«Foi por isso que não tive em filosofia, como escrevi no prefácio de Pour Marx, nenhum verdadeiro mestre, nenhum mestre excepto Thao, mas esse em breve nos deixou para regressar ao Vietname e aí apodrecer entre tarefas de varredor de lixo e a doença, sem medicamentos, e Merleau-Ponty, mas como este fora já atraído pela antiga tradição espiritualista dominante, era-me impossível segui-lo. /Depois um pouco de Husserl que nos chegava por intermédio de Desanti (marxista husserliano) e de Tran Duc Thao cuja tese me fascinava». (Louis Althusser)
Infelizmente, não conheço bem o marxismo fenomenológico de Desanti, mas conheço o percurso de Tran Duc Thao da fenomenologia para o marxismo. Convém estabelecer um paralelo entre o percurso de Thao e o de Herbert Marcuse: ambos procuraram realizar uma síntese entre a fenomenologia husserliana e heideggeriana e o marxismo, tendo sido antecipados neste empreendimento pelo jovem Lukács: «Para o autor da Teoria do Romance, Kierkegaard desempenha sempre um papel importante. Muito antes deste autor estar em moda, tinha ele consagrado um ensaio às relações entre a vida e o pensamento em Kierkegaard» (Lukács). Antes de 1932, enquanto viveu em Freiburg sob a influência de Heidegger, o jovem Marcuse elaborou uma filosofia imbuída de categorias fenomenológicas, apesar do seu compromisso firme com o marxismo e com a prática política revolucionária. A tentativa de Marcuse de combinar o marxismo e a fenomenologia antecipou os empreendimentos filosóficos levados a cabo em França por Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre depois da II Guerra Mundial. As páginas que Althusser dedica na sua auto-biografia à penetração de Husserl entre os intelectuais parisienses merecem ser lidas, mas delas retenho apenas este momento em que ele recusa a tentativa de fundar transcendentalmente o sentido da praxis marxista: «O que importava pelo menos para mim é que quando lhe acontecia falar como um filósofo sobre Marx - Althusser refere-se a Desanti - era para o pensar directamente nas categorias de Husserl. E, como Husserl propusera a soberba categoria da «praxis» antepredicativa (camada originária de sentido ligada à manipulação das coisas), o nosso bom Touki (nome que lhe davam os íntimos) sentia-se felicíssimo por descobrir em Husserl o sentido então fundado da prática marxista. Mais uma figura, Touki, que (tal como Sartre) pretendia fornecer a Marx o sentido originário da sua própria «filosofia». Evidentemente, eu, que graças a Jacques Martin começava a ler directamente os textos de Marx e a compreendê-los, aliás indignado pelas pretensões fundadoras-humanistas dos seus textos de juventude, não estava de acordo. Nunca estive de acordo com as «interpretações» husserlianas de Marx por Desanti, nem com qualquer outra interpretação «humanista» de Marx. E adivinha-se porquê: porque me horrorizava qualquer filosofia que pretendesse fundar transcendentalmente a priori qualquer sentido e qualquer verdade numa camada originária por muito antepredicativa que fosse. Desanti nada tinha a ver com isso, excepto na medida em que não tinha o mesmo horror que eu pela origem e pelo transcendental» (Althusser). De Heidegger, Althusser só tinha lido nesta altura do seu desenvolvimento intelectual a Carta sobre o Humanismo dirigida a Jean Beaufret, obra que influenciou de modo decisivo a sua leitura da filosofia de Marx extraída de O Capital, em especial aquilo a que chamou o anti-humanismo teórico de Marx. A rejeição althusseriana do humanismo - o seu horror pelo homem, pela origem e pelo transcendental - leva-o a formular a tese complementar do anti-historicismo de Marx: ambas as teses condicionam-se mutuamente, implicando fatalmente aquilo a que Adorno chamou a atrofia da consciência histórica, de resto o sintoma mais evidente da debilidade do eu. A crítica que Althusser faz da síntese operada por Sartre entre existencialismo e marxismo no seu texto Resposta a John Lewis aplica-se de igual modo ao marxismo fenomenológico do jovem Marcuse. A leitura estrutural da história realizada por Althusser implica - conforme demonstrou Alfred Schmidt em Geschichte und Struktur - o abandono da herança hegeliana no seio do marxismo: o materialismo do encontro esboçado pelo Althusser tardio despede claramente a dialéctica, quebrando até mesmo o laço que o ligou durante muito tempo a Lenine. A esquerda letrada francesa, mais Foucault e Deleuze do que Derrida - o gigante, segundo Althusser, para fugir de Marx, salvou Heidegger e Nietzsche do esquecimento, acabando por abandonar a defesa dos explorados e dos oprimidos: a figura do intelectual específico que Foucault e Deleuze opõem ao intelectual universal de Sartre e o bio-poder de Foucault abençoado pelo neovitalismo de Deleuze são figuras satisfeitas com a realidade estabelecida. Quando afirma que «não haverá civilização enquanto o casamento entre homens não for admitido», Foucault mais não faz do que esvaziar a agenda política da esquerda, convertendo a luta política em mera luta reivindicativa de direitos plurais à Vida: o coveiro da esquerda é a própria esquerda que fugiu de Marx para se refugiar no pensamento conservador de Nietzsche e de Heidegger.
