«Serão precisos dois séculos de crise - crise da Fé, crise da Ciência - para que o homem recupere a liberdade criadora que Descartes atribuiu a Deus e para que se conceba finalmente essa verdade, base essencial do humanismo: o homem é o ser cuja aparição faz com que um mundo exista. Mas não censuramos Descartes pelo facto de ter atribuído a Deus o que nos pertence por direito; admiramo-lo principalmente por ter, numa época autoritária, lançado as bases da democracia, por ter seguido até ao fim as exigências da ideia de autonomia e por ter compreendido, muito antes de Heidegger de Vom Wesen des Grundes, que o único fundamento do ser era a liberdade». (Jean-Paul Sartre, Situações I.) A vida académica portuguesa é uma fuga organizada ao estudo: em vez de estudar e de preparar um futuro novo para Portugal, os estudantes universitários preferem beber até ficar bêbados e ir parar às urgências dos Hospitais, e urinar nas ruas. Publicações Europa-América publicaram em língua portuguesa, ainda no tempo do fascismo, uma obra de Sartre - em dez volumes -, cuja leitura recomendo aos estudantes universitários que se alienaram de si mesmos, da história e do mundo. Os estudantes universitários portugueses, bem como os seus professores, estão fora de situação. Situações é o título dessa obra capital de Jean-Paul Sartre (1905-1980), que recolhe diversos ensaios literários, filosóficos e políticos, escritos entre 1938 e 1965, muitos dos quais foram publicados pela primeira vez na revista Les Temps Modernes fundada em 1945 por Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Maurice Merleau-Ponty. Destaco apenas três ensaios: o famoso ensaio literário O que é a Literatura? (1947), o ensaio político Os Comunistas e a Paz (1952-54) e o sempre actual ensaio filosófico Materialismo e Revolução (1946). A paixão de Sartre pela actualidade da sua época e o desejo de a inflectir levaram-no ao engajamento: a defesa dos oprimidos, sem complacência pelos opressores. Ora, o combate político contra a injustiça sob todas as suas formas colocou-o imediatamente nas proximidades do marxismo. Em 1934, Sartre escreve: «Sempre me pareceu que uma hipótese de trabalho tão fecunda como o materialismo histórico não exigia de modo nenhum como fundamento essa absurdidade que é o materialismo metafísico. Não é, com efeito, necessário que o objecto preceda o sujeito para que os pseudo-valores espirituais se dissipem e para que a moral reencontre as suas bases na realidade. Basta que o Eu seja contemporâneo do mundo e que a dualidade sujeito-objecto, que é puramente lógica, desapareça definitivamente das preocupações filosóficas. O Mundo não criou o Eu, o Eu não criou o Mundo, eles são dois objectos para a consciência absoluta, impessoal, e é por ela que eles estão ligados. Esta consciência absoluta, quando purificada do Eu, nada mais tem que seja característico de um sujeito, nem é também uma colecção de representações: ela é muito simplesmente uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência. E a relação de interdependência que ela estabelece entre o Eu e o Mundo basta para que o Eu apareça como "em perigo" diante do Mundo, para que o Eu (indirectamente e por intermédio dos estados) retire do Mundo todo o seu conteúdo. Nada mais é preciso para fundamentar filosoficamente uma moral e uma política absolutamente positivas». A obra de Sartre, donde retirámos esta citação - A Transcendência do Ego, procura assimilar o projecto husserliano, ao mesmo tempo que o radicaliza: a análise crítica da noção de sujeito transcendental, desenvolvida por Husserl nas Meditações Cartesianas, leva Sartre a expulsar o Ego do campo transcendental, fazendo dele um ser do mundo, colocado no mesmo plano que o Ego do outro. Deste modo, Sartre funda objectivamente a autonomia da consciência irreflectida - do psíquico -, salvando a fenomenologia da armadilha do solipsismo ontológico. Contra a suspeita do seu amigo Nizan, Sartre pensa que a fenomenologia pode ser mais do que um «idealismo que ignora o sofrimento, a fome, a guerra», bastando-lhe fazer do Ego um ser existente contemporâneo do mundo: a partir deste Ego como ser do mundo, a fenomenologia pode criar uma moral e uma política positivas. Em 1934, os ingredientes essenciais do pensamento de Sartre, tal como aparece resumido nesta pequena obra, já eram o compromisso político - a luta contra a opressão, o interesse pela teoria marxista da história e a recusa a sacrificar a liberdade humana a qualquer tipo de determinismo, local ou universal. Tal como o jovem Marcuse, fortemente marcado pelo pensamento de Heidegger, Sartre procura pensar uma fundamentação fenomenológica para o marxismo e, de certo modo, esse foi o grande projecto de toda a sua vida, que se materializou em duas grandes obras filosóficas: O Ser e o Nada (1943) e a Crítica da Razão Dialéctica (1960). Sartre leu Marx muito cedo na vida e nunca escondeu