quinta-feira, 11 de agosto de 2011

António Botto: Canção

António Botto (1897-1959)
«Se a generalidade dos homens acha mais belo o corpo da mulher que o do homem, é talvez porque à contemplação puramente estética desse corpo se substituiu o desejo dele. Se alguns homens anormais (por excepcionais) acham mais belo o corpo do homem, é talvez ainda porque à contemplação puramente estética desse corpo se substituiu o desejo dele. A preferência estético-sexual do homem pela beleza feminina é explicada pelo génio da espécie: pela previsão da natureza. Só do abraço da mulher e do homem nascerão filhos do homem. A preferência estético-sexual de alguns homens pela beleza masculina ainda não foi explicada; apesar das várias hipóteses. Mas é facto existir, e ser tão natural a esses homens como à generalidade deles a preferência oposta. Em uns e em outros, o desejo sexual perturba a sensualidade puramente estética. Uns e outros são homens. Nem duns nem de outros se pode esperar um juízo imparcial de esteta. (...) Na base da Arte magnífica de António Botto está toda a sua fatalidade de homem. (...) Tanto mais que falo dum Poeta que ousou ser como é (isto é, homossexual): O que sempre louvo num verdadeiro Poeta - porque o verdadeiro Poeta eleva tudo em que fala; e de resto, é sempre o que é quer o queira quer não». (José Régio)

Vieram dizer-me
Que te condóis
Da vida que vou levando
Desde o nosso rompimento.

Não tenhas pena,
- Sou feliz a cada hora,
E mais, a cada momento.

Acabei. Nada me fica
na lembrança
Para que eu no tumulto insondável do amor
me possa prender
Ao prazer de lembrar seja o que fôr.

Cuidavas que eu acordaria,
Doido, à procura de ti,
Pelos clubes onde vive
A tua inconfundível,
Latente, neurastenia?

E afinal, -
Tão diferente, tão outro,
me encontras, hoje, abraçado
Ao desconforto e à ruína
Duma ilusão
Que apenas deu luz, - doirando
O nosso primeiro dia.

Agora, -
Entretenho-me com essas
Que a trôco dum vil amplexo
Dão-nos o mundo num beijo...

De quantas misérias, quantas?,
Foi feito o nosso desejo!

Esquece-me. Quero andar
Ao sabor do meu instinto
Cultivado na desgraça.

O amor -
Deixa um travo, mas passa.

Não tenhas pena.
Do alto do meu aprumo,
Desafio a tua verve...

Para morrer, -
Qualquer logar,
Qualquer corpo,
E qualquer bôca me serve! (António Botto)


