quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Amputação e Transexualismo (I)

Money et al. (1977) elaboraram o conceito de apotemnofilia para descrever uma parafilia relatada, pela primeira vez, em 1785, por Sue: o desejo pela amputação de um membro saudável. Esta condição está associada a sérias consequências negativas: tentativas de amputação, incapacidade e elevada ansiedade. Contudo, mais recentemente, foram propostas outras designações que reflectem uma mudança de perspectiva teórica: Amputer Identity Disorder (Furth & Smith, 2000) e Body Integrity Identity Disorder (First, 2005). Estas últimas designações procuram, com base nas similaridades existentes entre a perturbação da identidade de género (GID) e o desejo pela amputação, conceptualizar a última condição como uma disfunção extrema no desenvolvimento da própria identidade corporal. Isto significa que, tal como a perturbação da identidade de género representa uma disfunção no desenvolvimento da identidade de género, o desejo pela amputação pode ser pensado como representando uma disfunção particular do desenvolvimento da própria identidade corporal. As fenomenologias destas duas perturbações apresentam muitas características comuns ou similares. Em ambas as perturbações, as pessoas, mais os homens do que as mulheres, relatam sentimentos de desconforto com um aspecto da sua identidade anatómica (Género no GID, presença de Todos os membros no desejo de amputação), com um sentido interno da identidade desejada (ser do outro sexo na GID, ser um amputado no desejo de amputação). Além disso, estas duas condições iniciam-se na infância ou na adolescência precoce, os tratamentos por cirurgia são bem-sucedidos, a imitação ou simulação da identidade desejada é frequente (travestismo na GID, pretending a ser um amputado no desejo de amputação) e a excitação sexual parafílica de ser a identidade desejada (autoginefilia na GID, apotemnofilia no desejo de amputação).
Freund & Blanchard (1993) propuseram que o transexualismo macho-para-fêmea constitui um erro de localização do alvo erótico: os homens transexuais não-homossexuais que preferem mulheres como alvos eróticos erotizam os seus próprios corpos feminilizados. Ora, de acordo com esta perspectiva, o desejo de amputação de um membro saudável, incluindo o próprio pénis, também pode reflectir um erro de localização do alvo erótico, o qual ocorre em conjugação com uma preferência invulgar por amputados como alvos eróticos. Este modelo prediz que as pessoas que desejam a amputação do membro saudável são quase sempre atraídas por amputados e exibem uma prevalência elevada de problemas de identidade de género. As pessoas que desejam a amputação do membro saudável e os transexuais macho-para-fêmea não-homossexuais asseveram frequentemente que os motivos que as levam a querer mudar os seus corpos reflectem mais problemas de identidade do que problemas de sexualidade. Porém, dado as orientações erótico-românticas contribuírem significativamente para a construção da identidade, estas distinções podem não ser muito importantes. As similaridades entre as duas condições incluem profunda insatisfação com o próprio corpo, parafilias relativas às condições das quais derivam (apotemnofilia e autoginefilia), excitação sexual produzida pela simulação do status corporal desejado (pretender ou simular ser um amputado e travestismo), atracção erótica por pessoas que tenham o mesmo tipo de corpo que querem adquirir e uma prevalência elevada de outros interesses parafílicos.
Apotemnofilia. Os indivíduos que desejam sofrer e sujeitar-se à amputação de um membro saudável experienciam um desejo intenso ou uma compulsão irresistível para transformar os seus corpos de modo a realizar as imagens idealizadas de si mesmos como seres amputados. Descrevem os seus sentimentos como tendo sido vividos precocemente na vida, geralmente antes da puberdade, e alguns auto-amputaram-se. Referem-se a si mesmos como "wannabes" (Bruno, 1997; Duncan, 2002) e a sua condição é, algumas vezes, chamada "wannabeism". A maior parte destes indivíduos diz ficar sexualmente excitada com a ideia de ser amputado (Elliott, 2003), e muitos são tentados a corrigir a discrepância entre os seus actuais corpos e as suas "verdadeiras identidades". Diversas motivações para desejar uma amputação foram descritas. As tentativas de amputação podem ser compreendidas como manifestações de outras perturbações mentais, tais como as perturbações de humor ou perturbações psicóticas. Stewart & Lowrey (1980) descobriram que a amputação estava associada a depressão grave: as mulheres com depressão amputaram ambas as mãos. Neste caso, a amputação foi usada como um método de suicídio. Hall et al. (1981) descreveram homens que tinham amputado uma mão e o pénis devido a alucinações auditivas e a ilusões de culpa percebidas como transgressões sexuais. Money et al. (1977) descreveram dois casos de indivíduos que desejavam ser amputados por causa da ideia de ser um amputado despertar neles excitação sexual. Furth & Smith (2000) verificaram que muitas pessoas encaram a amputação como um modo de alcançar um "sentimento completo" de si mesmos.
Este desejo pela amputação é geralmente acompanhado por outros interesses e comportamentos invulgares: atracção sexual por amputados como parceiros sexuais e românticos (1) e excitação sexual obtida através da simulação de ser amputado (2). A atracção por amputados foi chamada amelotatismo (Dixon, 1983) ou acrotomofilia (Money, 1986) e os indivíduos que sentem esta atracção foram denominados "devotees" (Bruno, 1997; Riddle, 1989) ou "amelotatists" (Nattress, 1996). Além disso, existem muitos indivíduos cuja excitação sexual explícita deriva da experiência de simular ou pretender ser amputados: a sua condição é chamada "pretending" e os seus praticantes são os "pretenders" (Bruno, 1997). Esta condição está geralmente associada a acrotomofilia e, por vezes, a apotemnofilia. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

21 comentários:

Fräulein Else disse...

