quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Filosofia Económica: A Economia da Idade da Pedra

Marshall David Sahlins
«A economia política, no sentido mais amplo da palavra, é a ciência das leis que regem a produção e a troca dos meios materiais de subsistência na sociedade humana. /A economia política, concebida como ciência das condições e das formas em que as diversas sociedades têm produzido, trocado e distribuído os produtos da forma correspondente, quer dizer, em toda a sua extensão, está ainda por fazer». (Friedrich Engels)


«Para a opinião geral, uma sociedade opulenta (no sentido de Galbraith) é aquela em que se satisfazem com facilidade todas as necessidades materiais dos seus elementos. Assegurar que os caçadores eram opulentos significa negar então que a condição humana é uma tragédia decretada lá onde o homem está prisioneiro do árduo labor que significa a perpétua disparidade entre as suas carências ilimitadas e a insuficiência dos seus meios. É que à opulência se pode chegar por dois caminhos diferentes. As necessidades podem ser "facilmente satisfeitas" ou produzindo muito ou desejando pouco». (Marshall Sahlins


Ao contrário dos economistas burgueses, Marx encarnou o espírito científico e a sua obra seduziu todas as ciências sociais e humanas. A antropologia social e cultural, em especial a antropologia económica, rendeu-se à teoria histórico-económica de Marx: a obra Stone Age Economics de Marshall Sahlins (1972) inscreve-se no debate substantivista-formalista em torno da licitude de aplicar os conceitos económicos clássicos, derivados da observação de sistemas económicos capitalistas, à análise das sociedades primitivas. Scott Cook (1973) analisou esta controvérsia científica entre antropólogos, tomando o partido da corrente formalista da teoria económica, para a qual a economia é um sistema que utiliza recursos escassos para maximizar a satisfação de necessidades: «uma vez exercida a opção em relação à utilização dos recursos escassos, colmatar-se-ão aquelas necessidades que se estimam mais satisfatórias ou com maior utilidade marginal (isto é, adicional)». Os antropólogos económicos - M. Herskovitz e R. Firth, por exemplo - utilizaram a célebre definição de Robbins, herdada do marginalismo: a economia é «a ciência que estuda o comportamento humano como uma relação entre fins e meios raros que têm usos alternativos». A recente definição de Samuelson & Nordhaus (1999) não está muito distante da de Robbins: «a economia é o estudo da forma como as sociedades utilizam recursos escassos para produzir bens com valor e de como os distribuem entre os vários indivíduos». Ambas as definições tendem a fazer da economia o estudo de toda a actividade finalista possuidora de uma lógica que assegure a sua eficácia frente a uma série de exigências pela combinação de um conjunto limitado de meios. Ora, como demonstrou M. Godelier, uma tal definição formal da economia não permite distinguir entre actividade económica e qualquer outra actividade humana finalista e orientada (1), esquece que as relações económicas são fundamentalmente relações sociais (2) e visa unicamente o aspecto do processo económico ligado à decisão dos agentes económicos (3). Para Sahlins (1973), a economia é «o processo de aprovisionamento material da sociedade». Ou de acordo com os partidários de uma definição substantiva da economia: a economia de uma sociedade refere-se às formas e às estruturas sociais da produção, da distribuição e da circulação dos bens materiais que caracterizam esta sociedade num momento determinado da sua existência. Os substantivistas que seguem Karl Polanyi (1944), bem como os marxistas estruturais, consideram que as economias primitivas se inserem num conjunto de relações sociais - baseadas no parentesco - completamente distinto do sistema de relações sociais vigente nas economias capitalistas: conceitos tais como economização - atribuição de recursos escassos para máximo proveito pessoal -, capital, benefícios, renda, interesses, salários, juros, lucros, etc., tão pertinentes para analisar as economias capitalistas, não podem ser aplicados às sociedades onde a produção, a distribuição e o consumo de bens não se inserem no quadro de relações sociais formado pela propriedade privada e pela economia política capitalista. A sua aplicação abusiva às sociedades primitivas leva os economistas burgueses a reinterpretar o mundo segundo a imagem - falsa e etnocêntrica - dos homens de negócio burgueses: «Em termos gerais, trata-se de escolher entre a perspectiva do Negócio, pois o método formalista é obrigado a considerar as economias primitivas como versões subdesenvolvidas da nossa (economia capitalista), e um estudo cultural que, por norma, honra as diferentes sociedades pelo que são» (Sahlins). Quando escreve que o seu livro é substantivista, Sahlins toma partido pela linha de pensamento substantivista de Karl Polanyi e de George Dalton para logo a seguir se aproximar do marxismo estrutural tal como foi protagonizado por Maurice Godelier, Emmanuel Terray e Jonathan Friedman, cuja retoma da definição clássica de economia se deve aos economistas dissidentes do marginalismo, dos quais o mais importante foi Piero Sraffa que, em 1951, editou The Works and Correspondence of David Ricardo e, em 1960, o seu livro Production of Commodities by Means of Commodities. A antropologia económica de orientação marxista analisa e explica as formas e estruturas dos processos da vida material das sociedades com a ajuda dos conceitos elaborados por Marx, em especial dos conceitos de modo de produção e de formação social e económica. Sahlins é peremptório quando descarta a economia formal: «Como encarnação da sabedoria das categorias burguesas originais, a economia formal desenvolve-se dentro como uma ideologia e fora como um etnocentrismo». O homem económico - concepção subjacente à economia formal que legitima a colonização capitalista da sociedade, da personalidade e do mundo da vida - é uma invenção burguesa: «Foram as nossas sociedades ocidentais que, muito recentemente, fizeram do homem um "animal económico". Mas, por enquanto, nem todos somos seres desse género. Entre as nossas massas e as nossas elites, o gasto puro e irracional é de prática corrente, sendo ainda característico de alguns fósseis da nossa nobreza. O homo oeconomicus não está para trás, está sim na nossa frente; como o homem da moral e do dever; como o homem da ciência e da razão. O homem foi, durante muito tempo, outra coisa; e não há muito tempo que ele é uma máquina, uma complicada máquina de calcular. Aliás, nós estamos - ou estávamos? - ainda afastados, felizmente, deste constante e glacial cálculo utilitário. (...) Talvez seja bom que existam outros meios de gastar e de trocar, para além da pura despesa. No entanto, na nossa opinião, não é no cálculo das necessidades individuais que se encontrará o método da melhor economia. Devemos, creio eu, mesmo enquanto quisermos desenvolver a nossa própria riqueza, ser mais do que puros financiadores, tornando-nos sempre melhores contabilistas e melhores gestores. A perseguição brutal dos objectivos do indivíduo é prejudicial para os objectivos e para a paz do conjunto, para o ritmo do seu trabalho e das suas alegrias e - pelo efeito de retorno - para o próprio indivíduo» (Marcel Mauss). A economia antropológica das sociedades primitivas pode ensinar-nos muita coisa sobre a natureza da troca, para além de apontar os limites da economia capitalista que invade todas as zonas não-capitalistas, tendo em vista a optimização do lucro e dos rendimentos privados. Sahlins termina o seu belo livro com a elaboração de uma teoria do valor de troca que iremos analisar numa outra oportunidade: a economia antropológica fornece-nos as grelhas conceptuais necessárias para nos libertarmos da ideologia burguesa do homem económico que não nos deixa viver com serenidade a nossa vida breve. O capitalismo é, na sua essência, um sistema irracional e destrutivo. (O objectivo deste texto foi apresentar a obra de Sahlins: a análise do seu conteúdo fica para outra oportunidade. Quando penso no capitalismo, fico com vontade de radicalizar Rousseau!)


Anexo: Greve ao consumo. Os portugueses e os europeus deviam começar a consumir o mínimo possível, de modo a levar o capitalismo à falência. Os povos primitivos constituem um modelo exemplar de uma vida sem angústia e, de certo modo, foram felizes desejando pouco. O capitalismo impôs-nos um sistema de exploração monstruoso, obrigando-nos a trabalhar para sobreviver. Não vale a pena viver para alimentar este monstro capitalista que nos nega a vida: Acorda e não consumas. Unidos nesta greve ao consumo vamos liquidar o capitalismo. Diz Não ao cartão de crédito! Diz Não ao carro! Diz Não ao telemóvel! Diz Não ao consumo! Diz Não aos pequenos luxos! Diz Não ao trabalho! Torna-te Homem e ousa desafiar o poder instituído! Faz Greve Total! Não queiras alimentar com o teu sangue os vampiros capitalistas! Sem o teu dinheiro eles ficam pobres! Deixa de ser tolo, fingindo seres aquilo que não és! Assume a tua pobreza e não consumas para além do mínimo de sobrevivência! Portugal é um país pobre! Não queiras fazer dos ricos mais ricos do que já são! Não alimentes a sua gula! Faz Greve ao Consumo!


J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 27 de agosto de 2011

Filosofia Económica: Os Economistas Soviéticos

«A Economia Política é a ciência das leis que regem a produção e a distribuição dos bens materiais indispensáveis à vida na sociedade humana, nos diversos estádios do seu desenvolvimento. O seu objecto é a estrutura social da produção». (Lev Leontiev)

«Die politische Ökonomie ist eine Gesellschafts-wissenschaft. Ihr Geganstand sind die auf den verschiedenen Entwicklingsstufen der Gesellschaft bestehenden Beziehungen der Menschen in der Produktion, die Produktionsverhältnisse, und die in ihnen objektiv wirkenden Gesetze, die ökonomischen Gesetze, sowie die - ebenfalls von objektiven Gesetzen bestimmten - Wechselbeziehungen der Produktionsverhältnisse mit den Produktivkräften und mit dem Überbau der Gesellschaft». (Jürgen Becher et al.)


