sábado, 26 de março de 2011

Pietro Pomponazzi e a Filosofia do Renascimento

«Na Idade Média, as duas faces da consciência, a face objectiva e a face subjectiva, estavam de alguma maneira veladas; a vida intelectual assemelhava-se a um meio sonho. O véu que envolvia os espíritos era tecido de fé e de preconceitos, de ignorância e de ilusões; o mundo e a história apareciam com cores bizarras; quanto ao homem, apenas se conhecia como raça, povo, partido, corporação, família ou sob uma outra forma geral e colectiva. Foi a Itália a primeira a rasgar o véu e a dar o sinal para o estudo objectivo do Estado e de todas as coisas do mundo; mas, ao lado desta maneira de considerar os objectos, desenvolve-se o aspecto subjectivo; o homem torna-se indivíduo espiritual e tem consciência deste novo estado. Deste modo, se elevava outrora o Grego em face do mundo bárbaro, o Árabe em face de todas as outras raças asiáticas. Não será difícil provar que foi a situação política que teve o maior papel nesta transformação». (Jacob Burckhardt)

A historiografia burguesa da Filosofia tem desprezado a Filosofia do Renascimento, abordando-a como uma mera introdução ao assunto principal, Descartes, cuja expressão Cogito, ergo sum deu início à Filosofia Moderna. Porém, como demonstrou Engels, há uma longa pré-história antes de Descartes: «Quando a Europa saiu da Idade Média, a classe média urbana em ascensão era o seu elemento revolucionário. A reconhecida posição que conquistara dentro do regime feudal da Idade Média era já demasiado limitada para a sua força em expansão. O livre desenvolvimento desta classe média, a burguesia, já não era compatível com o regime feudal: este tinha de se desmoronar inevitavelmente. Mas o grande centro internacional do feudalismo era a Igreja Católica Romana. Ela unia toda a Europa ocidental feudalizada, apesar de todas as suas guerras intestinas, numa grande unidade política, antagónica tanto ao mundo cismático grego como ao mundo maometano. Rodeou as instituições feudais do halo da graça divina. Também ela havia erguido a sua hierarquia segundo o modelo feudal e era, no fim de contas, o maior de todos os senhores feudais, pois possuía, pelo menos, a terça parte de toda a propriedade territorial do mundo católico. Antes de poder dar combate, em cada país e nos diversos terrenos, ao feudalismo secular, seria necessário destruir a organização central santificada. A pouco e pouco, com a ascensão da burguesia, produzia-se o ressurgimento da ciência. Voltava-se a cultivar a astronomia, a mecânica, a física, a anatomia, a fisiologia. A burguesia necessitava, para o desenvolvimento da sua produção industrial, de uma ciência que investigasse as propriedades dos corpos físicos e o funcionamento das forças naturais. Mas até então a ciência não havia sido mais do que a humilde servidora da Igreja, não lhe sendo permitido transpor as fronteiras estabelecidas pela fé: numa palavra, havia sido tudo menos uma ciência. Agora, a ciência revoltava-se contra a Igreja: a burguesia precisava da ciência e lançou-se com ela na revolta» (Engels). Sem entrar na análise engelsiana das três grandes insurreições da burguesia contra o poder feudal santificado pela Igreja - a Reforma de Lutero, o Calvinismo e a Revolução Gloriosa, podemos definir a filosofia do renascimento como a transposição revolucionária das fronteiras estabelecidas pela fé, isto é, como a revolta contra o poder exercido pela Igreja sobre todos os aparelhos repressivos e ideológicos de Estado da sociedade feudal. O seu motivo ideológico - o seu elemento revolucionário - reside no facto de servir os interesses da burguesia urbana em ascensão: a filosofia do renascimento destrói pouco a pouco a organização central santificada e, deste modo, prepara no terreno da luta ideológica a ascensão da burguesia ao poder. Assim, nesta perspectiva engelsiana, a pré-história da Filosofia Moderna - anterior a Descartes - é a época de Telésio, Patrizzi, Pomponazzi, Giordano Bruno e Campanella (Itália), de Paracelso e Jacob Böhme (Alemanha), e de Francis Bacon (Inglaterra), mas também é a época de Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, do direito natural burguês e das suas grandes teorias políticas: Althusius, Grócio, Maquiavel, Bodin e Hobbes. Jacques Le Goff esboçou a história do renascimento do século XII - o primeiro renascimento (Jean Gimpel) até ao outono da Idade Média (século XIV), destacando o papel de Chartres como centro científico do século, mas o seu esboço histórico já tinha sido antecipado por Karl Marx quando situou o berço do materialismo na Grã-Bretanha, em torno das figuras nominalistas de Duns Escoto (falecido em 1308) e de Guilherme de Occam (falecido em 1349): «Já o seu escolástico Duns Escoto se interrogara, "se a matéria não poderia pensar". Para fazer esse milagre, recorreu à omnipotência de Deus, isto é, forçou a própria teologia a pregar o materialismo» (Marx).