De 1928 a 1932, Herbert Marcuse torna-se assistente de Heidegger em Freiburg e procura abrir um «terceiro caminho», distinto do que foi seguido por Heidegger e do marxismo ortodoxo. Deste período destacam-se três ensaios fundamentais: Beiträger zu einer Phänomenologie des Historischen Materialismus (1928), Über konkrete Philosophie (1929), e Transzendentaler Marxismus (1930). No primeiro destes ensaios, Marcuse (1928) utiliza muitos termos do vocabulário de Heidegger, tais como Sorge, Geschichtlichkeit, Entschlossenheit e Dasein. Para Marcuse, a filosofia burguesa dissolve-se e decompõe-se na obra de Heidegger: Sein und Zeit (1927) abre o caminho para uma nova ciência do concreto, o modo como Marcuse interpreta o retorno husserliano às próprias coisas ou o retorno ao concreto, como lhe chamou Jean Wahl. Marcuse justifica esta sua tese da decomposição da filosofia burguesa alegando três razões fundamentais: Heidegger não só destacou a importância ontológica da história e do mundo histórico como Mitwelt ou mundo da interacção humana (1), como também mostrou que o homem está preocupado com a sua verdadeira posição no mundo, colocando em termos correctos a questão do ser ou da vida autêntica (2). E, ao defender que o homem pode alcançar a vida autêntica mediante a acção resoluta, Heidegger conduziu a filosofia à necessidade de uma praxis de transformação do mundo (3). Curiosamente, Marcuse que já tinha lido História e Consciência de Classe de Georg Lukács não capta que a obra de Heidegger retoma em chave conservadora os temas abordados por Lukács em termos críticos e revolucionários, como demonstrou Lucien Goldmann: a revolução conservadora de Heidegger não incomoda muito Marcuse, pelo menos durante este período inicial da sua carreira intelectual. O conteúdo concreto do existencialismo de Heidegger seduz Marcuse e o carácter radical da problemática do Dasein, da preocupação e da morte empresta-lhe uma dimensão revolucionária que possibilita uma síntese entre o existencialismo e o marxismo, síntese esta que será severamente denunciada mais tarde por Georg Lukács sem mencionar a empresa de Marcuse. Porém, a descoberta dos Manuscritos de 1844 de Marx e a sua publicação com a bênção de Heidegger imprimem um novo rumo ao pensamento filosófico de Marcuse que lhes dedica um estudo fabuloso: Neue Quellen zur Grundlegung des Historischen Materialismus (1932). A ontologia humanista e revolucionária que inspira os Manuscritos de Marx, muito próxima de um hegelianismo de esquerda, parece-lhe agora mais concreta e real do que o existencialismo do seu mestre. Heidegger que entretanto deslizava para o nacional-socialismo recusa a sua tese de livre-docência: A Ontologia de Hegel e a Teoria da Historicidade (1932), onde o objecto de interesse de Marcuse era menos a compreensão do Ser do que a do ente, menos a ontologia fundamental do que a reflexão sobre a história. Quando abandona a Alemanha pouco antes da chegada de Hitler ao poder (1933), Marcuse reúne-se ao grupo de Max Horkheimer, graças à recomendação de Husserl, e, a partir desse momento, já como membro da Escola de Frankfurt, rompe com Heidegger: o seu primeiro livro que consuma essa ruptura é Razão e Revolução (1941), onde Marcuse propõe uma interpretação política, anti-autoritária e marxista do pensamento dialéctico de Hegel.