A melhor análise do marxismo soviético foi realizada por Herbert Marcuse na sua obra O Marxismo Soviético: a Esquerda deve ter muito cuidado quando critica o marxismo soviético. A sua missão não é contribuir para esse empreendimento mentiroso que é O Livro Negro do Comunismo, mas sim elaborar O Livro Negro do Capitalismo. Hoje, quando acordei, lembrei-me que tinha alguns livros de economia política da autoria de economistas da classe operária: os cientistas sociais soviéticos tinham a grande qualidade de ser transparentes nas exposições científicas que faziam dos assuntos que os preocupavam. Eles escreviam numa linguagem acessível ao auditório universal: o marxismo soviético promoveu sempre a cultura, a arte, a ciência, a filosofia e a educação e, neste domínio, a sua obra não tem eco no mundo capitalista que mergulhou a sua população no abismo dos falsos-diplomas. A literatura soviética (em sentido amplo) constitui um tesouro cognitivo da Humanidade que não pode ser esquecido para alimentar as mentiras do capitalismo. Por temperamento, não suporto a MENTIRA IDEOLÓGICA e fico revoltado quando ouço homens medíocres e corruptos a falsificar a História da Humanidade, mentindo descaradamente com todos os seus dentes para salvaguardar os seus privilégios sociais conquistados de modo fraudulento e sem mérito próprio. Estas mentes tortuosas que envergonham a humanidade do Homem são de tal modo doentias que não conseguem pensar para além do seu umbigo gorduroso, fazendo justiça às grandes obras de teoria histórica, económica, social, jurídica, artística, psicológica, científica, política, etc., produzidas pelos marxistas soviéticos. Os filósofos e os cientistas, se quiserem merecer estas designações, devem rasgar este véu ideológico com o qual os ideólogos burgueses tentam encobrir a verdade. A tarefa que estou a propor é a leitura sem preconceitos ideológicos das obras científicas e filosóficas do marxismo soviético (sentido amplo): os leitores que não tenham domínio pleno dos instrumentos conceptuais da ciência e da filosofia podem iniciar os seus estudos de economia política lendo algumas obras de divulgação do marxismo soviético, das quais recomendo três traduzidas em língua portuguesa - Manual de Marxismo-Leninismo de Otto Kuusinen et al., O que é o Materialismo Histórico? de O. Yakhot, e Curso Elementar de Economia Política de Lev Leontiev - e duas em alemão - Politische Ökonomie des Kapitalismus und des Sozialismus de Jürgen Becher et al., e Dialektischer und historischer Materialismus de Frank Fiedler et al.. Existem mais obras traduzidas em língua portuguesa - e eu próprio tenho algumas delas, mas as referidas são suficientes para dar início à redescoberta do marxismo soviético.


Concordo com o sentido geral da crítica dirigida por Marcuse ao marxismo soviético, mas - relendo as secções de economia política das obras referidas - fiquei com a impressão que os marxistas soviéticos conservaram o espírito crítico de Marx em relação à crítica da economia política do capitalismo. De certo modo, eles realizaram uma exposição abstracta e exacta dos princípios da economia política marxista, travando um confronto com todas as escolas da economia política burguesa. A crise financeira e económica de 2008 gerou uma conjuntura mundial favorável à mudança de paradigmas económicos, impondo por si só a redescoberta do marxismo soviético: a economia política do capitalismo tal como foi exposta pelos marxistas soviéticos sai reforçada e revitalizada na sua missão de dizer a verdade sobre o capitalismo com a crise de 2008. A Queda do Muro de Berlim deixou o capitalismo entregue a si próprio e às leis do seu movimento imanente e, quando isso acontece, ele dispensa o papel regulador do Estado e segue as regras do seu próprio jogo, o que o conduz inexoravelmente à crise. O neoliberalismo desalojou o keynesianismo e, com isso, preparou o terreno para o eclodir de crises sucessivas: o que significa que não há uma solução neoliberal para a crise, excepto a de empobrecer ainda mais os contribuintes desprotegidos ou mesmo os mais pobres para cobrir os prejuízos privados. (O programa neoliberal do Governo Português liderado por Passos Coelho vai matar Portugal que nunca foi um país capitalista desenvolvido: à acumulação de atrasos estruturais e históricos acrescenta-lhe a morte que representa a perda de soberania e do controle nacional sobre empresas-chave. A política do PSD é o suicídio nacional.) Basta ler a Terceira Secção do manual de Otto Kuusinen dedicada à exposição da Economia Política do Capitalismo para descobrir aí o discurso que diz a verdade sobre a actual conjuntura do mundo: «A doutrina de Marx é omnipotente porque é verdadeira» (Lenine). Os marxistas soviéticos permaneceram fiéis a Marx quando, a partir da unificação da microeconomia e da macroeconomia, tendo como fio condutor a teoria do valor, conseguiram apresentar uma teoria económica coerente do capitalismo, cuja verdade não pode ser facilmente questionada. Devo confessar que eu próprio fui intoxicado com a propaganda capitalista: a hegemonia cultural da burguesia revela-se tanto nas instituições educativas como nos mass media, cuja acção diária deforma a nossa mente, levando-nos a interiorizar o opressor capitalista, isto é, tudo aquilo que nos torna escravos de um sistema social que nos nega a dignidade. Muitas das minhas obras marxistas estavam encaixotadas ou perdidas algures dentro dos armários de parede, nas secções escondidas das estantes ou mesmo no sotão. A propaganda capitalista afasta-nos da verdade, mergulhando-nos no reino das mentiras e da degradação mental e cognitiva. Não vale a pena viver as mentiras do capitalismo para dilatar o self-bolsa do capitalista e atrofiar o nosso self verdadeiro. O capitalismo usou a ciência para derrubar o feudalismo, mas, quando Marx começou a usar a ciência para criticar o capitalismo, este reagiu substituindo a ciência pela apologia e pela pragmática. A superioridade do marxismo em relação à economia burguesa reside tanto na síntese dinâmica que opera entre história e teoria económica, como também no facto da análise económica produzir a sua própria filosofia. É nesta dupla-síntese dinâmica que reside o núcleo essencial da imensa revolução teórica de Karl Marx: Marx faz Filosofia fazendo a Crítica da Economia Política burguesa. O Capital - a obra de Marx - é, ao mesmo tempo, uma teoria económica do modo de produção capitalista e uma teoria crítica do seu processo de produção de conhecimentos. A leitura sintomal que Althusser realizou de O Capital é legítima, mas peca quando abandona os Escritos de Juventude de Marx para se entregar ao fetichismo do jogo das estruturas que priva o marxismo da política. Althusser esqueceu-se do subtítulo de O Capital - Crítica da Economia Política. Habermas - aquele que escreveu Conhecimento e Interesse - protegeu-se da armadilha do positivismo quando definiu a teoria crítica como uma teoria reflexiva que dá aos agentes humanos um tipo de conhecimento inerentemente produtor de esclarecimento e emancipação. Alfred Schmidt e Raymond Geuss explicitaram esta ideia de teoria crítica, mostrando que a ciência da História fundada por Marx não é uma ciência natural no sentido positivista do termo. Geschichte und Struktur de Schmidt constitui uma crítica do estruturalismo marxista que merece ser lida. O contributo de Jacques Rancière para a obra Ler O Capital mostra até que ponto os althusserianos não compreenderam a teoria de Marx quando opõem o discurso crítico do jovem Marx ao discurso científico do Marx da maturidade: eles objectivam a ciência da história de Marx. Martin Heidegger e Hannah Arendt acusaram o marxismo de ter quebrado a unidade da Filosofia, fragmentando-a e dispersando-a numa multiplicidade de ciências sociais e humanas, mas esta acusação é falsa, porque, para o marxismo, «não há, pois, em última análise, ciência jurídica, economia política, história, etc., autónomas; há somente uma ciência, histórica e dialéctica, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como totalidade» (Georg Lukács). Deste modo, Lukács dissolve a distinção clássica entre materialismo histórico e materialismo dialéctico: a teoria marxista é a auto-crítica da sociedade burguesa que possibilita a auto-crítica da história da humanidade. Graças a Marx a Filosofia não perde terreno; pelo contrário, a Filosofia "apropria-se" de todo o território que, por direito, lhe pertence. A obra de Marx é de tal modo densa, complexa, rica e incompleta que resiste a qualquer leitura linear e redutora: o que aqui posso dizer é que a filosofia de Marx trabalha simultaneamente em dois campos teóricos: como crítica materialista do idealismo e do seu princípio de identidade, a Filosofia de Marx consuma a Tradição Ocidental, apropriando-se de todo o seu legado através de um novo conceito de História, e, como crítica do positivismo, a Filosofia de Marx faz da Crítica uma forma de conhecimento, dotada de conteúdos próprios e de uma epistemologia própria, e capaz de funcionar como guia da acção humana. A minha leitura da Filosofia de Marx não é inocente: a partir do momento em que a auto-crítica da sociedade burguesa se converte em auto-crítica da história da humanidade, a "ciência da História" fundada por Marx adopta o ponto de vista do observador imparcial, isto é, do observador universal. Marx não opõe à economia política burguesa uma economia política da classe operária, como pensavam os economistas soviéticos. Leo Huberman, que não era um marxista soviético, chamou Economia do Trabalhador à Economia de Marx, porque «nela o trabalhador verificava o seu importante lugar na ordem das coisas e encontrava também esperanças no futuro». Abraham Lincoln não era marxista mas partilhava alguns aspectos do pensamento de Marx: «Nada de bom tem sido ou pode ser desfrutado sem ter primeiro custado trabalho. E como a maioria das coisas boas são produzidas pelo trabalho, segue-se que todas essas coisas pertencem, por direito, àqueles que trabalharam para as produzir. Mas tem ocorrido, em todas as eras do mundo, que muitos trabalharam e outros, sem trabalhar, desfrutaram uma grande proporção dos frutos (do trabalho alheio). Isso está errado e não deve continuar. Assegurar a todo o trabalhador o produto do seu trabalho, ou o máximo possível desse produto, é o objectivo digno de qualquer bom governo». Marx e Lincoln partilham duas ideias fundamentais: o trabalho produz mercadorias ou produtos, e o trabalhador, ao ser obrigado a dividi-las com o capital, está a ser roubado. E, tal como Marx, Lincoln desejava abolir esta situação de exploração. O interesse que move a teoria crítica é a emancipação: a crítica da economia política burguesa visa precisamente iluminar a luta da classe trabalhadora contra o sistema de exploração. Mas, quando afirmo que a teoria marxista adopta o ponto de vista do observador universal, recorro a outra tese de Marx: «A história de toda a sociedade até aos nossos dias mais não é do que a história da luta de classes». A síntese entre teoria económica e história faz com que a auto-crítica da sociedade capitalista se converta na auto-crítica da história da humanidade, isto é, na auto-crítica da história da luta de classes. Ora, esta síntese implica necessariamente o ponto de vista do observador universal, não só porque se trata de toda a história da humanidade, da humanidade em sofrimento, mas também porque, ao contrário dos economistas vulgares que tendem a transformar as leis históricas em leis naturais, como se a ordem social burguesa fosse uma ordem natural a-histórica, Marx não abdica da busca cooperativa da verdade: a crítica da ideologia funciona basicamente na obra de Marx como crítica do positivismo. As "leis históricas" descobertas por Marx não são "leis naturais", mas tendências que só por si não são suficientes para garantir a passagem automática do modo de produção capitalista para o modo de produção socialista: os marxistas soviéticos naturalizaram as "leis históricas", e é neste acto ideológico que reside o seu erro colossal. Aplicar a crítica da ideologia ao próprio marxismo não exige o abandono da tese do colapso do capitalismo; exige uma outra coisa: cultivar o pessimismo metódico. Para todos os efeitos, o comunismo é uma peça exterior à teoria marxista: Marx já era "comunista" antes de ser marxista. Assumo a culpa da minha leitura que visa libertar o marxismo desse mito que é o comunismo, graças à qual posso actualizar a Filosofia de Marx.


