mas devemos pensar que afinal somos meros animais mortais e, por isso, devemos ser mais prudentes quando fazemos exigências a estes seres mortais.
Sim, quando falo de racionalidade ocidental, já levo em conta a cultura, a nossa, que tem sido muito funcional (meios/fins, custos/benefícios). Mas não vejo outra saída, a não ser não desistir e continuar a pensar para a frente.
As etnociências procuram restituir a palavra aos povos selvagens: apreender a sua perspectiva emic, as razões que alegam para justificar as suas acções, etc. Contudo, não podemos abdicar da ciência e da filosofia: encaro isso como o nosso destino. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Amigos

Estava a ler uns blogues e detectei que há muita censura: já não podemos chamar as coisas pelos seus nome e pensar o que elas ocultam. A geopolítica dos chineses que invadem África e não só é equivalente a outras geopolíticas (americana, russa ou europeia), porque não há uma "substância chinesa". A equivalência é uma ideia capitalista, antimarxista! Não existe uma substância: existe uma raça, uma etnia, uma cultura, que não nos interessa.
Devemos estar vigilantes! :)))

Manuel Rocha disse...

Trata-se de um mundo confuso...Os que acreditam "nos planos conspirativos" diriam que tudo é propositado para nos manter anestesiados a discutir o acessório enquanto ao lado a "caravana" passa triunfal . Não sei... Mas tenho poucas dúvidas de que os mass-média têm tido neste processo de fragmentação do nosso entendimento do mundo um papel determinante. O que "está escrito" continua a ter muita força...e a marcar a agenda !

Quanto ao resto..."abdicar da ciência e da filosofia" ...Não, por Belenos !!! Mas, por Toutatis, não vamos fazer delas novos sistemas de crenças para lá das quais nada de explica ! No caso da ciência e do seu braço armado - a técnica - não se pode dizer que estejam a sair-se muito bem. E a filosofia também ainda não foi capaz de nos dar um sentido de devir...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A agenda dos mass media é terrível e age contra a capacidade de compreensão, não dando tempo para pensar e assimilar. Muda sempre de assunto, cria falsas notícias e não informa; pelo contrário.
Uma das consequências é a tirania da opinião. Agravada pelo facto das pessoas tenderem a pensar que as ideias e elas próprias são a mesma coisa. Resultado: não podemos criticar ideias-pessoas, porque as pessoas-ideias ficam magoadas. :)))

Manuel Rocha disse...

Bem visto !
Sinal dos tempos...

Há pouco falava em pensar para a frente, sim, claro, mas com MEMÒRIA que seja sabedoria sedimentada e não apenas lembranças em arquivo morto !

:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É isso mas a TV milita contra a memória e rouba o tempo. :)

E. A. disse...

A hipótese de Sapir-Whorf remete-me imediatamente para o grego e a filosofia. Realmente o grego é a língua mais filosófica de todas (e outras se lhe assemelham, como o alemão) pela sua capacidade de composição, dadas as suas categorias gramaticais e lexicais. Lembro-me do "Crátilo" de Platão e a sua exploração etimológica para perceber, entre outros problemas, se a linguagem facultaria, realmente, acesso ao ser.

Contudo se a linguagem molda a racionalidade, ou pelo menos, a perspectiva sobre o mundo, não posso admitir a hipótese de Durkheim: o indivíduo não é passivo durante o processo de socialização. O crescimento e a aprendizagem advêm precisamente pelo conflito entre acções individuais e factos sociais. Se a educação tem por objectivo fazer o ser social, também tem, por outro lado, garantir o florescimento idiossincrático do indivíduo. É errado qd Saussure diz que o indivíduo n pode modificar a linguagem e recriá-la: porque é precisamente esta a tarefa dos filósofos e artistas quando compõem palavras novas, para significados por eles apreendidos, para lá dos ditames contratuais da sociedade.

E. A. disse...

Manuel,

por que é q n gosta do título do meu blog? É o primeiro (conhecido)tratado de estética da humanidade, de um poeta-filósofo que admiro muito: Platão.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Papillon
Estou confuso com um americano. Está tudo tolinho!
Mudou imagem novamente. :)

E. A. disse...

É Mark Ryden! Um americano, nada tolinho! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vou começar novo estilo de blogar: Decadência do Ocidente... Gira imagem! Somos só três a dialogar..., com pertinência! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O que me preocupa nesta hipótese da qual só apresentei os pressupostos anteriores é a sua ligação ao relativismo, embora pense ter descoberto maneira de o exorcizar. Fez um bom comentário. :)

E. A. disse...

Ora, ora, n fique triste: três é um belo número. Sendo que dois basta para um diálogo, tem um substituto/a. Que posso ser eu, visto que este é um blog sexista. :))) ahahah

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Procuro continuar a ser um clássico no meio de um mundo inestético e decadente. Não suporto os ditos intelectuais pós-modernos: cabecinhas vazias, crítica de tolinhos, traumas, etc. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummmm sex... Volto em breve ao sex, sem sexismo. :)

E. A. disse...

É isso mesmo Francisco: acalme-se e volte ao "sex" (para acalmar ansiedades crónicas é melhor o não-virtual). Já estou como o Manuel, tem de por de parte as crenças em "planos conspirativos". :)))

Manuel Rocha disse...

Papillon:

Quem disse que não gostava donome do seu blog ?? Acrescento-lhe a "Mulher" para dar ênfase ao ambiente feminino que nele se respira ( e Hipias era homem, certo ??...)

Do que não gosto nada é do seu novo visual...brrrr...

Francisco:

Esta estética decapitada merecia censura prévia !!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Peço desculpa pela ausência: sai novamente para relaxar, porque hoje estive e talvez ainda esteja hiperactivo! :(
A Papillon muda de visual com frequência. Não a censuro, porque hoje apetece-me decapitar o Braudillard e seu modo de significação, Derrida e a sua crítica do logocentrismo, Foucault e as suas tecnologias do poder e discurso, Habermas e sua situação de fala ideal, Lyotard e sua proposta de disponibilizar online tudo o que é informação, e Poster e seu modo de informação. :)))

E. A. disse...

Ah n gosta daquele Munch? Se leu o poema percebe pq está lá. :)

Esta minha nova imagem chama-se "Fonte"! :))) http://www.markryden.com/paintings/index.html

E. A. disse...

Ai desculpe. Li outra vez e finalmente percebi: n gosta do que em linguagem virtual se chama "avatar"! É infantil e perverso, adoro!

Francisco, espero que depois do "sex" esteja mais calmo. :)) Os dados acima são interessantes, mas n surpreendentes. Holanda e Espanha estão, de facto, muito à frente nestas matérias.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não cheguei a rever o post, porque estava com sono. Estou a trabalhar na sequência deste post. Gosto de Herder e Humboldt e o papel organizador da língua na experiência parece-me evidente. A minha luta é com o pós-modernismo, porque penso que a escrita é a maior revolução tecnológica de todos os tempos e não vejo como podemos caminhar em frente sem ela. A imagem não me seduz e o cidadão informado pós-moderno é, para mim, um ignorante. :))

E. A. disse...

A imagem n o seduz? Mas seduz às crianças e jovens... Os livros competirem com a internet, a tv, a playsation é muito complicado. Eu adoro imagens, sou um ser post-moderno, muito visual. Mas, percebo o perigo que aponta...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Também gosto da imagem. Referia-me ao espectáculo e à sociedade do show. Penso que a Internet, ao contrário da TV, alia imagem, som e escrita (texto). Daí que fale do seu potencial democrático... :)