- A apotemnofilia tb pode ser desejo de cicatrizes?

Penso que conheça o filme "Crash" do romance homónimo de J. G. Ballard..., ou a sexualidade do futuro, como diria Baudrillard. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Penso que o desejo de cicatrizes está relacionado com outro conjunto de fenómenos.

Ya, a sexualidade do futuro vai ser complexa. Estava a ler alguns artigos e estou confuso: as excitações são muito anómalas. O transexualismo em causa não é o homossexual (tipo um, aquele que conhecemos) mas o não-homossexual. Por vezes, pensamos que estes "erros na localização do alvo erótico" são muito invulgares, mas talvez sejam frequentes, embora escondidos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Penso que estes "erros" são promovidos pela sociedade do lazer: desocupação leva a pensamentos bizarros. :)

Fräulein Else disse...

Ahah! Isso é o que a minha mãe diz, que quem trabalha não tem tempo para depressões. :)

Não percebi o seu primeiro comentário sobre o erro na localização do alvo erótico. A apotemnofilia é considerada como tal?

Fräulein Else disse...

A apotemnofilia, o transexualismo e até a anorexia não podem ser subsumidos a um conjunto maior da perturbação da consciência da imagem corporal?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim. Vou retomar o modelo clássico dos "desvios" de Freund & Blanchard: é um modelo conservador mas dotado de muita erudição e genialidade. Há uma cientista, também ela amputada, um transexual macho-para-fêmea não-homossexual, porque gosta de mulheres, que o retomou, aplicando-o à perturbação da identidade de género que o, agora A, levou à cirurgia de mudança de sexo. As similaridades entre as duas condições permitem associar a amputação e o transexualismo não-homossexual. Perturbações de desenvolvimento! Os transexuais homossexuais não são abrangidos por este Error.

Sim, as cicatrizes funcionam como marcas de status em certas culturas arcaicas e podem ser eróticas: parceiro(a) com bom status! :)

Fräulein Else disse...

Sim podem, já li no post.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, esse agrupamento está ligado. É preciso fazer a teoria unificada.

Fräulein Else disse...

Sim, isso seria muito interessante! Para compreender por que é que se dão as falhas. Talvez um excesso de poder (político) actual sobre o corpo.

As cicatrizes no filme não são de status, são provocadas propositadamente em acidentes de viação - "invaginação artificial" como lhe chama Baudrillard.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Uma ideia que tenho é um padrão neuroquímico comum ou partilhado por muitas destas "parafilias", envolvendo o sistema cerebral da recompensa: dopamina elevada, serotonina baixa. Isto acontece com os stalkers e violadores sexuais.

Fräulein Else disse...

De sublinhar que a anorexia também é uma falha da sexualidade, porque há uma regressão: ambição de um corpo infantilizado, sem vestígios púberes.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Muitas vezes a nossa incapacidade para conceptualizar deve-se à dificuldade em identificar correctamente os comportamentos envolvidos. Se esse trabalho for bem feito, torna-se mais fácil identificar as variáveis ocultas ou a terceira variável que explica a associação que estabelecemos. É este o caso: GID e amputação pode conduzir a uma terceira variável (de ligação).

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ya, também existem masoquistas infantis: vestem roupas de criança. Um variação pouco estudada. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Também é uma ideia: a dessexualização e foi defendida por um etólogo. Sim, a regressão continua a ser um modelo interessante, embora tenha sido condenado como uma estratégia conservadora para legitimar alguns privilégios raciais ou sociais.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Nos USA, alguns cientistas começam a denunciar a falta de erudição da maioria dos seus colegas e um deles foi penalizado. Mas as pessoas tiram diplomas sem estudar e isso detecta-se na falta de qualidade do ensino e da pesquisa.

Fräulein Else disse...

Boa, boa! É isso mesmo! Focar escrupulosamente e depois afastarmo-nos e observarmos o panorama. Eu nunca estudei ciência, nunca usei o método empírico. Mas o Francisco e os seus colegas que são cientistas e com formação filosófica, antropológica, económica, etc, etc, podem fazer a diferença. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Agora deixou de chover mas arrefeceu muito!

A ciência é simples e a Else também pode fazer ciência: nunca devemos perder de vista a empiria, mesmo quando especulamos.

Ya, a terceira variável está bem escondida neste caso, mas aguardemos; podem surgir ideias.

Amanhã vou criticar os professores que hoje vão dar "show" no P & C...

Fräulein Else disse...

Ui! Já n posso com esse assunto. Vai ser um programa medíocre...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, este primeiro post está concluído: os outros irão esclarece melhor o tema, a partir de amostras de indivíduos sem perturbações mentais.

Fräulein Else disse...

http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1351436&idCanal=62

Brevemente assinalar-se-á o Dia Mundial da Luta Contra a Sida e é editado este estudo.
Não sou a favor de uma obrigação de rastreio, mas aqui aplica-se a teoria socrático-platónica do bem: o mal advém da ignorância. O mal da infecção e o mal da discriminação.

Por isso, como é o único dia "mundial" que gosto de celebrar solenemente, aqui fica o meu apelo neste cívico blog:

Previnam-se e façam testes anuais, sendo considerados nos grupos de risco ou não. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sou cheguei agora! Tive a dar troco ao zé pé-de-cabra! Um indivíduo malcriado! Enfim, já sabia... :)