(Reparem: não usei o termo síntese no sentido dialéctico de negação da negação, ela própria uma positividade pardacenta. Usei-o no sentido de teoria unificada. Para mim, a totalidade social é sempre negativa e é por ser negativa que ela é dialéctica. Não concebo o fim da dialéctica e não acredito em conciliações dos contrários. A história é luta e assim será até à catástrofe final. Meti-me num Grande SARILHO TEÓRICO: Penso que estou no caminho certo para resolver os problemas económicos que atormentam a humanidade, mas não tenho todos os documentos-livros necessários para tomar conhecimento em primeira mão das teorias que me interessam. Ao introduzir a perspectiva do observador imparcial, uma figura que fui buscar a Adam Smith, estou a tentar impor uma teoria unificada da economia. Porém, cada país tem a sua própria história da economia e da análise económica. Por exemplo, a história das doutrinas socialistas na Rússia e na Grã-Bretanha é espectacular e há obras que a relatam mas de um ponto de vista parcial. Pela literatura escassa que consultei até aqui, verifico que o marxismo reagiu muito bem aos novos desenvolvimentos teóricos da economia burguesa. No entanto, o campo marxista nunca procurou realizar uma síntese teórica do seu contributo. Elevar o nível de abstracção e de formalização do discurso ajuda a clarificar as ideias: a teoria pura é um instrumento analítico fundamental, sem o qual corremos o risco de perder o rumo. Em relação a Portugal, um país que nunca teve uma tradição de pensamento económico ou mesmo filosófico, chego à conclusão de que um dos factores de crescimento económico é o investimento cultural. Assim, por exemplo, o facto de não termos as obras fundamentais traduzidas atempadamente para a língua portuguesa ajuda a compreender o nosso atraso estrutural. Portugal está, em termos de desenvolvimento cultural, perigosamente próximo dos países africanos e árabes. Quando teve acesso ao crédito, com a entrada na zona Euro, usou-o tal como faz um país subdesenvolvido: corrompeu-se e, em vez de criar as condições necessárias ao desenvolvimento económico, investiu em obras sumptuosas que não geram riqueza. Portugal parece ser um país moderno, mas não é: o comportamento saloio consiste em fingir ser aquilo que não é, e este negócio do fingimento nacional enriquece sempre os mesmos. Desenvolvimento económico também é desenvolvimento cultural: o atraso económico de Portugal explica-se estruturalmente pelo seu atraso cultural. O que é deveras preocupante para o futuro de Portugal é constatar que as políticas pós-25 de Abril e pós-adesão à União Europeia terem agravado esse atraso, dando diplomas aos analfabetos e enchendo a sua cabeça de ilusões de animal anti-cultural. Acreditem em mim quando vos digo que as novas gerações são mais burras do que as gerações anteriores. Neste momento, o problema de Portugal é uma crise antropológica, uma crise de inteligência cultivada. Desgraçados dos países que importam estes cérebros-zombies! As Universidades Portuguesas não desempenham a sua missão de fomentar o desenvolvimento cultural, porque foram sempre-já capturadas pelo sistema da cunha e pela rede de corrupção nacional, para já não referir os aspectos badalhocos. A maior parte dos professores portugueses são mediocridades pardacentas que pensam que, ao ocupar o cargo que lhes garante o vencimento, incorporam magicamente a sabedoria subjacente à posição: o ensino em Portugal é um jogo de mentiras público-privadas. A crise deve ser aproveitada para executar o saneamento desejável: o despedimento por incompetência é legítimo. Os burros-corruptos instalados vedam o acesso aos competentes e, deste modo, bloqueiam o desenvolvimento. Libertar as instituições desta manada de burros é libertar o futuro de Portugal. Um dos objectivos da política nacional devia ser a entrega das suas instituições aos competentes. Com os burros Portugal afunda-se cada vez mais. O 25 de Abril possibilitou a ascensão social dos burros e dos diplomas administrativos e estamos a pagar o preço. Não concebo uma reforma da administração pública sem uma política racional de despedimentos. Não podemos sacrificar o futuro por causa dos burros que nos afundaram e nos afundam enquanto permanecerem nos lugares que não lhes pertencem por mérito e por direito. Afinal, a teoria de que a crise é uma oportunidade para mudar já tinha sido enunciada por Marx.)

Aprende-se mais lendo os manuais soviéticos sobre economia política do que lendo o famoso livro de Paul Samuelson, cuja definição de economia faz lembrar uma assembleia urbana onde os homens deliberam sobre a maneira como utilizar as suas capacidades limitadas: «A economia é o estudo da maneira como os homens e a sociedade decidem, com ou sem utilização de dinheiro, utilizar recursos produtivos escassos, que poderiam ter usos alternados, para produzir várias mercadorias com o tempo e distribuí-las para consumo, agora e no futuro, entre as várias pessoas e grupos na sociedade» (Samuelson). Mas, como estou aqui mais preocupado com a filosofia económica, vou retomar a economia política tal como foi analisada pelos economistas soviéticos: a economia política é o estudo científico das relações de produção entre os homens e das leis de desenvolvimento da produção social e da distribuição dos bens materiais nas diversas fases que a sociedade humana atravessou. Convém lembrar que, em termos históricos, a economia dizia respeito à administração do orçamento doméstico. Ora, quando a residência passou a ser a do monarca, as preocupações económicas tornaram-se preocupações políticas: a "economia política" surgiu assim como o estudo dos problemas relativos às rendas - oriundas dos impostos e dos empréstimos - e às despesas do monarca - com a corte, a administração civil, o exército e a marinha. Mas, como demonstrou Marx, a economia política começa a desenvolver-se como ciência ao mesmo tempo que se gera o modo de produção capitalista: o mercantilismo (século XVII), o fisiocratismo (século XVIII) e, sobretudo, a economia clássica inglesa (século XIX) são algumas das doutrinas económicas que a burguesia ascendente usou como armas ideológicas contra o feudalismo. Quando se lança nos palcos da história como classe revolucionária, a burguesia estava interessada no conhecimento científico das leis que regem o desenvolvimento da produção capitalista e na eliminação das relações feudais que se opunham ao estabelecimento do poder do capital. No século XIX, já durante o período da Revolução Industrial, surge a economia política burguesa, mais conhecida pelo nome de economia política clássica, cujos fundadores mais célebres foram Adam Smith e David Ricardo: Marx criou a sua economia política a partir de um diálogo produtivo e crítico com a economia clássica burguesa, originária da Inglaterra. Marx estabeleceu uma distinção importante entre a economia política clássica, que «investigava a estrutura interna real das relações burguesas de produção», e a economia vulgar, que se confunde «com a estrutura aparente dessas relações, sistematizando de forma pedante e proclamando como verdades eternas as ideias banais e complacentes que os agentes de produção burgueses têm sobre o seu próprio mundo, que para eles é o melhor mundo possível». Marx reconhece o carácter científico da economia clássica burguesa que procura a fonte da riqueza na produção: a economia clássica - bem como a de Marx - estava preocupada em saber como um excedente económico é produzido e distribuído, em elucidar o impacto da relação entre produção e distribuição sobre o crescimento económico e o conflito de classes, e em analisar as suas implicações em matérias tão sensíveis como os preços, os lucros, os salários e o emprego. Porém, a conquista do poder político pela burguesia, na França e em Inglaterra, e o seu conflito de classe com o proletariado em rápido crescimento marcaram o fim do desenvolvimento científico da economia clássica burguesa. No Posfácio da 2ª. Edição de O Capital Marx situa essa ruptura em 1830: «A partir deste momento, a luta de classes, tanto prática como teórica, adquire formas cada vez mais claramente definidas e ameaçadoras. Ao mesmo tempo, soa o dobre de finados da economia científica burguesa. Daqui para diante, não se trata já de saber se é correcto ou não este ou aquele teorema, mas sim de determinar se é útil ou nocivo para o capital, se é vantajoso ou desvantajoso, se concorda ou não com as considerações policiais. A investigação desinteressada dá lugar aos combates entre os espadachins mercenários, a busca científica imparcial cedeu o seu lugar à consciência deformada e às intenções perversas da apologética». Quando a economia clássica burguesa abandona o espírito científico, aqui definido pelo seu carácter imparcial e desinteressado, para se converter em mera apologética do mundo capitalista, Marx reclama-o para definir o status epistemológico do seu próprio empreendimento económico, ao mesmo tempo que denuncia o logro que a economia burguesa semeia e as ilusões que desperta. Como já vimos, na formulação da sua teoria económica e histórica, Marx vacila muito entre a perspectiva positivista e a crítica do positivismo, o que justifica, em grande medida, a atracção dos economistas soviéticos pelo positivismo: o combate teórico e político entre economistas soviéticos e burgueses travou-se no mesmo terreno, o do positivismo. Se confrontarmos o Curso Elementar de Economia Política de Lev Leontiev e o Curso de Economia Política de François Perroux, verificamos que ambos partilham a ideologia positivista que faz deles apologistas da ordem social existente, o socialismo no caso de Leontiev e o capitalismo no caso de Perroux. Quanto afirma o seu carácter "científico", o discurso económico mais não faz do que denunciar o seu próprio carácter ideológico: a "ciência" e todos os seus instrumentos matemáticos são usados pela economia vulgar para naturalizar e imortalizar aquilo que é histórico: «O papel apologético desempenhado por tal tipo de teorização (macroeconómica) não é, em absoluto, diminuído pela precisão aparente obtida pela utilização da Matemática. Na verdade, ocorre justamente o oposto. A linguagem e o raciocínio matemáticos podem ser especialmente traiçoeiros, porquanto permitem a inferência de conclusões logicamente impecáveis de premissas inadequadas e criam a aparência de haver um sistema coordenado e coesivo quando, na verdade, nada existe. Da mesma forma que, no caso microeconómico, a eficiência brilhante da moderna sociedade anónima disfarça a falta de sentido do objectivo a que serve, assim, no caso macroeconómico, o modelo matemático complexo serve para ocultar a irracionalidade da organização económica que supostamente ilumina» (Paul A. Baran & Paul M. Sweezy). O positivismo é a mais miserável de todas as filosofias até agora produzidas: a actualização da teoria de Marx exige a demolição do positivismo que lhe é inerente: «O marxismo-leninismo parte do facto de a sociedade, tal como a natureza, se desenvolver segundo leis determinadas. Essas leis têm um carácter objectivo, o que quer dizer que não dependem da vontade e da consciência dos homens. Mais ainda, são elas que, em última instância, determinam a consciência, a vontade e, por conseguinte, as acções dos indivíduos». O mesmo Leontiev que aqui faz da sociedade uma espécie de ordem natural sujeita a leis, logo a seguir, quando chega a hora de reclamar o fim inevitável do capitalismo e a vitória do comunismo, retoma a crítica do positivismo, mostrando que o capitalismo não é uma forma natural de organização da produção social, mas uma forma historicamente transitória. Ora, é neste terreno da síntese dinâmica entre teoria económica e história que se revela a superioridade da perspectiva de Leontiev em relação à de Perroux: «O valor é uma relação entre os homens que produzem mercadorias. Mas essa relação entre os homens reveste a forma de relação entre coisas-mercadorias. O valor de uma mercadoria parece ser uma propriedade tão natural como a cor ou o peso: diz-se, por exemplo, que um pão pesa tantas gramas e custa tantos euros. As propriedades que as mercadorias somente possuem em virtude de um certo sistema de relações sociais são no entanto consideradas como propriedades naturais. Nisto consiste o feiticismo da mercadoria, próprio da produção capitalista. Esta feiticismo oculta a essência das relações capitalistas, o seu carácter real, e dá-lhes uma aparência enganadora» (Leontiev). O primeiro capítulo de O Capital - A Mercadoria - não só é, do ponto de vista literário, «uma das coisas mais importantes de Marx» (Franz Mehring), como também constitui o eixo teórico a partir do qual a ciência económica assume a forma de crítica da economia política: o ponto de vista do observador universal que possibilita a elaboração de uma teoria económica unificada encontra-se aqui claramente definido. Quando tenta explicar porque razão os escravos e os servos da gleba nunca conseguiram derrubar o sistema que os explorava, confrontando a visibilidade da sua exploração com a invisibilidade da exploração capitalista da classe trabalhadora revelada pela teoria da mais-valia, Leontiev coloca inadvertidamente o dedo na ferida: a economia política marxista assume o ponto de vista do observador universal e os princípios do seu "método" foram esboçados por Marx na Introdução à Crítica da Economia Política (1857) e, sobretudo, na secção "O Fetichismo da Mercadoria: o seu segredo" do primeiro capítulo de O Capital. Cabe à Filosofia Económica definir esta nova figura epistemológica para a economia política, de modo a preparar o terreno para a elaboração dessa teoria unificada. Se a economia política é, por excelência, a ciência do capitalismo, como pensavam alguns marxistas, então a crítica da economia política é necessariamente a crítica da irracionalidade da organização capitalista da produção. O colapso do mundo comunista obriga a economia marxista a descobrir um novo rumo económico para responder ao desafio que lhe foi colocado por Engels: «A tarefa (da Ciência Económica) consiste em mostrar que os abusos sociais que se notam são as consequências necessárias da forma de produção existente, ao mesmo tempo que os sinais da sua iminente dissolução, e descobrir, no meio do movimento económico que se desagrega, os elementos de uma nova organização futura da produção e troca, que porá fim a esses abusos». (Inicialmente, pretendia exemplificar o argumento-chave deste texto com a crítica da teoria marginalista do valor, o ridículo da economia burguesa, mas resolvi adiar essa crítica para outra oportunidade.)


