quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O Café Marx (3)

... e a Doença de Alzheimer.

«Envelhecer significa a transformação gradual (ou antes, súbita) de um mundo de rostos familiares (quer seja de amigos ou de inimigos) numa espécie de deserto habitado por rostos estranhos. Por outras palavras, não sou eu que me retiro do mundo, é o mundo que se desfaz». (Hannah Arendt)

Goethe definiu o envelhecer como o retirar-se gradualmente da aparência. Porém, quando começou a envelhecer, Hannah Arendt viveu essa separação do mundo, não como retirada do mundo, mas como o próprio mundo a retirar-se à sua volta, ou melhor, como a progressiva dissolução de um mundo de seres prontos a acolher o seu aparecer, através do desaparecimento desses seres. Arendt capta e tematiza uma experiência universal: a morte dos outros próximos, amigos ou inimigos, faz de nós órfãos de mundo: o nosso mundo começa a estreitar-se e a retirar-se gradual ou subitamente até ao seu desaparecimento final. De certo modo, o crescimento e o envelhecimento são etapas opostas do ciclo vital: o envelhecimento estreita os horizontes do nosso mundo, definidos e traçados pelos adultos - esses estranhos cartógrafos remotos que traçam o mapa do nosso sistema localizado de relações de conflito ou de cooperação no mundo - durante o nosso período de crescimento. Os endereços que coleccionámos durante este período de expansão vital - com o objectivo de ingressarmos na cosmovisão dos adultos - começam a desaparecer à medida que envelhecemos: cada endereço conquistado por cada um de nós é mais uma localização do nosso eu na rede de relações de um mapa social em expansão, e a perda de um endereço - a morte de um outro, querido ou detestado - implica o retraimento, ou melhor, a contracção desse nosso mundo de outros prontos a acolher o nosso aparecer. A troca de e-mails pode ajudar a compreender a ideia nuclear subjacente à concepção arendtiana do envelhecimento. Quando envio o meu endereço exacto a um «estranho» com quem teclei algures num chat e recebo a sua resposta, a minha rede de relações alarga-se, na medida em que me tornei visível para mais um outro ser. Mas, se esse outro morrer mais tarde e deixar por isso de me responder, o meu mundo de relações começa a contrair-se. Ora, envelhecer é precisamente tornarmo-nos invisíveis para o mundo, através da morte dos outros que acolhiam o nosso aparecer. Envelhecer é viver essa dolorosa experiência do nosso próprio apagamento: a "morte" rouba-nos os outros prontos a receber a revelação - a manifestação - do nosso ser singular e a ser testemunhas dela. O facto de não podermos manifestar a mais ninguém a nossa auto-revelação amputa-nos da nossa abertura ao mundo. O conceito de abertura ao mundo foi forjado por Max Scheler e retomado mais tarde por Arnold Gehlen para determinar o lugar especial ocupado pelo homem no reino animal, mas H. Arendt tomou-o de Adolf Portmann, cuja obra Zoologie und das neue Bild vom Menschen (1951, 1956) opera a inversão das prioridades: «Não o que algo é, mas a maneira como "aparece", é o problema a investigar» (Portmann).

A doença de Alzheimer coloca um grande desafio à ontologia fenomenológica que suporta o pensamento político de Hannah Arendt: «O mundo em que os homens nascem contém muitas coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas, que têm todas em comum o facto de aparecerem e, por essa razão, são feitas para serem vistas, ouvidas, tocadas, saboreadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sencientes dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Neste mundo em que entramos, aparecendo vindos de parte nenhuma, e do qual desaparecemos para parte nenhuma, Ser e Aparência coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende para o seu ser, isto é, para a sua dimensão de aparência, da presença de criaturas vivas. Nada nem ninguém existe neste mundo cujo verdadeiro ser não pressuponha um espectador. Por outras palavras, nada do que é, na medida em que aparece, existe no singular; tudo o que é está destinado a ser percebido por alguém. Não é o Homem mas sim os homens quem habita o planeta. A pluralidade é a lei da terra» (Arendt). Não pretendo impugnar esta coincidência entre o ser e a aparência, até porque ela não é estranha à dialéctica: o que pretendo fazer é pensar a condição terrível - anti-humana e anti-política - do doente de Alzheimer à luz do princípio de que o aparecer é um co-aparecer, na medida em que os outros seres aos quais apareço, aparecem-me, por sua vez. Para Arendt, o sujeito puro espectador não existe: cada um de nós é, ao mesmo tempo, espectador e actor nesse palco que é o mundo comum: «Tudo o que pode ver deseja ser visto, tudo o que pode ouvir pede para ser ouvido, tudo o que pode tocar apresenta-se para ser tocado» (Arendt). A nossa vida decorre entre o nascimento e a morte: ao nascer fazemos a nossa primeira aparição no mundo e, ao morrer, desaparecemos definitivamente deste mundo. Arendt recorda que, para os romanos, morrer é o mesmo que deixar de estar ou ser entre os homens, inter homines esse, donde resulta que viver é estar entre os homens: cada um de nós só acede à existência efectiva quando aparece a outros homens e, ao mesmo tempo, acolhe o aparecimento desses mesmos homens. O mundo comum é precisamente o espaço que permite a cada um de nós aceder à sua realidade, fornecendo-nos o palco onde fazemos aparecer essa realidade singular que cada um de nós é. A dimensão do aparecer unifica todos os aspectos da condição humana: nascimento e morte, pluralidade e mundaneidade.