a sua admiração incondicional pelos seus escritos de juventude e pelo Livro I de O Capital: a dialéctica histórica era vista por Sartre como uma hipótese fecunda para interpretar a história; o que Sartre rejeitou desde sempre foi o «materialismo dialéctico» - essa metafísica dissimulada num positivismo, que, na sua perspectiva, exposta no ensaio Materialismo e Revolução (1946), mais não é do que uma ideologia congelada, absolutamente avessa ao autêntico movimento dialéctico do marxismo: Como é que a matéria poderia engendrar a ideia de matéria? O materialismo é, para Sartre, «a subjectividade dos que têm vergonha da sua subjectividade». Aprovo - em termos gerais - a crítica que Georg Lukács fez do existencialismo de Sartre, completamente distinto do de Jaspers e do de Heidegger, mas vejo a questão do "terceiro partido" e da "terceira via" numa outra perspectiva. Quando publicou o ensaio Os Comunistas e a Paz, Sartre tornou-se um «companheiro de viagem» do Partido Comunista Francês, rompendo com Merleau-Ponty e travando uma polémica com Claude Lefort. A aproximação ao PCF mostra que Sartre optou claramente pelo socialismo, vendo nele a verdadeira aspiração da humanidade, mas esta aproximação política - meramente conjuntural - não implica que ele tenha escolhido o materialismo metafísico. Sartre é um homem de Esquerda que lutou contra o fascismo e a opressão: o seu ódio pelo capitalismo é uma constante que anima todas as suas tomadas de posição. Embora reconheça a superioridade intelectual e política de Sartre, Lukács censura-lhe - com razão - a opção pelo existencialismo - reduzido na Crítica da Razão Dialéctica a uma mera ideologia destinada a inserir-se no quadro mais amplo do marxismo, a «insuperável filosofia do nosso tempo» - como a terceira via que supera o eterno conflito entre o idealismo e o materialismo: o existencialismo não é, de facto, a terceira via, até porque está organicamente ligado ao idealismo subjectivo. Porém, Sartre também tem razão quando procura separar a questão do terceiro partido da questão da terceira via, rejeitando as identificações que Lukács opera entre capitalismo e idealismo e entre socialismo e materialismo, mediante a alegação de que o socialismo é incompatível com uma filosofia materialista, na medida em que «o socialismo propõe como fim um humanismo que o materialismo torna inconcebível»: «Idealismo e materialismo fazem desvanecer igualmente o real, um porque suprime a coisa, o outro porque suprime a subjectividade. /Um ser contingente, injustificável, mas livre, inteiramente mergulhado numa sociedade que o oprime, mas capaz de ultrapassar essa sociedade pelos seus esforços para a modificar, eis o que reclama ser o homem revolucionário. O idealismo mistifica-o por o ligar a direitos e valores já dados; esconde-lhe o seu poder para inventar os seus próprios caminhos. Mas o materialismo mistifica-o também, ao roubar-lhe a sua liberdade. A filosofia revolucionária deve ser uma filosofia da transcendência» (Sartre). Paradoxalmente, se abstrairmos o contexto político da época, levando em conta que - mais tarde - o materialismo soviético acabou por abafar o projecto revolucionário, Lukács e Sartre estão muito próximos: a terceira via - além do idealismo e do materialismo - é a dialéctica, entendida como «o pensamento dos oprimidos enquanto se revoltam em conjunto contra a opressão» (Sartre) e os opressores - a classe dirigente - que reivindicam perversamente para toda a sua classe o direito divino, fazendo dos oprimidos - os homens de dever divino - a classe que nasceu para servir os supostos homens de direito divino. J Francisco Saraiva de Sousa
6 comentários:
Hummmm... Estou fascinado com o vulcão da Islândia. Os vulcões da Islândia já congelaram a Europa no passado: agora podem ajudar a mudar o mundo, porque estamos mesmo no limite do aceitável.
oi Francisco, em Maio vai haver um colóquio internacional sobre sexualidade aí no Porto, vai participar?
Não sei se tenho tempo, porque vou em princípio participar de outra conferência sobre Inteligência artificial organizada com a participação de um núcleo de engenheiros de lx. E a ideia é "desenhar" a inteligência, o cérebro do computador...
Vou contar-lhe um episódio ridículo: uma faculdade convidou os "notáveis" da cidade que, quando reunidos, ficaram a olhar a burrice uns dos outros. E quem eram os notáveis?! Como estamos mal... São figuras como o Figo... na campanha do PS... :(
O post está concluído: o objectivo foi alcançado, embora não tenha integrado o ensaio sobre literatura. :)
Olá!
Já há muito tempo que não dava aqui um sinal.
Desta vez venho apenas retribuir a generosidade deste post, não sei se já conhece esta entrevista, de qqr modo aqui fica:
Jean-Paul Sartre - Entrevista (1967) Subtítulos en español
http://video.google.com/videoplay?docid=-630909337462789785#
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