Anexo 1: Na sua obra A Acumulação do Capital, Rosa Luxemburgo analisa as crises económicas do capitalismo a partir do modelo de reprodução simples de Marx. Ela comete um erro ao não fazê-lo a partir do modelo da reprodução ampliada ou alargada de Marx, mas este erro ajuda-nos a compreender a globalização do capitalismo. (Este anexo será um novo texto.)
Anexo 2: O nosso mundo foi moldado pela filosofia da história de Hegel e de Marx e, de certo modo, a nossa tradição culmina neles. Depois deles não ocorreu absolutamente nada que mereça a nossa atenção: o fracasso da experiência comunista veio mostrar como o marxismo, em vez de enfraquecer o capitalismo, ajuda-o a resistir ao seu colapso mecânico: todas as políticas económicas introduzem alguma racionalidade lá onde ela não existe e, deste modo, remendam o capitalismo. Introduzi o ponto de vista do observador universal para definir uma figura de fuga, susceptível de descobrir o Marx oculto, aquele que não foi levado a sério, quer pelos seus adversários, quer pelos seus seguidores. O Marx oculto pode abrir novos horizontes, mas, em última análise, continua a ser uma figura hegeliana, isto é, uma figura da liberdade. Em termos simples, o Marx oculto aponta no sentido da crítica da irracionalidade do sistema capitalista. Porém, no cenário mundial, surgem potências autónomas que não são medularmente ocidentais, o que introduz muita incerteza no mundo. Será que as energias criadoras ocidentais se esgotaram de vez? Só uma análise levada a cabo do ponto de vista do observador universal pode lançar alguma luz sobre o mundo e o seu futuro. No essencial, o capitalismo não mudou e isso não augura um final risonho: o seu colapso pode ser o colapso do ocidente ou mesmo o ocaso do mundo. Infelizmente, uma catástrofe natural ou uma guerra de grandes dimensões ajudavam a clarificar a situação, impondo uma renovação populacional e social: todas as grandes transformações sociais foram desencadeadas ou aceleradas por estes factores; a morte quebra o feitiço dos delírios humanos. Se não houvesse morte, o mundo seria impossível. O mundo que foi construído depois da II Guerra Mundial não faz sentido à luz da mortalidade da condição humana. É, por isso, que não vale a pena pensar na realização de uma sociedade perfeita, porque quanto mais perfeita for a sociedade maior será a degradação mental do homem.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Filosofia Económica: Keynes e Marx

John Maynard Keynes (1883-1946)
«Foi exactamente este fulcro da Lei (dos mercados) de Say que veio a tornar-se o ponto central do ataque de Keynes contra aquilo a que preferiu chamar a doutrina "clássica". Negou que a taxa de juro pudesse ser considerada como determinada pela oferta e procura de poupanças, ou como um mecanismo por meio do qual as modificações do desejo de poupar exercessem uma influência causal, em sentido restrito, no nível de investimento. Não poderia ser assim porque a quantia poupada era função, não só da parcimónia, da repartição do rendimento e da taxa de juro, mas também do nível de rendimento global; e este não podia ser considerado independente da quantidade de investimento (e, portanto, do nível de produção e emprego). Se as duas equações que definem respectivamente as escalas de oferta e procura não fossem independentes, o modo de ver tradicional da determinação das taxas de juro seria falacioso». (Maurice Dobb)


Defino a filosofia económica como crítica sistemática das teorias económicas, tendo em vista a elaboração de uma teoria geral da economia capaz de orientar políticas económicas adequadas. Esta definição exige a elucidação do que se entende por economia, teorias económicas, teoria geral da economia e políticas económicas adequadas. Ora, para elucidar estes conceitos, quebramos o aparente consenso gerado por uma definição demasiado genérica que satisfaz as diversas perspectivas que se confrontam no terreno económico, por um lado, e no terreno político, por outro. A Filosofia é um campo de batalha ou, como disse Althusser, luta de classes na teoria. É evidente que tenho a minha própria perspectiva sobre cada uma destas noções polémicas, mas, em vez de a expor de uma forma dogmática, prefiro esboçá-la a partir das diversas polémicas e controvérsias científicas que se travaram entre economistas de orientações teóricas diferentes ao longo da história da análise económica. O presente como ciência constitui o pano de fundo de todas as lutas teóricas e políticas que ocorreram e continuam a ocorrer no terreno da análise económica: o que esteve e ainda está em debate é o próprio destino do capitalismo num mundo que parece caminhar para o abismo. Para dar início a esta tarefa de elucidação da filosofia económica, escolhi o confronto entre Keynes e Marx. Convém dizer que Keynes, quando se digna reparar em Marx, o considera como uma luminária no mundo sombrio dos heréticos, que pouco tem para nos ensinar sobre economia, mas a principal vítima deste desprezo simulado foi o próprio Keynes que morreu sem ter compreendido que a economia faz parte integrante de um todo social em devir histórico que é a sociedade capitalista. No entanto, alguns dos seus seguidores compreenderam que não basta remendar o sistema capitalista, sendo necessário operar uma mudança profunda na estrutura das relações sociais capitalistas para preparar o palco para um novo progresso nas condições materiais e culturais da humanidade. Este último grupo, ao contrário do grupo que procurou conservar as suas ilusões liberais, alinhando-se ao lado da ordem social existente e vendendo a sua competência económica a quem pagasse melhor (Paul Samuelson, por exemplo), foi inevitavelmente atraído pelo marxismo e pela sua ciência da história (Marx) e da sociedade. Joan Robinson é o exemplo mais conhecido de uma economista keynesiana que se aproximou do marxismo, tendo escrito uma obra sobre a economia marxista que merece ser lida - An Essay on Marxian Economics: «A teoria académica, trilhando o seu próprio caminho, chegou, por conseguinte, a uma posição muito semelhante à do sistema marxista. Em ambos, o desemprego desempenha papel essencial. Mostraram ambos que o capitalismo contém, em si mesmo, as sementes da sua própria decadência. No lado negativo, em oposição à teoria ortodoxa do equilíbrio, os sistemas de Keynes e Marx erguem-se lado a lado e, pela primeira vez, houve bastante terreno comum entre os economistas marxistas e académicos para tornar possível o debate». Tal como Joseph Schumpeter, Joan Robinson exprimiu a nostalgia da síntese dinâmica da história e da teoria económica operada por Karl Marx. E ela própria, em diversas das suas obras, em especial em The Accumulation of Capital - um diálogo muito produtivo com a célebre obra de Rosa Luxemburgo com o mesmo título! -, vai ao encontro dessa síntese quando reconhece a esfera restrita em que funciona o sistema keynesiano: Keynes não aborda as grandes questões que preocupavam Marx e solapou a teoria ortodoxa do equilíbrio a longo prazo sem ter nada de definido para ocupar o seu lugar, donde resulta a necessidade de usar a teoria de Marx para "suplementar a teoria de Keynes" e a deste último para "arrematar a de Marx". A esta luz a afirmação de Keynes, segundo a qual O Capital é «um manual de economia desactualizado, não só errado do ponto de vista económico, mas também sem interesse e sem aplicação no mundo moderno», só pode ser vista como um acto de má-fé: todos os elementos positivos da chamada revolução keynesiana são um retorno às concepções clássicas da economia política e, sobretudo, às concepções de Marx. Tanto a crítica da teoria das saídas e da teoria quantitativa da moeda, como a própria teoria do juro de Keynes, baseada na liquidity preference, mergulham as suas raízes na obra económica de Marx. Muitos outros economistas - como por exemplo Fan-Hung, Lawrence R. Klein e Shigeto Tsuru - tentaram operar essa síntese keynesiano-marxista, mas sacrificaram aquilo que há de mais sagrado em Marx: a sua indignação. Graças à descoberta do segredo económico da mais-valia - a apropriação privada do sobretrabalho, do trabalho não pago, Marx converteu a sua indignação em teoria económica rigorosa.