A demência associada à doença de Alzheimer resulta de influências hereditárias, que afectam predominantemente pessoas nas 4ª e 5ª décadas da vida, ou de fontes não-genéticas, em especial no caso dos indivíduos idosos, que incluem acúmulo de proteína, infecção, toxinas, distúrbio neuroquímico ou insuficiência vascular. Em ambas as circunstâncias, depósitos abundantes de amilóide são encontrados no sistema nervoso central. Os sinais mais evidentes da doença de Alzheimer são a deterioração progressiva da função da memória - sobretudo da memória a longo prazo, e a falha das tarefas da linguagem, da orientação visual-espacial, do pensamento abstracto e do julgamento, efeitos estes acompanhados por alterações da personalidade, com distúrbios de humor e de comportamento: os pacientes acabam por não reconhecer os próprios familiares e a si mesmos quando colocados frente a um espelho. Usando a linguagem de Daniel Dennett e de David J. Chalmers, podemos definir - literalmente - o doente de Alzheimer como um zombie. Completamente dependente dos outros, ele habita um deserto povoado por rostos estranhos, sendo ele próprio estranho a si mesmo: o mundo do doente de Alzheimer desfaz-se rápida e completamente. Embora o seu corpo continue a ter visibilidade para os outros, ele próprio - tomado na sua singularidade e na sua dignidade ontológica - já desapareceu em vida, não só para os outros, mas também para si mesmo: é um morto em vida - um cadáver adiado e inútil - que permanece entre os homens. Sem pretender explicitar todos os aspectos desta condição à luz da fenomenologia geral, destaco apenas a perda da humanidade: «uma criatura sem espírito não pode possuir algo como uma experiência de identidade pessoal» (H. Arendt). O impulso para aparecer e para se ajustar ao mundo das aparências, exibindo e mostrando, não o seu eu interior mas a si próprio como um indivíduo, abandona completamente o doente de Alzheimer, deixando-o inteiramente entregue ao seu processo vital interno. Destituído desse impulso de aparecer, o doente de Alzheimer perde a sua humanidade, a sua humanitas: ele está ali diante de nós sem poder escolher deliberadamente o que mostrar e o que esconder.

Anexo. Uma conjectura provocante: a inércia mental dos portugueses, isto é, a sua indigência mental e cognitiva "natural" condena-os mais tarde ou mais cedo a manifestar a doença de Alzheimer. O estudo de David Snowdon suporta esta hipótese: pessoas que apresentaram baixa densidade de ideias durante a sua vida adulta juvenil revelam um risco particular para este tipo de demência. Os escritos de baixíssima densidade de ideias dos jovens portugueses apontam nesse sentido: o destino de Portugal como deserto-cemitério de zombies-Alzheimer.

J Francisco Saraiva de Sousa

3 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É muito difícil fazer filosofia em directo, porque detecto as dificuldades mas sou obrigado a avançar sem me deter nelas! E as implicações? :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu sou um marxista "estranho": procuro introduzir a morte no seio da filosofia de Marx sem escutar seriamente o que ele disse sobre a morte (não me interessa!). Mas vacilo quando sou confrontado com a claustrofobia sociológica, precisamente quando me volto para Rousseau. Mas não partilho esse pensamento profundo com portugueses que desprezo! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bah, o tema era complexo para um post, fica a ideia que não posso explicitar em todos os seus aspectos.