Mas o que interessa aqui destacar é a sua elaboração de um marxismo transcendental de cariz marcadamente fenomenológico-existencial, mais outro marxismo imaginário, para usar a expressão de Raymond Aron. Apesar de ser atraído pelo conteúdo concreto do existencialismo heideggeriano, Marcuse apercebe-se das suas deficiências teóricas. A grande fragilidade da filosofia existencial de Heidegger reside basicamente no seu conceito abstracto e formal de historicidade, que não lhe permite explicar as condições históricas reais que constituem a acção humana libertadora: a possibilidade de realização da vida autêntica no mundo dos homens concretos aponta para uma proeza radical que, no momento histórico presente, só é possível como proeza do proletariado, o único ser-no-mundo capaz de se envolver numa acção radical e de se converter em sujeito histórico real. Nos Manuscritos de 1844, Marx já tinha reconhecido aquilo que Heidegger irá ignorar mais tarde: a divisão da sociedade em classes sociais antagónicas. Os actuais capatazes da classe capitalista - os gestores públicos e privados que auto-atribuem a si próprios remunerações chorudas e prémios imorais - negam a existência das classes sociais e da luta de classes. Embora tenha sido abolida semanticamente pelo discurso tecnocrata dos colarinhos-brancos, a realidade das classes sociais e das desigualdades sociais agravou-se efectivamente desde que o mundo começou a ser governado por esta nova classe dirigente. O actual mundo histórico só pode ser transformado por uma revolução social radical, aquilo a que Marcuse chamou mais tarde a Grande Recusa: a nossa possibilidade de realizar a existência autêntica e de a universalizar requer o nosso empenhamento em actos radicais. O povo humilhado e ofendido, explorado e oprimido, deve revoltar-se contra a ordem social vigente e derrubá-la através da violência revolucionária (Merleau-Ponty), a única capaz de consumar e de realizar real e plenamente o humanismo integral. Deste modo, Marcuse não só complementa Heidegger com Marx, como também complementa o marxismo com a fenomenologia existencial: o seu marxismo fenomenológico - a fenomenologia dialéctica - rejeita a noção mecanicista e materialista da superestrutura ideológica e jurídico-política como mero reflexo da infra-estrutura económica. A fenomenologia dialéctica que articula entre si ontologia, história e dialéctica não pode resolver a questão da prioridade do ser sobre a consciência que define o materialismo ou da consciência sobre o ser que define o idealismo: a própria questão do primado da matéria sobre a consciência ou da consciência sobre a matéria carece de sentido a partir do momento em que é colocada pela consciência revolucionária que visa a transformação do mundo. Neste ponto, Marcuse permanece fiel não só à fenomenologia, que pretende descobrir um mundo antepredicativo aquém da cisão sujeito-objecto, como também à ontologia humanista do jovem Marx. Além disso, a fenomenologia dialéctica não investiga a natureza, condenando assim a tentativa de Engels de elaborar uma dialéctica da natureza: o ser natural é completamente distinto do ser histórico. Embora possa ter uma história evolutiva, a natureza não é em si mesma história. Só o Dasein - a realidade humana, segundo a tradução de Sartre - é história. A naturalização das ciências da cultura preconizada pelo positivismo mais não é do que uma técnica ideológica de adaptação: a ordem social vigente e o seu estado de alienação generalizada, que podem e devem ser transformados pela acção consciente e intencional dos homens reais e concretos, tendo em vista a construção de um mundo melhor (Bloch) e a realização da existência autêntica, é apresentada pela filosofia burguesa não como uma realidade histórica transitória, mas como uma ordem natural imutável. Marcuse, Lukács e Bloch - bem como Kojève, o homem que Althusser acusava de nada ter compreendido de Hegel - distanciam-se claramente do marxismo científico de Engels e do marxismo ortodoxo da II Internacional que sacrificam o elemento subjectivo - a liberdade do próprio homem enquanto sujeito real da história - no altar dos determinismos sócio-económicos: o ser da natureza não é dialéctico e, portanto, só pode ser estudado pela física matemática. Na sua tese de livre-docência, Marcuse adere à fusão operada por Dilthey entre história e ontologia, elogiando-o por ter libertado as ciências do espírito (Geisteswissenschaften) da metodologia das ciências naturais (Naturwissenschaften) e por ter restaurado o seu verdadeiro fundamento filosófico: o conceito de Dilthey de vida (Leben) como suporte da realidade histórica acentua o significado, em vez da causalidade. Ser e sentido estão intimamente ligados, tanto no pensamento do jovem Marcuse, como no pensamento de Tran Duc Thao: os homens reais fazem a sua própria história em condições históricas concretas, injectando-lhe os valores que a unificam e doando-lhe um sentido. A dialéctica é, antes de tudo, uma relação sujeito-objecto: afirmar que o funcionamento real é uma primeira relação dialéctica entre o homem e a natureza é excluir desde logo a possibilidade de uma dialéctica da natureza independentemente da existência histórica do homem, porque, segundo a feliz expressão de Jean-Yves Calvez, «sem o homem, a natureza não tem sentido. Nem sentido, nem movimento».