Como é evidente, como filósofo e como cientista, eu sempre-já tomei partido a favor da economia política de Marx (liberta dos seus dogmas clássicos): o meu objectivo nesta série de textos dedicados à filosofia económica será melhorar a perspectiva de Marx e mostrar a sua superioridade teórica e política em relação às perspectivas adversárias dos economistas burgueses, cujo contributo positivo para o crescimento dos nossos conhecimentos económicos não rejeito. Neste primeiro texto, vou analisar três pontos de vista dos keynesianos, confrontando-os com os respectivos pontos de vista marxistas. A teoria económica de Marx encontra-se exposta em duas obras clássicas: Teoria do Desenvolvimento Capitalista de Paul M. Sweezy e Tratado de Economia Marxista de Ernest Mandel. Robert L. Heilbroner, um economista que admiro pelo facto de se preocupar com os temas da filosofia económica, reconheceu o mérito destas duas obras da autoria de economistas marxistas que, numa era de apologia do capitalismo, ousaram pensar contra a corrente dominante no pensamento económico. Mandel optou por uma exposição histórica da economia marxista para demonstrar a sua superioridade em relação às outras escolas económicas. Um empreendimento semelhante já tinha sido realizado por Leo Huberman na sua obra História da Riqueza do Homem ou mesmo por Maurice Dobb na sua obra A Evolução do Capitalismo, mas o que os diferencia da obra de Mandel é o facto de terem iniciado a sua análise com o feudalismo, dando um destaque especial à passagem da economia feudal para a economia capitalista: Mandel é mais ambicioso, porque pretende apresentar uma síntese da história e da teoria económica desde as sociedades primitivas até aos nossos dias. Os economistas burgueses mais favoráveis ao marxismo - Oskar Lange e Wassily Leontief, por exemplo - reconhecem essa superioridade da economia marxista manifestada na sua capacidade de integrar na análise económica aquilo a que chamam os quadros institucionais, mas, em termos de teoria económica, não deixam de apontar as deficiências da economia marxista, uma das quais e a principal é a teoria do valor-trabalho: «A superioridade da Economia marxista na análise do capitalismo não se deve aos conceitos económicos usados por Marx (a teoria do valor do trabalho), mas à especificidade exacta dos dados institucionais que distinguem o capitalismo do conceito de economia de troca em geral». Esta especificidade da análise económica marxista permite-lhe - ainda segundo Oskar Lange - a formulação de uma teoria do desenvolvimento económico: a crítica de Oskar Lange atinge - antes do tempo - o coração do empreendimento de Mandel que mais parece ser uma exposição do materialismo histórico. (W. W. Rostow reconheceu a força da teoria marxista do desenvolvimento económico e a teoria da grande transformação de Karl Polanyi é tributária do marxismo.) Concordo com esta crítica dos economistas burgueses: a teoria económica marxista pode e deve ser apresentada em termos mais abstractos e formais e, se não for capaz de o fazer, não pode reivindicar a sua superioridade teórica em relação ao pensamento económico burguês. No seio do marxismo, os filósofos foram os primeiros a reconhecer essa dificuldade e contornaram-na a favor da ciência da História (o materialismo histórico). Na minha perspectiva, os marxistas foram prisioneiros da distinção estúpida entre materialismo dialéctico e materialismo histórico, distinção que não é adequada para pensar a novidade teórica do marxismo: o que quero dizer é que o marxismo sempre foi mal-pensado, a começar desde logo pelos seus fundadores - Karl Marx e Engels. Os economistas burgueses e marxistas estão condenados a procurar novos entendimentos entre si, de modo a elaborar uma teoria económica unificada, capaz de resolver os problemas que afligem a humanidade. Aquilo que seduzia os economistas burgueses - a noção marxista de auto-crítica da história da humanidade - está hoje liberta da mitologia comunista. Porém, para manter um diálogo produtivo com o marxismo, os economistas burgueses devem libertar-se da mitologia do capitalismo: o fim destas duas ilusões poderá apontar para uma era mais produtiva em termos de produção de conhecimentos económicos. O sistema teórico de Keynes - no fundo, uma teoria do rendimento, cuja repartição determina, em última análise, o nível de emprego, - rompeu com a economia neoclássica, assente na Lei dos Mercados de Say (a teoria de que a oferta cria a sua própria procura), pondo fim aos dois ramos do mecanismo auto-regulador, o da taxa moeda-salários (a célebre falácia da composição denunciada por Keynes!) e o da taxa de juro (o erro de supor aquilo que se deve provar demolido por Keynes!). No entanto, apesar deste contributo positivo para o crescimento do conhecimento económico, Keynes não conseguiu libertar-se inteiramente da atitude neoclássica que concebia a vida económica abstraindo-a do seu cenário histórico. Com Keynes a economia política burguesa passa de apologética a pragmática: o seu objectivo não era tanto justificar o capitalismo em teoria, como tinha feito a escola neoclássica, com a qual estava familiarizado, mas sobretudo salvá-lo na prática, de modo a prolongar a sua existência e a atenuar a violência das suas flutuações periódicas: em época de crise, quando há descida do rendimento e desemprego maciço, as despesas públicas - investimentos públicos - devem suprir a carência de investimentos privados. O jogo do multiplicador permite à despesa pública aumentar o rendimento nacional em maior soma do que a aplicada (teoria do deficit-spending) e, deste modo, "reiniciar a pompa da recuperação" económica. Ora, os três pontos de vista keynesianos que vamos analisar resultam deste preconceito ideológico que Keynes partilhava com os demais economistas burgueses, sobretudo com os neoclássicos: perder de vista a generalização histórica para poder encarar o capitalismo como a forma "natural" da sociedade humana e como a satisfação última das aspirações humanas.


1. Para Marx, a teoria económica faz parte da teoria do funcionamento de um determinado sistema social, mais precisamente do capitalismo: «A traços largos, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação económica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa, criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta organização social termina, assim, a pré-história da sociedade humana» (Marx). Os keynesianos não possuem uma teoria coerente da história ou, se a possuem, ocultaram-na em todas as suas obras sobre economia. Eles parecem vacilar entre duas posições: a história e a economia são mutuamente irrelevantes ou, então, a história tem algo a aprender com a economia, mas a economia não tem nada a aprender com a história. Este ódio-desprezo pela história é praticamente partilhado por todos os economistas burgueses, e compreende-se a razão disso quando vemos os keynesianos a negar a possibilidade de existência de sistemas sociais diferentes do capitalismo: ignorar as diferenças entre sistemas sociais equivale a negar uma alternativa social ao capitalismo, que os keynesianos tomam como forma inevitável e eterna de sociedade. A insensibilidade histórica de Keynes levou-o a aplicar a sua teoria das obras públicas, desenvolvida na Grã-Bretanha nos anos posteriores a 1930, à construção das pirâmides no Egipto Antigo ou à construção de catedrais na Europa Medieval. Para Keynes, as pirâmides egípcias e as catedrais medievais constituem exemplos de projectos financiados por défices orçamentais que criaram empregos e eliminaram a depressão. Esta interpretação de empreendimentos históricos destinados a salvar as almas choca profundamente a nossa sensibilidade histórica, ao mesmo tempo que descredibiliza a cientificidade do discurso económico keynesiano. Keynes escreveu a sua obra The General Theory of Employment, Interest, and Money (1936) numa conjuntura favorável à mudança de paradigmas económicos: a Grande Depressão de 1929 acentuava e expunha a crise da economia neoclássica, mostrando que o desemprego e a depressão económica, longe de serem impossíveis, como tinha defendido Marshall, são as normas a que tende a economia capitalista. Keynes chegou mesmo a "prever-temer" o colapso do capitalismo quando escreveu que considerava «o aspecto rentier do capitalismo como uma fase transitória que desaparecerá depois de cumprida a sua missão histórica», mas a sua alma conservadora levou-o a ver o drama da pobreza e da necessidade - resultante da crise de 1929 - como «uma confusão assustadora, uma confusão transitória e desnecessária», que pode ser corrigida pela inteligência keynesiana. Hicks e Kalecki tinham posições mais próximas de Marx: o epigrama de Kalecki - «a tragédia dos investimentos é que eles causam crises porque são úteis» - revela uma estreita afinidade com o epigrama de Marx - «a verdadeira barreira à produção capitalista é o próprio capital». Em vez de encarar as crises periódicas do capitalismo como momentos do seu colapso final sob o peso das suas próprias contradições, como fez Marx, Keynes preferiu encará-las como crises de inteligência, cuja solução não exige uma redefinição das relações sociais, mas uma dose liberal de sabedoria keynesiana. Marx elaborou uma espécie de tipologia dos perfis ideológicos dos economistas na sua obra Miséria da Filosofia, que nos ajuda a compreender como a ideologia funciona na realidade da ciência e na ilusão da ciência, um tema que Ronald L. Meek retomou na sua obra Economia e Ideologia. No fundo, a insensibilidade histórica dos economistas burgueses reflecte o seu próprio preconceito ideológico: eles negam a história para defender magicamente o carácter inevitável e eterno da sociedade capitalista. Não posso deixar de referir a brilhante crítica da ideologia subjacente à noção burguesa de soberania do consumidor realizada por Paul A. Baran na sua magnífica obra A Economia Política do Desenvolvimento: a superioridade de Baran enquanto economista marxista não reside apenas na sua capacidade de generalização histórica que lhe permite explicar os "movimentos históricos" que deram origem ao "processo de produção sob dadas condições" (Marx), mas também na sua competência filosófica. Estas qualidades intelectuais que distinguem um grande economista de um economista vulgar raramente encontram-se reunidas num economista burguês.