Aristóteles foi - durante a Idade Média - o filósofo medieval da Igreja e, com o objectivo de lutar contra o escolasticismo aristotélico, o Renascimento procurou descobrir o verdadeiro Aristóteles, libertando-o dos seus disfarces medievais (Windelband) e devolvendo-o à sua matriz pagã: Pietro Pomponazzi (1462-1525) renovou Aristóteles a partir da interpretação e dos comentários de um dos últimos representantes da escola peripatética, Alexandre de Afrodísia, que ensinou em Atenas entre 198 e 211. Dos seus comentários aquele que teve maior impacto sobre o pensamento da Idade Média - escolástica árabe e latina - e do Renascimento refere-se à teoria do intelecto activo. Alexandre de Afrodísia distingue três intelectos: o intelecto físico ou material que é o intelecto potencial (1), o intelecto adquirido que é a capacidade de pensar (2), e o intelecto activo que opera a passagem do intelecto potencial para o intelecto adquirido (3). O intelecto activo não pertence à alma humana: ele age sobre ela de fora, sendo a própria causa primeira, isto é, Deus. O abismo cavado por Aristóteles entre a sensibilidade e o espírito obrigou-o a supor um duplo entendimento ou intelecto: o intelecto passivo que é a alma sensitiva enquanto recipiente das representações que recolhemos através das nossas experiências, e o intelecto agente que é a faculdade activa e criadora do nosso espírito que abstrai das imagens a essência ideal ou conceito. Para Aristóteles, o intelecto agente é imortal, ao passo que o intelecto passivo perece com a morte do corpo. Alexandre de Afrodísia e Averróis compreenderam Aristóteles no sentido de que só há um intelecto agente, que realiza esta abstracção em todos os homens, e, por isso, negaram a imortalidade individual: a morte significa a aniquilação do indivíduo; o que sobrevive é a inteligência universal, em virtude da qual se exerce a actividade pensante em todos os homens. Para garantir a imortalidade individual, Tomás de Aquino (falecido em 1274), o Doctor communis, seguindo de perto Aristóteles, atribuiu a cada homem um intelecto agente próprio, porque cada homem pensa algo distinto. Giovanni Pico Della Mirandola (1463-1494) e Pomponazzi lutaram contra a imortalidade da alma, tendo sido acompanhados nesta luta pelo filósofo judeu português, Uriel da Costa (falecido em 1640), que, dentro do espírito do averroísmo latino, negou a imortalidade da alma defendida por outro judeu português, Samuel da Silva. No seu célebre escrito De immortalitate animae (1516), Pomponazzi nega não só a sobrevivência da alma, mas também o destino das almas no inferno, no purgatório ou no céu. Esta luta contra a imortalidade individual supõe um impulso anti-ideológico dirigido contra o poder penitencial da Igreja que dominou e torturou os homens até ao século XVIII. Confrontado com este poder terrível das chaves - as do escudo do vigário de Cristo - sobre a céu e o inferno que a Igreja arrogava deter, o homem temia mais a segunda morte - o inferno - do que a primeira morte. Segundo a velha religião dos judeus, não havia vida depois da morte: os mortos iam para o scheol, que era uma espécie de inconsciência. A crença na imortalidade individual só apareceu no mundo bíblico muito mais tarde, com o profeta Daniel, que a articulou com o sentido da justiça: os homens malvados devem perdurar para que possam receber o seu castigo, e os homens eleitos devem perdurar para presenciar a sua vitória. Porém, no decorrer da Idade Média, a noção de sobrevivência da alma para fins de justiça foi convertida em instrumento ideológico para garantir e perpetuar o poder da Igreja dos Papas e do Clero. Ao ler Aristóteles no original, Pomponazzi interpreta-o neste sentido: a alma é a enteléquia do corpo que desaparece com a morte do corpo. É certo que o espírito humano universal sobrevive - em Aristóteles, mas não de um modo pessoal: as nossas recordações e o nosso destino pessoais cessam completamente com a morte. Assim, nós não pagamos pelas nossas faltas pessoais e não somos premiados pelos nossos méritos pessoais. Os homens fenecem e findam como os animais, mas o entusiasmo desencadeado pela teoria de Pomponazzi não se deve tanto a esta afirmação da cessação total da vida, mas sobretudo ao facto da não-sobrevivência depois da morte ficar liberta do medo do inferno fomentado pelos membros do clero. A Igreja foi obrigada a opor-se a este entusiasmo geral provocado pela obra de Pomponazzi, que negava tanto a imortalidade pessoal como também a reduzida imortalidade da parte mais universal da alma, preconizada por Avicena e por Averróis: o seu poder penitencial estava colocado em questão a partir do momento em que se libertou a morte do inferno.