J Francisco Saraiva de Sousa
4 comentários:
Está a ser muito doloroso para mim silenciar o meu próprio pensamento para resgatar Marx. Mas como os meus mestres foram marxistas tenho de aceitar este auto-sacrifício até encontrar o conceito que permita voltar a pensar neste mundo indigente.
De repente, fiquei interessado nos tratamentos médicos: neste período da guerra e pós-guerra a medicina estava muito atrasada.
Acho que é a primeira vez que tenho audiência na Índia! E o Chile volta a estar bem colocado. :)
Ando a ler e a reler as obras de Foucault... até agora não me oponho a esta definição de política como continuação da guerra por outros meios, mas desconfio que não o acompanho nas conclusões.
Até aqui temos a figura da dialéctica sem reconciliação. Ora, esta é para mim a figura da dialéctica marxista a partir do momento em que desistimos do comunismo. Adorno chamou-lhe dialéctica negativa: a genealogia do poder como dialéctica negativa??
O carácter histórico das análises de Foucault em função da dupla saber-poder cansam muito - e faz febre, dificultando a elaboração de uma teoria abstracta. É certo que ele tem um fio condutor mas nem sempre é inteligível.
A Análise histórica que estou a ler não se coaduna com os livros anteriores: ele retoma uma velha ideia - a de que o socialismo e o liberalismo são faces de um mesmo tema, e projecta-a para o plano do discurso histórico que minou a teoria jurídico-filosófica da soberania - o discurso da teoria das raças que, em versão revolucionária, toma o aspecto de teoria da luta de classes. Agora, o sujeito que fala e de que se fala na história é a Nação: a noção matriz donde sairá a Raça e depois a Classe. Até posso aceitar tudo isso mas não vejo como se pode permanecer no interior desse campo e, a partir daí, defender algo de novo: o biopoder deve ser questionado, até porque possibilitou o nazismo e o sovietismo.
Compreende-se a dificuldade que sentiu em continuar a escrever a História da Sexualidade, depois de ter publicado A Vontade de Saber.
Ele sente a necessidade de uma teoria geral, esboça-a mas logo a seguir volta a perder-se em pormenores...
A análise do poder de Foucault não é original: o facto de associar o novo discurso histórico com a Bíblia mostra isso - um facto já nosso conhecido.
Diz ele que o nazismo e o sovietismo congelaram o historicismo político: ora, essa foi a acusação da Dialéctica. Todos sabíamos isso.
E o que é o historicismo político senão o uso da história para atiçar a luta dos vencidos contra os vencedores? Discurso contra a dominação que já não pode acreditar num estado de pacificação conquistada. Porquê? O suporte antropológico explica...
Foucault pode inserir o marxismo num campo teórico mais vasto, mas não consegue ir mais além dele.
Aliás, as suas análises revelam a luta de classes na teoria e a reconfiguração dos saberes-poderes... O discurso histórico introduziu-se entre o Rei e o saber administrativo da monarquia absoluta; porém, o Rei reintroduziu a história - o direito público na sua mecânica do poder: tentou domesticar a força subversiva que minava a sua soberania.
É aqui que lanço o primeiro punhal contra o corpo de Foucault: despedir a noção de ideologia não garante o sucesso de um contra-poder e de um contra-saber.
Ou será que ele pensou a sua análise do poder e a do marxismo como complementares: análise ascendente e análise descendente - ambas ligadas pela dominação, pela contra-história?
Duas transcrições inscritas no mesmo solo! :)
A Dialéctica sempre foi GUERRA - desde Heráclito.
Ah, apreciei a interpretação de Hobbes: a sua guerra não é de facto combate. A ideia de soberania eclipsa a guerra.
... mais precisamente a conquista e a invasão. Hobbes tudo faz para que os seus leitores esqueçam o jugo normando.
A contra-história rompe com a história romana - indo-europeia: traz à lembrança as traições, os saques, as espoliações esquecidas pela história dos vencedores - a glorificação do brilho do poder.
Divide... cria fissuras... demole e quebra a unidade de poder.
Enviar um comentário