2. Embora não tenham uma teoria coerente da história, os keynesianos possuem uma espécie de psicologia social. Ou, pelo menos, o sistema teórico keynesiano implica uma psicologia social. Onde encontramos o esboço da psicologia social keynesiana? Os keynesianos analisam os modelos de comportamento característicos da sociedade capitalista como se fossem manifestações de "propensões" ou "instintos animais" congénitos. Dessas propensões congénitas destacam basicamente a propensão a consumir ou, o que é o outro lado da mesma moeda, a propensão a poupar. A psicologia keynesiana pode ser resumida em três enunciados: os capitalistas e os trabalhadores assalariados são integrados numa única categoria, a categoria do público (1); quando a renda nacional sobe o público poupa mais, mas, quando desce, poupa menos (2); e todos os homens são dotados de certa propensão a poupar que governa o modo como utilizam a sua renda (3). O que está aqui em causa não é o facto da distribuição da renda - entre outros factores - desempenhar um papel importante na determinação dos resultados da economia no seu conjunto, mas o facto dos keynesianos serem incapazes de inserir os modelos de comportamento no contexto social donde emergem, sendo levados a tratar o comportamento dos indivíduos sob o capitalismo como se fosse universal. Além de não serem universais, no sentido de serem partilhados por todos os homens, independentemente do lugar e do tempo, esses modelos de comportamento destacados pelos keynesianos variam muito em função das classes sociais no seio da própria sociedade capitalista. Assim, por exemplo, na sociedade capitalista, os detentores dos meios de produção são movidos no seu comportamento económico pelo impulso a acumular capital: o que quer dizer que os capitalistas não consomem todas as suas rendas, investindo uma parte significativa na expansão do campo das suas operações produtivas. Os trabalhadores comportam-se de modo completamente diferente. Quando podem poupar uma parte dos seus magros salários, os trabalhadores fazem-no não para construir a sua riqueza, poder e prestígio, como sucede com os capitalistas, mas para formar uma reserva contra o desemprego ou a velhice, financiar a educação dos seus filhos ou promover algum bem-estar. A psicologia da classe trabalhadora e a psicologia da classe capitalista são diferentes, reflectindo cada uma delas as posições objectivas ocupadas pelos seus membros num determinado complexo de relações sociais: os capitalistas acumulam por acumular e pelas vantagens que isso proporciona, enquanto que os trabalhadores poupam em certas épocas para poder gastar noutras. Henri Lefebvre dedicou um importante estudo à psicologia das classes sociais, uma matéria que tem importantes implicações teóricas para a teoria marxista. A este propósito, já defini noutros textos a minha posição: o aspecto mais fraco da teoria marxista foi sempre a psicologia dos interesses que Marx herdou do Iluminismo. Wilhelm Reich, Herbert Marcuse e Erich Fromm realizaram a síntese freudo-marxista para colmatar essa lacuna da teoria de Marx, mas todas as reivindicações revolucionárias exigidas por eles foram satisfeitas pelo capitalismo sem ter sido necessário mudar de sistema social: o que quer dizer que o conservadorismo dos instintos inerente à psicanálise de Freud tem a sua razão de ser na psicologia profunda do homem. O marxismo tem outras alternativas para além da psicanálise, algumas das quais já foram exploradas: a psicologia evolutiva, a etologia e a sociobiologia encontraram até agora mais eco na economia política burguesa do que na economia política marxista. O preconceito marxista contra a genética deve ser superado: a miséria da psicologia keynesiana não reside no facto de encarar o comportamento como sendo determinado por certas propensões inatas, mas em ter generalizado a motivação capitalista a toda a história humana, incluindo a sua evolução filogenética, sem conseguir explicar como o homem pré-histórico pôde "adquirir" - e incorporá-la no genoma - essa propensão a poupar num tempo de escassez. Qualquer que seja a biogramática que define a "natureza humana", ela não é indiferente à acção das estruturas das relações sociais e culturais: a análise do comportamento do homem não pode ser separada da análise do sistema social e da sua história prévia. A teoria marxista analisa o comportamento social, não a partir dos indivíduos e da sua adição mecânica, como faz a economia burguesa, mas a partir da estrutura e da forma da sociedade em que vivem: a definição marxista do homem como "conjunto das relações sociais" (Marx) rejeita, pelo menos numa primeira aproximação, qualquer teoria de uma "natureza humana" que permaneça imutável ao longo da história. Embora seja suficiente para desmistificar a teoria burguesa da natureza humana proposta pelos keynesianos, a teoria marxista ortodoxa não está livre de dificuldades: a noção de homem como portador de determinações sociais levada ao seu extremo reificador do "tipo" é incompatível com o próprio ideal de emancipação que orienta a praxis política dos marxistas. Quem é que gosta de ouvir dizer que a sua personalidade é uma instituição social? Esta teoria de Arnold Gehlen presta-se a um uso conservador, substituindo a ditadura dos genes pela ditadura das regulações sociais: um cogito sobresocializado é o resultado da tirania do capital que converte a sociedade humana numa colmeia de abelhas. Aquilo que Marx disse em relação à arte grega deve ser aplicado à teoria da natureza humana: a natureza humana não é tão maleável e moldável como pensavam os marxistas ortodoxos. O marxismo precisa de uma nova antropologia interpretada como ontologia fundamental: a noção de homem como ser-sem-abrigo que avancei noutros textos permite colmatar esta lacuna preocupante da teoria marxista. Escusado será dizer que com esta noção ontológica do homem estou a introduzir a morte no seio da teoria marxista e, a partir do momento em que confronto o marxismo com a morte, a política marxista sofre alterações substanciais: o optimismo militante de Marx é obrigado a ceder o seu lugar àquilo a que chamo o pessimismo metódico.


3. Quanto à relação entre a economia e a política, os keynesianos elaboraram uma teoria deus ex machina do Estado para elucidar a natureza desta relação: «Os keynesianos isolaram o sistema económico do seu contexto social, tratando-o como se fosse uma máquina a ser enviada à oficina, para ser consertada e reparada por um engenheiro - o Estado» (Paul M. Sweezy). Neste capítulo das relações entre a acção política e a economia, os keynesianos não partilham todos a mesma concepção: cada um deles tem a sua própria receita para o pleno emprego, padrões de vida mais elevados e prosperidade duradoura. Os programas keynesianos de melhoramento social não visam a mudança social qualitativa, a construção de uma nova sociedade, mas apenas a reforma do capitalismo levada a cabo pelo Estado. Porém, o que os programas keynesianos não explicam é como se pode melhorar o capitalismo através da redistribuição da renda a favor dos pobres sem reduzir o poder do capital e aumentar o poder dos trabalhadores. Numa sociedade como a nossa em que todas as alavancas do poder estão nas mãos dos capitalistas, qualquer tentativa de redistribuir a renda a favor dos pobres esbarra contra os interesses da classe capitalista, já para não falar do medo da pobreza das classes médias que faz delas presas fáceis do grande capital financeiro e/ou da demagogia dos candidatos a ditadores. Na sua obra económica O Imperialismo, Fase Final do Capitalismo, uma obra muito actual, Lenine (1916) coloca uma questão retórica que podemos dirigir aos keynesianos: Onde a não ser na imaginação dos reformadores sentimentais, existem trusts capazes de se interessar pelas condições das massas, em vez da conquista de colónias? Lenine é, depois de Marx e Engels, o maior teórico do marxismo: quem queira compreender a história do século XX deve ler a sua obra escrita e render-se à genialidade teórica e política de Lenine. De certo modo, a crítica que dirigiu a Kautsky e C.ª é a crítica que devemos dirigir aos keynesianos: todos os ingredientes - incluindo o pacifismo democrático dos oportunistas da social-democracia - que produziram as duas Grandes Guerras Mundiais estão presentes na actual conjuntura mundial - com a China a ocupar a posição do Japão, claro! - e, como sucedeu no passado, a Alemanha volta a estar no centro como país-chave, com a França já com as pernas abertas para não resistir à invasão alemã. Em Estado e Revolução, Lenine expõe a teoria marxista do Estado na sua articulação com a economia e a revolução, mas esta teoria permanece descritiva, devendo integrar os contributos de Gramsci e Althusser para se converter em teoria explicativa. Mais uma vez os marxistas foram obrigados a aperfeiçoar a teoria marxista para justificar a não-ocorrência da revolução no mundo desenvolvido: os resultados brilhantes justificam o esforço teórico, mas continuam a ser prisioneiros de uma teoria psicológica deficiente: «Marx não previu até que ponto o capitalismo conseguiria subornar os trabalhadores com refrigerantes e automóveis Ford» (Joan Robinson). A materialidade grosseira deste suborno capitalista revela um outro conceito de natureza humana que não permite sonhar com a realização de um reino da liberdade para o homem. O capitalismo consegue subornar materialmente não só os trabalhadores como também os economistas e outros colarinhos-brancos. Os economistas burgueses sabem isso tão bem que dispensam a elaboração de uma teoria do Estado, oscilando entre duas posições: uns - os neoliberais - encaram o Estado-governo como uma espécie de demónio, responsável por todas as dificuldades económicas, outros - os keynesianos, por exemplo - encaram o Estado-governo como um deus ex machina que pode tirar a economia de qualquer dificuldade em que se meta, mas tanto uns como os outros não conseguem permanecer durante muito tempo longe do governo: o que quer dizer que todos eles reconhecem que, numa sociedade de classes como a nossa, o poder económico e o poder político se encontram nas mãos da mesma classe dominante que os usa para garantir os seus próprios fins, a dominação política, a hegemonia (Gramsci). Keynes tratou o Estado como um deus ex machina que deve ser convocado sempre que os seus actores humanos, agindo de acordo com as regras do jogo capitalista, isto é, da economia de mercado, entram num dilema do qual aparentemente não há escapatória possível. Os economistas burgueses aprenderam, pelo menos desde a crise de 1929-32, a tratar o Estado como parte integrante do sistema económico, destacando a sua capacidade para evitar ou debelar uma depressão séria da economia e o seu papel na política do armamento e da Guerra: o intervencionismo do Estado é, de uma forma ou de outra, aceite tanto pelos neoliberais como pelos keynesianos. No entanto, há aqui uma diferença significativa entre estes dois grupos de economistas burgueses: Keynes derrubou o mito burguês de uma harmonia entre os interesses privados e os interesses públicos, o que o aproxima da teoria marxista. Afinal, o Estado corre o risco de ser usado para beneficiar interesses privados à custa do interesse público, ou seja, o "deus" pode converter-se em actor. Para o marxismo, o Estado mais não é do que um actor - o actor principal! - que garante a reprodução do sistema capitalista. John Strachey acreditava que as tendências perigosas do capitalismo das grandes empresas e do capital financeiro podiam ser compensadas na esfera pública pela democracia. (O velho princípio da força compensadora de John K. Galbraith!) É certo que a democracia ajudou a realizar algumas aspirações humanas, mas não conseguiu abolir as desigualdades sociais e as assimetrias de poder e, o que é pior, não conseguiu travar o seu agravamento. Ainda duvidam da veracidade do prognóstico de Marx de pauperização crescente da população trabalhadora mundial? Hoje o que está em causa é a própria suspensão da democracia: o público tão idolatrado pela economia burguesa está de tal modo domesticado e alienado no ciclo infernal de satisfação das suas necessidades metabólicas que perdeu todo o tipo de contacto real com o mundo e de intervenção no mundo. Depois do êxito estrondoso do suborno capitalista das classes trabalhadoras em todo o mundo desenvolvido, suborno este que privou a teoria marxista da sua base de apoio social, só nos resta uma causa política meritória: a defesa do Ocidente e da sua tradição crítica, a defesa da continuidade da vida humana neste planeta azul. Quando travavam uma luta renhida com o Bloco Soviético, os economistas burgueses diziam defender o Ocidente, mas hoje sabemos que não se pode defender o Ocidente fazendo a apologia do sistema social que o está a destruir: o capitalismo. Deste modo, o marxismo regressa à sua matriz, da qual verdadeiramente nunca saiu: a Grande Tradição do Ocidente, cujo génio filosófico e científico sempre foi capaz de encontrar uma saída que garantisse a dignidade da vida humana.