Não conheço a fundo a poesia de António Botto, mas sei que ela nos fala do lugar da homossexualidade masculina. José Régio e João Gaspar Simões dedicaram-lhe dois estudos interessantes, tendo publicado alguns dos seus poemas na revista Presença. O estudo de José Régio, do qual saquei a citação em epígrafe, é deveras surpreendente e importante, mais pelo seu contributo à psicologia das masculinidades do que pelo seu contributo propriamente estético. José Régio aborda as atracções sexuais masculinas em termos muito actuais: o seu conceito de preferência estético-sexual corresponde àquilo a que chamamos hoje orientação sexual. Em termos estritamente estéticos, José Régio parece exigir um juízo estético imparcial que esteja para além e acima da atracção sexual pela beleza feminina ou pela beleza masculina. Mas a sinceridade de António Botto cativou-o: o poeta ousou dizer o nome do seu amor, sendo na sua obra o que foi na sua vida: um homem homossexual que cantou a beleza do corpo masculino jovem. Hoje, na biociência do comportamento, é usual dizer que as sexualidades de género masculino são mais rígidas do que as sexualidades de género feminino. Os estudos confirmam esta diferença sexual, mas as anomalias que começam a ser observadas nos estudos de campo apontam noutra direcção, como se hoje compreendêssemos melhor a homossexualidade masculina do que a própria heterossexualidade masculina. A homossexualidade masculina, pelo menos o tipo mais efeminado, é mais rígida do que a heterossexualidade masculina: os homens heterossexuais são mais fluídos nas suas experiências sexuais do que os homens homossexuais. Noutros textos, tentei tematizar de forma provocante esta diferença inter-masculina dizendo que os homens portugueses tendem a ser "paneleiros" ou, como preferia chamá-los Natália Correia, "mariquitas", independentemente da sua orientação sexual. Esta hipótese pode ser generalizada com segurança a todos os homens latinos: a busca de suporte empírico para esta hipótese é fundamental para a clarificação futura dos mecanismos genéticos e neuro-hormonais responsáveis pela orientação sexual. O facto da atracção sexual do homem pela beleza feminina ser explicada pelo génio da espécie rouba-lhe logo à partida a sua potencial carga erótica, o que, no cenário da vida contemporânea, pode significar que a libertação das mulheres está a afastar os homens delas, levando-os a explorar novas fontes de prazer sexual. (A libertação das mulheres poderá ter libertado os homens da heterossexualidade normativa que castrava a sua expressão sexual omnívora!) Os fenómenos de dissociação sexual-afectiva começam a ser muito frequentes, exibindo uma grande variedade de combinações exóticas. Fiquei com a impressão - que ainda não sei explicar - de que José Régio considera que toda a exaltação masculina da beleza feminina é pura hipocrisia. De facto, a análise de conteúdo dos léxicos eróticos masculinos revela que o corpo que os homens mais admiram é o próprio corpo masculino, o seu ou o dos outros, e das estruturas desse corpo a mais admirada é o pénis: o homem (sexo masculino) é o ser que, por natureza, está apaixonado pelo seu próprio pénis (De Sousa, 2006). Há nesta apreciação um interesse claramente homossexual: o narcisismo psico-sexual converte-se em homossexualidade quando o homem deixa de manifestar interesse sexual no sexo oposto. Forjei o termo heterossexuais exóticos para designar esses homens heterossexuais - auto-intitulados "bicuriosos" - que fazem sexo com outros homens: quanto maior o número de atributos hipermasculinos - corporais e comportamentais - revelados pelos homens, maior será a sua propensão para variar e diversificar a sua "ementa sexual". (O culto de corpos musculados é já uma indicação de claro interesse homossexual. Que o digam os brasileiros que povoam os ginásios portugueses! Os homens gay têm razão quando chamam "barbies" aos homens musculosos, porque eles - tal como as mulheres - se comportam como se fossem "mercadorias-fetiches" muito desejadas no mercado sexual que valoriza os seus atributos-maquilhados-artificiais. Na hora da verdade, em vez de exibir o instrumento masculino, exibem as nádegas, para frustração total dos seus parceiros sexuais. Como estou divertido, vou contar uma pequena "história-caso": Ontem, no decorrer da minha ciberpesquisa, conheci um homem gay dos Açores. Ele exibia o seu físico e, como simpatizou comigo, pedi-lhe para mostrar a "língua marota". Puro veneno de pesquisador! Ele mostrou e acabou também por mostrar a cara: o olhar confirmou a minha suspeita. O homem-músculo era mais passivo do que activo, ou, como dizem, versátil. Mas bastou usar um perfil do tipo "homem-activo" para a sua versatilidade se converter em pura passividade, de resto já visível na exibição das nádegas. Curiosamente, este homem gay passivo tinha um corpo masculino, exibindo pilosidade corporal abundante e barba espessa bem amparada, para já não falar das mãos e das dimensões do pénis: o que sugere a existência de abundante testosterona livre durante o desenvolvimento pré-natal que masculinizou as estruturas corporais, sem ter acesso - como é evidente! - ao cérebro que permaneceu feminino. Suspeito que, se fosse vivo, Kees van Dongen pintaria hoje, preferencialmente, a artificialidade de mulher da vida das barbies masculinas! Pelo menos, já pintei dois quadros onde mostro esse mundo!) A hipótese que formulei - e para a qual já tenho evidência empírica disponível - tende a destacar o carácter masculino da sexualidade e do erotismo, o que já foi confirmado por centenas de estudos experimentais e estatísticos. Mas, tal como Abel Salazar, tendo a achar que há "algo" na mulher latina que não atrai os homens, como se elas funcionassem como um tampão que se coloca entre eles e a sua própria masculinidade. Serão as mulheres latinas castradoras da masculinidade dos "seus" próprios homens? Para todos os efeitos, a exaltação latina da beleza feminina é hipocrisia!