Florença - a da corte de Cosme e de Lourenço - foi o centro da nova Academia Platónica: Cosme de Médicis fundou-a a pedido do filósofo neoplatónico Georgios Gemistos Plethon (1355-1453). A Academia Platónica promoveu o amor a Platão, não só no seio de toda a Itália mas também em toda a Europa, como testemunham as obras humanistas de Girolamo Cardano (1501-1576), Luis Vives (1492-1540), Johann Reuchlin (1455-1522) e Desiderius Erasmus de Roterdão (1465-1536): o seu expoente máximo foi Marsílio Ficino (1433-1499), que traduziu para o latim as obras de Platão e de Plotino, mas a sua figura mais conhecida continua a ser Pico Della Mirandola que glorificou o homem - a dignidade do homem - como centro do universo, como vínculo dos mundos terreno, astral e divino, enfim como Deus que caminha sobre a terra para libertar os homens da escravidão e das imagens angustiantes impostas pela astrologia. Os platónicos de Florença converteram-se finalmente em neoplatónicos: ao voltar a reintroduzir o mundo do além, o neoplatonismo acabou por entregar a verdade ao inimigo contra o qual lutava. Pádua descobriu outro caminho para evitar esta entrega da verdade ao inimigo: o renascimento do autêntico Aristóteles. O centro do novo movimento aristotélico foi durante muito tempo a Universidade de Pádua. Entre os aristotélicos de Pádua, houve duas tendências: os averroístas, que, com Augustinus Niphus (1473-1546), defendiam a interpretação de Averróis, e os alexandrinos, que, sob a orientação de Pomponazzi, preferiam os comentários de Alexandre de Afrodísia. A disputa entre estas duas tendências filosóficas girava em torno da imortalidade da alma. Apesar de ambas negarem a imortalidade individual, os averroístas admitiam pelo menos a imortalidade da alma universal humana - o intelecto agente -, à qual retornavam depois da morte todas as almas, ao passo que os alexandrinos recusavam toda a forma de sobrevivência da alma. Para os filósofos árabes, Avicena e Averróis, a humanidade é uma árvore - a árvore da humanidade, que na primavera cresce somando folha a folha e que no outono fica despida de folhas: os homens - tal como as folhas, ao morrer, voltam ao estado de humanidade. Pomponazzi rejeita esta teoria mitológica do averroísmo e, em vez da retirada para a humanidade geral, defende o regresso à matéria universal. A matéria enquanto doadora de formas não precisa da cooperação de uma forma transcendente para gerar todos os fenómenos do mundo: a matéria gera a partir de si mesma todos os fenómenos do mundo, que, por sua vez, retornam a ela quando perecem. Esta concepção materialista da esquerda aristotélica alia-se no caso dos árabes e dos seus seguidores de Pádua à noção da imortalidade geral do homem na árvore da humanidade - noção rejeitada enfaticamente por Patrizzi (1520-1597) e Pomponazzi. Porém, dado que a negação da imortalidade colidia com a doutrina da Igreja, Pomponazzi elaborou a teoria da dupla verdade: assim como um tubarão e um leão não podem encontrar-se, porque um vive no oceano e o outro no deserto, assim tão-pouco podem encontrar-se os filósofos e os teólogos. A filosofia e a teologia têm «objectos» ou domínios completamente diferentes: os filósofos têm o reino da natureza e os teólogos, o reino da graça, os filósofos têm o reino de cá e os teólogos, o reino do além. Daqui resulta que algo pode ser verdade em teologia e falso em filosofia e vice-versa. No foro da dupla verdade, temos uma forma interessante do velho credo quia absurdum, credo quia ineptum, de Tertuliano, segundo o qual o teológico não só não é natural como também é antinatural, isto é, não só supera o entendimento como também está contra ele. A Igreja - o papa Pio X - rejeitou esta doutrina, cabendo a Tomás de Aquino a tarefa de a liquidar no plano da argumentação teórica. Para a doutrina oficial da Igreja, os mistérios não são antinaturais; são supra-racionais no sentido da razão humana não alcançar a parte profunda da razão divina. Pomponazzi utiliza a teoria do absurdo da fé, característica dos primeiros tempos da Igreja ascendente, para denunciar a Igreja decadente do seu tempo em transição. Pádua foi o palco não só das lutas entre averroístas e alexandrinos, mas também do ensino da anatomia. No seu magnífico teatro anatómico, havia sobre a mesa de autopsias um púlpito e, enquanto o professor seccionava e dissecava o cadáver, um monge rezava a missa no púlpito pela alma do defunto. A investigação anatómica só era autorizada pela Igreja nesta condição de ser acompanhada por uma missa. Pomponazzi formulou a sua teoria da dupla verdade para proteger a abertura da ciência natural em curso: o seu fruto mais precioso foi - a longo prazo - libertar a investigação anatómica da missa. O renascimento libertou-nos da missa e da tirania da teologia e, neste sentido, foi um bastião do esclarecimento.