Anexo: Ainda ontem escutei um debate entre euro-deputados portugueses na SICNotícias, com o qual não estou de acordo. Nas últimas décadas, fruto do debate entre o mundo livre e o bloco soviético, houve uma sucessão de teorias que carecem de fundamento. Alguém disse que o Estado e a soberania já não fazem sentido neste mundo global. Mas esta é uma ideia estúpida: uma federação europeia nunca será similar à federação americana, não só por razões linguísticas mas também por razões culturais e históricas. Além disso, o mundo global não é um mundo sem Estados: há Estados que dominam outros Estados neste mundo global e há sobretudo um poder económico e financeiro que, sendo interno aos Estados, os procura dominar como se fosse exterior. É como pensar que podemos ter uma economia saudável sem um sector produtivo forte: alguém imaginou que doravante o homem se alimenta de informação. Mais outra ideia estúpida: o Ocidente anda a "comer" aquilo que é produzido na China e noutras economias emergentes, aquelas que estão a crescer. Meus amigos, o mundo global continua a ser capitalista e o capitalismo não rompeu com as suas leis básicas de movimento. Se alguns Estados europeus estão a enfraquecer, há outros na Europa e fora da Europa que estão a fortalecer. Perder a soberania e aliená-la noutra instância pode apontar para novas formas de escravidão. As pessoas andam demasiado estúpidas e alucinadas para pensar bem. Num mundo em que todos pensam ninguém pensa verdadeiramente, porque são todos pensados pelo capital mas por um capital verdadeiramente estranho. E há mais: a globalização da comunicação e o acesso à Internet não significam que as pessoas andem hoje mais informadas do que no passado. A maior parte dos utentes das redes sociais faz um uso muito mesquinho delas - e a informação que circula carece de qualidade. Por outro lado, não se pode dizer que todos nos deslocamos: os euro-deputados deslocam-se porque têm as viagens pagas, mas a maior parte das pessoas não se desloca. A mobilidade é mais outra ideia estúpida. Para todos os efeitos, um mundo global é humanamente pouco sedutor. E há ainda outra coisa: a democracia não resolve as assimetrias entre Estados, tal como não resolveu as desigualdades sociais. Esta é mais outra ideia estúpida herdada da campanha anti-comunista. Sim, o mundo está a mudar - o capitalismo expande-se de modo selvagem - mas não no sentido da "mudança" apontada pelos euro-deputados que esqueceram a cabeça em casa.


J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Marxismo e Geografia Humana

«Os homens fazem a sua própria história mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas antes sob as condições directamente herdadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações passadas pesa inexoravelmente sobre a consciência dos vivos. E mesmo quando parecem ocupados em transformar-se, a eles e às coisas, em criar algo de absolutamente novo, é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que se evocam respeitosamente os espíritos do passado, tomando-lhes de empréstimo os nomes, as palavras de ordem, as roupagens, para surgir no novo palco da história sob esse respeitável disfarce e com essa linguagem emprestada».  (Karl Marx)

Quando deixou de estar em voga na economia, na sociologia e na filosofia, o marxismo emergiu no seio da geografia humana, precisamente durante o período em que os profetas da desgraça anunciavam o triunfo definitivo do malvado neoliberalismo. A geografia humana foi provavelmente a última ciência social e humana a levar a sério o marxismo, mas, quando o fez, pelo menos no mundo anglófono, foi para mostrar o carácter marcadamente ideológico do discurso económico burguês: a leitura da economia feita pela geografia humana é completamente distinta da leitura feita pelos economistas burgueses. A ideia de que novas circunstâncias exigem novas teorias, aliás uma ideia bem tematizada pelo próprio Karl Marx, foi rejeitada por David Harvey, o grande geógrafo que aplicou a economia política marxista à geografia humana. Os geógrafos marxistas não negam as mudanças superficiais sofridas nas últimas décadas pelo capitalismo: Minsky (1989) cunhou o termo capitalismo administrador-de-dinheiro para designar o novo capitalismo em que a economia "simbólica" da moeda e do crédito domina a verdadeira economia de bens e serviços. Neste novo sistema, o dinheiro e as finanças foram protegidos, negociados e especulados nas bolsas em busca de lucro fácil. Apesar de não estarem vinculados à produção de bens e serviços, o dinheiro e as finanças continuaram a exercer uma influência fundamental sobre a produção. É certo que o capitalismo mudou de modo não previsto pela teoria marxista, mas estas mudanças não afectaram a própria validade da teoria marxista. Segundo Harvey, as mudanças sofridas pelo capitalismo estão confinadas à "aparência de superfície" do sistema, não podendo ser confundidas com uma alteração radical das suas "leis estruturais de movimento", tal como foram descobertas por Marx. A crítica que Callinicos fez do pós-modernismo encontra aqui um suporte geo-económico: o mundo em que vivemos continua a ser dominado pelo capitalismo e, por isso, os princípios da economia política marxista não estão a ser enfraquecidos pelas mudanças de superfície que estão a ocorrer. Mas este não é o lugar para analisar o materialismo geo-histórico de Harvey e seus discípulos: o que interessa aqui acentuar é que os novos geógrafos marxistas descobriram que os homens fazem não só as suas próprias histórias, como também as suas geografias. A célebre frase de Marx parece ter sido reformulada, como se ele tivesse privilegiado o tempo em detrimento do espaço. Ora, a geografia humana de orientação marxista mostrou - nas suas diversas áreas ou subdisciplinas: geografia económica, geografia social, geografia política, geografia cultural e geografia urbana - que O Capital explicita uma teoria das temporalidades - a que mais chamou a atenção dos filósofos, em especial a de Althusser - e das espacialidades (Lefebvre). O conceito leninista de desenvolvimento desigual, já presente na obra de Marx, permitiu-lhes elaborar uma teoria marxista da globalização que destaca a geografia da região. Há, portanto, uma geografia - uma geografia do capital-poder - delineada por Marx na sua obra fundamental - O Capital.


J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 21 de agosto de 2011

Actualidade da Obra Económica de Karl Marx

«A sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais desenvolvida e mais variada que existe. Por este facto, as categorias que exprimem as relações desta sociedade e que permitem compreender a sua estrutura, permitem ao mesmo tempo perceber a estrutura e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se edificou, de que certos vestígios, parcialmente ainda não apagados, continuam a subsistir nela, e de que certos simples signos, desenvolvendo-se nela, se enriqueceram de toda a sua significação. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. Nas espécies animais inferiores só se podem compreender os signos denunciadores de uma forma superior, quando essa forma superior já é conhecida. Da mesma forma a economia burguesa nos dá a chave da economia antiga... A religião cristã só pôde ajudar a compreender objectivamente as mitologias anteriores, depois de ter feito, até certo grau, por assim dizer virtualmente, a sua própria crítica. Igualmente a economia política burguesa só conseguiu compreender as sociedades feudais, antigas e orientais, no dia em que empreendeu a autocrítica da sociedade burguesa. Na medida em que a economia política burguesa, criando uma nova mitologia, não se identificou pura e simplesmente com o passado, a crítica que fez às sociedades anteriores, em particular à sociedade feudal contra a qual tinha ainda que lutar directamente, assemelhou-se à crítica do paganismo feita pelo cristianismo, ou à do catolicismo feita pela religião protestante». (Karl Marx)

Esta longa citação extraída da Introdução à Crítica da Economia Política (1857) desafia a imaginação hermenêutica: a ubiquidade do génio de Karl Marx revela-se em cada palavra, em cada frase, que compõem este texto, onde expõe todo um programa de investigação económica que exige uma nova filosofia. Não pretendo explicitar as linhas gerais desse programa de investigação, mas retenho dois elementos que me permitem reler Marx sem a hipoteca comunista: a frase-mestra do texto - "a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco" -, lida à luz do desenvolvimento histórico das formações sociais, não só impede a leitura da sociedade capitalista à luz de uma formação social superior inexistente, o socialismo, como também retira todos os títulos de cientificidade à economia política burguesa, acusada de ter criado uma nova mitologia. A economia política não pode ter a pretensão de ser uma ciência no sentido em que a física é uma ciência: não há nem pode haver uma ciência económica; o que há é uma ideologia económica - a mitologia da economia política burguesa - que deve ser criticada de modo a possibilitar uma leitura verdadeira da realidade económica nas suas relações dialécticas com as demais estruturas da sociedade. Com Marx o discurso económico toma a forma de uma crítica da economia política burguesa: a teoria económica de Marx é, na sua essência, uma teoria crítica da sociedade capitalista. A crítica da economia política burguesa opera em todas as obras de Karl Marx, assumindo - sobretudo nas Teorias da Mais-Valia - a forma de uma crítica da ideologia. Porém, a crítica da ideologia enquanto crítica imanente ou auto-crítica da sociedade burguesa nem sempre permanece fiel à dialéctica: criticar a sociedade burguesa em nome de uma sociedade justa inexistente é retomar a velha ideologia da crítica transcendente, dando-lhe um aspecto científico tão ao gosto do espírito positivista do século XIX. O erro do marxismo soviético foi ter combatido a ideologia burguesa no seu próprio terreno, o positivismo. É certo que este desvio positivista que desvirtua a dialéctica se encontra na própria obra de Marx, mas também encontramos lá o seu antídoto: a crítica do positivismo. Hoje, depois do colapso inesperado do mundo comunista, estamos em condições mais favoráveis para elaborar a Filosofia de Marx, desembaraçando-a do seu núcleo mitológico: o comunismo, a versão secular da Cidade de Deus. A teoria apocalíptica da História que esbocei noutros textos visa precisamente levar a cabo esse programa de desmitologização do marxismo, sem no entanto romper com o seu núcleo de verdade: a articulação entre história e política.