Anexo: Houve um tempo em que a homossexualidade masculina era associada a um nível elevado de inteligência e de cultura. Mas, neste nosso tempo indigente e decadente, os homens homossexuais desistiram do cultivo da sua mente, preferindo deambular pelos urinóis, pelas estações de serviço, pelas dunas das praias periféricas e por outros lugares escuros, onde se entregam ao sexo ocasional. Os homens homossexuais já não são agentes culturais, mas vagabundos sexuais que desconhecem a obra dos seus antepassados com a mesma orientação sexual. O capitalismo tardio embruteceu de tal modo a sociedade e os seus membros que liquidou não só a imaginação que permite sonhar novos mundos para o homem, mas também a memória que zela pela lembrança do sofrimento passado. Um sistema social vagabundo como o capitalismo - governado por essas mulheres travestidas de homens que são os economistas! - gera os seus próprios vagabundos que o deixam reproduzir-se em paz, como se fossem zombies desmemorizados e destituídos de imaginação. O capitalismo só conhece um tempo: o tempo da gratificação imediata que permite aos seus zombies viver o presente como uma sucessão contínua de momentos de gratificação. A busca do lucro a curto prazo leva o capitalismo a esquecer o passado e a não ser capaz de antecipar o futuro: o capitalismo é auto-destrutivo. E, desde que entraram na via do consumo, os portugueses ficaram mais burros do que já eram nos tempos sombrios de Salazar. As "bichas" hetero, homo e bi - empenhadas na busca frenética de novos parceiros sexuais - já não lêem, tendo por isso perdido o contacto com a poesia gay produzida em Portugal, tanto por António Botto como pelas músicas de António Variações. Os "mariquitas" portugueses tornaram-se inúteis e, caso Portugal venha a ser invadido, eles, em vez de pegar em armas para combater o inimigo, irão oferecer-lhe o buraco enorme que é Portugal. Portugal é uma imensa bunda que perdeu a sensibilidade! Oh, que bunda feia, hirsutista, insensível e insaciável, onde tudo cabe sem a saciar!

J Francisco Saraiva de Sousa

7 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O facto do homem português ser naturalmente "mariquinhas" faz dele um ser indigno de confiança de de gestos autênticos: pelo menos, procuro essa conexão. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Nunca acreditei na heterossexualidade do Toni. Adorno tinha alguma razão quando escreveu que homossexualidade (latina, acrescento eu) é totalitarismo. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vou acabar o post anterior quando estiver menos calor. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hmmmm..., apetecia-me continuar a comentar lateralmente a poesia de António Botto, porque estou com a veia artística sublimada em ironia extrema. Mas tenho de concluir o post anterior, profundamente filosófico.

Bem, mas hei-de comentar a boneca de Botto! Tadinho era tão bichinha! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não resisto: Botto, Frenando Pessoa e Sá-Carneiro ficavam aos pulos quando ouviam a palavra "marinheiros". Suspeito que, naquela altura, as imediações da marinha eram muito frequentadas pelos homens gay. Pelo menos, isso acontecia nos USA.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Como é que ainda ninguém suspeitou da voz do Toni, o nosso ditador! Ele era uma "senhora": o meu feeling nunca me engana.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, e há outro poema onde Botto defende a mulher da má-vida! Claro, quem era essa "mulher"? O homem gay que sempre sentiu uma fixação pela vulgaridade da prostituta! Até os cowboys americanos eram meio-maricões!