J Francisco Saraiva de Sousa

5 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Reparem: eu não nego nem afirmo a imortalidade da alma. O marxismo é dialéctico e, por isso mesmo, sabe mover-se entre os opostos em função das determinações fundamentais da conjuntura política e social. Numa época ateísta, o marxismo pode tentar recuperar a verdade do teísmo - o seu momento de verdade, e numa época teísta, defende as virtudes do ateísmo. Ora, com este texto, estou a dar resposta a um desafio que me foi colocado por amigos que andam intoxicados com o mundo dos espíritos. Aconselho uma dose moderada de epicurismo: não temam a morte! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, este desafio vem a propósito de um programa obscurantista da TVI, com aquela mulher a comunicar com os mortos. Vejo no sucesso desse programa o fracasso total do sistema educativo de Portugal. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, se Passos Coelho vencer as eleições, estamos tramados, porque já suspendeu a avaliação dos professores, mesmo sem ser governo: vão ser tempos obscuros para a educação!

Simão disse...

Parabéns! Ficou muito bom. Aguardo ansioso a continuação. Como disse o Sr., a filosofia do Renascimento é sempre tratada superficialmente.
Grande abraço.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Zekzander:

Finalmente, está concluído: fui forçado a simplificar porque o tema é muito vasto e profundo. Mas penso que o essencial foi aflorado.

Abraço

PS: não falei dos cépticos - Montaigne, Charron e Francisco Sanchez, este último português. :(