A crise financeira de 2008 colocou à luz do dia todas as misérias e falsidades da chamada ciência económica burguesa: a articulação que opera entre economia e matemática não é uma ligação orgânica, mas uma técnica de adaptação usada para moldar a realidade em função de uma ideologia económica movida pelo interesse do domínio. O marxismo enquanto auto-crítica da história da humanidade é um conceito que me seduz, porque permite criticar o economicismo burguês que tenta neste tempo indigente reduzir brutalmente a sociedade, a personalidade e o mundo da vida à economia de mercado. Actualizar o marxismo é desde logo lutar contra este feudalismo económico que tenta reduzir o mundo dos homens a um refeitório e a um cemitério. É sabido que o Manifesto do Partido Comunista começa por elogiar a sociedade burguesa e o seu papel histórico revolucionário para logo a seguir anunciar o seu colapso inevitável: o Manifesto é uma obra-prima da filosofia política, mas, quando olhamos para o desenvolvimento do capitalismo, a imagem que dele retemos é a de uma anaconda gigante que procura abraçar muscularmente toda a sociedade à escala global de modo a matá-la. Marx esteve sempre atento ao carácter economicista da ideologia burguesa, tendo elaborado os conceitos fundamentais que nos permitem compreendê-la nos seus desenvolvimentos mais recentes: a auto-crítica da sociedade burguesa abriu-se à auto-crítica da história da humanidade encarada como história da dominação. Depois de ter dominado a natureza, colocando a sua destruição ao serviço do lucro, a burguesia e os seus lacaios procuraram mais recentemente dominar a próprio homem: a história das ciências mais não é do que a história da dominação da natureza exterior e interior. A preferência pelo pensamento matemático e quantitativo revela o interesse que move a ideologia burguesa: a dominação. Vista a esta distância temporal, a luta que a ideologia burguesa travou outrora com a Igreja já não nos parece ser uma luta tão revolucionária quanto parecia ser aos olhos dos seus contemporâneos: o seu desejo secreto foi sempre domesticar o próprio homem, retirar-lhe a humanidade e devolvê-lo à mais brutal condição de animal. Hoje vemos à luz do dia aquilo que Engels vislumbrou nalgumas passagens da sua obra: o carácter destrutivo e necrófilo da ideologia burguesa. A crise ecológica e antropológica é a crise da própria economia capitalista: o que quer dizer que a crítica imanente já não precisa de recorrer a um ideal transcendente ou a uma ideia reguladora (no sentido de Kant) para condenar a irracionalidade da economia de mercado, bastando-lhe mostrar que lá onde ela parece triunfar antecipa a catástrofe final. Contra a claustrofobia nas suas mais diversas versões ergui uma nova figura de pensamento-mundo: a dialéctica como abertura total, mas, para o fazer, sacrifiquei a antropologia subjacente à teoria histórica de Marx. Doravante, para conservar a chama da esperança revolucionária, posso radicalizar tanto Rousseau quanto Hobbes, mas preferi avançar com o conceito de homem como ser-sem-abrigo.


Com esta noção evito fechar a história, ao mesmo tempo que desmistifico o sonho de eternidade, isto é, o pesadelo da economia política burguesa. Deste modo, com este movimento de gincana teórica, permaneço paradoxalmente fiel a Marx, mesmo quando condeno a ilusão do seu projecto de desalienação do homem. Tinha dezassete anos quando li O Capital de Karl Marx que nunca mais voltei a ler na íntegra, a não ser para confrontar algumas referências com a edição alemã. Confesso que gostava muito de me livrar da tarefa de reformular a crítica da economia política, mas, como o programa capitalista de reformas educativas era a própria destruição da educação, suspeito que terei de voltar ao estudo dos assuntos económicos. Porém, para chamar a atenção dos filósofos, vou esboçar um programa de Filosofia Económica. A exploração masturbatória dos lugares escuros de uma subjectividade atrofiada ou inexistente não é uma tarefa digna dos filósofos: a crítica da economia política permite-lhes reassumir o seu lugar natural na esfera pública, recuperando a masculinidade da Filosofia e do seu discurso. Para estudar economia, não é preciso ser um Homem-mulher, cuja infância foi vivida na despensa da casa paterna, porque o objectivo desse estudo crítico é precisamente libertar o mundo da clausura da despensa. Há duas conexões que definem o espaço de intervenção filosófica: a sua ligação com a ciência e a sua ligação com a política. Qualquer uma destas conexões - ou mesmo a sua ligação à arte - é, por natureza, masculina. Uma das áreas de estudo da filosofia económica é a própria obra económica de Marx. Convém alertar para o facto de Marx produzir alterações filosóficas radicais à medida que elabora a sua obra económica que lhe permitiu descobrir as "leis que governam o modo de produção capitalista": o que quer dizer que Marx faz filosofia fazendo a crítica da economia política. A sua enorme erudição revela-se em cada página das suas obras económicas, tanto no corpo do texto como nas notas de rodapé. Mais: Marx faz uma leitura sui generis de toda a história da filosofia ocidental que ainda não foi recuperada pelos estudos marxistas. A teoria do dinheiro, por exemplo, permite ter acesso à chave de leitura de Marx, e, para a estudar, é preciso recorrer aos Grundrisse e, sobretudo, à Contribuição para a Crítica da Economia Política, onde é apresentada a versão mais completa da teoria do dinheiro de Marx. A teoria do dinheiro de Marx é, toda ela, uma filosofia da história, sem a qual não podemos compreender o mundo em que vivemos. (As suas profundas implicações éticas ainda não foram estudadas: a teoria da moeda de Marx permite pensar o chamado niilismo europeu!) Estudar Marx é, desde logo, estudar toda a economia clássica inglesa, mas é preciso ser mais ousado e, a seguir, estudar a recepção da obra económica de Marx, tanto pelos seus discípulos como pelos seus adversários burgueses. A teoria do valor-trabalho - a teoria de Ricardo reformulada por Marx - pode servir de fio condutor: os maiores economistas burgueses reconheceram o mérito da obra económica e política de Marx, mas nunca lhe perdoaram esta teoria. Frank H. Knight, Joseph Schumpeter, Oskar Lange e Joan Robinson fizeram tudo para descartar a teoria do valor-trabalho que, como demonstrou Roman Rosdolsky, não compreenderam. Estudar esta e outras controvérsias científicas em torno dos preços e dos salários ajuda a compreender os limites da economia burguesa. (Não há nada melhor que devolver aos críticos a sua crítica: a economia burguesa é a metafísica do terror total.) A história da economia é, no fundo, a história do confronto e da polémica dos economistas burgueses com a obra económica de Marx. Este confronto só foi silenciado depois da Queda do Muro de Berlim, quando surgiram os profetas da desgraça a anunciar o triunfo definitivo do neoliberalismo. Mas, como já vimos, a crise de 2008 que se prolonga até aos dias de hoje como crise da dívida pública dos Estados soberanos, acelerando o processo de desagregação da Europa, voltou a colocar a teoria de Marx na ordem do dia: a análise marxista da sociedade capitalista é de tal modo brilhante que continua a ser válida para explicar os últimos desenvolvimentos do capitalismo tardio. Fora do marxismo não há propriamente um discurso científico sobre a sociedade capitalista: a economia burguesa bem pode recorrer aos cálculos e aos métodos quantitativos que isso não lhe empresta qualquer tipo de cientificidade ou mesmo de rigor. Demolir a pseudo-cientificidade do discurso económico burguês e confrontá-lo com a imagem do homem subjacente à sua visão estreita deve ser uma das prioridades da filosofia económica. Karl Marx não só fornece diversos modelos críticos que nos permitem desconstruir a economia burguesa, como também avança com uma teoria do conhecimento científico que revela o seu carácter ideológico: a economia política burguesa é a apologia ideológica de um sistema irracional que gera continuamente exploração, opressão, pobreza, miséria e destruição. Todos os economistas que receberam o Prémio Nobel da Economia deviam comparecer diante de um Tribunal que os condenasse à prisão perpétua: a suposta "racionalidade" dos seus modelos - ou falta dela! - é a melhor medida que podemos utilizar para denunciar a sua estreiteza de espírito. O individualismo metodológico permite-lhes planear a pobreza e o crime organizado em nome de uma falsa abstracção, a do indivíduo isolado, como se o capital não fosse realmente uma relação social. A economia burguesa que anseia pelo apagamento do outro do capital - o trabalhador - é absolutamente arbitrária: tudo aquilo que não serve os interesses de classe dos capitalistas - a subjectividade dos ladrões - é sistematicamente omitido em nome de uma cientificidade inexistente. Para estudar o carácter arbitrário e criminoso da economia burguesa, basta analisar as suas definições, a começar desde logo pela própria definição de economia.  As "dicas" dadas são suficientes para elaborar uma filosofia económica capaz de libertar a imaginação política que recusa capitular diante dos opressores. Por isso, termino com outro texto de Marx:


«Quanto mais se recua na história, mais o indivíduo - e, por conseguinte, também o indivíduo produtor - se apresenta num estado de dependência, membro de um conjunto mais vasto: este estado começa por se manifestar de forma totalmente natural na família, e na família ampliada até às dimensões da tribo; depois, nas diferentes formas de comunidades provenientes da oposição e da fusão das tribos. Só no século XVIII, na "sociedade burguesa", as diferentes formas do conjunto social passaram a apresentar-se ao indivíduo como um simples meio de realizar os seus objectivos particulares, como uma necessidade exterior. Mas a época que dá origem a este ponto de vista, o do indivíduo isolado, é precisamente aquela em que as relações sociais (revestindo deste ponto de vista um carácter geral) atingiram o seu máximo desenvolvimento. O homem é, no sentido mais literal, um animal político, não só um animal sociável, mas um animal que só em sociedade pode isolar-se. A produção realizada à margem da sociedade pelo indivíduo isolado - facto excepcional que pode muito bem acontecer a um homem civilizado transportado por um acaso para um lugar deserto, mas levando consigo já, em potência, as forças próprias da sociedade - é uma coisa tão absurda como o seria o desenvolvimento da linguagem sem a presença de indivíduos vivendo e falando em conjunto. É inútil insistirmos nisto. Nem mesmo haveria razão para abordarmos este assunto se tal banalidade, que tinha um sentido e uma razão de ser para pessoas do século XVIII, não tivesse sido reintroduzida muito a sério por Bastiat, Carey, Proudhon e outros em plena economia política moderna. Para Proudhon torna-se por certo muito cómodo fazer mitologia para dar uma explicação histórico-filosófica de uma relação económica de que ele ignora a origem histórica: a ideia desta relação teria surgido já acabada, um belo dia, na cabeça de Adão ou Prometeu, que depois a deixaram ao mundo como herança... Nada é mais fastidioso e árido do que o locus communis possesso de delírio» (Karl Marx).


J Francisco Saraiva de Sousa