domingo, 21 de agosto de 2011

Actualidade da Obra Económica de Karl Marx

«A sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais desenvolvida e mais variada que existe. Por este facto, as categorias que exprimem as relações desta sociedade e que permitem compreender a sua estrutura, permitem ao mesmo tempo perceber a estrutura e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se edificou, de que certos vestígios, parcialmente ainda não apagados, continuam a subsistir nela, e de que certos simples signos, desenvolvendo-se nela, se enriqueceram de toda a sua significação. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. Nas espécies animais inferiores só se podem compreender os signos denunciadores de uma forma superior, quando essa forma superior já é conhecida. Da mesma forma a economia burguesa nos dá a chave da economia antiga... A religião cristã só pôde ajudar a compreender objectivamente as mitologias anteriores, depois de ter feito, até certo grau, por assim dizer virtualmente, a sua própria crítica. Igualmente a economia política burguesa só conseguiu compreender as sociedades feudais, antigas e orientais, no dia em que empreendeu a autocrítica da sociedade burguesa. Na medida em que a economia política burguesa, criando uma nova mitologia, não se identificou pura e simplesmente com o passado, a crítica que fez às sociedades anteriores, em particular à sociedade feudal contra a qual tinha ainda que lutar directamente, assemelhou-se à crítica do paganismo feita pelo cristianismo, ou à do catolicismo feita pela religião protestante». (Karl Marx)

Esta longa citação extraída da Introdução à Crítica da Economia Política (1857) desafia a imaginação hermenêutica: a ubiquidade do génio de Karl Marx revela-se em cada palavra, em cada frase, que compõem este texto, onde expõe todo um programa de investigação económica que exige uma nova filosofia. Não pretendo explicitar as linhas gerais desse programa de investigação, mas retenho dois elementos que me permitem reler Marx sem a hipoteca comunista: a frase-mestra do texto - "a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco" -, lida à luz do desenvolvimento histórico das formações sociais, não só impede a leitura da sociedade capitalista à luz de uma formação social superior inexistente, o socialismo, como também retira todos os títulos de cientificidade à economia política burguesa, acusada de ter criado uma nova mitologia. A economia política não pode ter a pretensão de ser uma ciência no sentido em que a física é uma ciência: não há nem pode haver uma ciência económica; o que há é uma ideologia económica - a mitologia da economia política burguesa - que deve ser criticada de modo a possibilitar uma leitura verdadeira da realidade económica nas suas relações dialécticas com as demais estruturas da sociedade. Com Marx o discurso económico toma a forma de uma crítica da economia política burguesa: a teoria económica de Marx é, na sua essência, uma teoria crítica da sociedade capitalista. A crítica da economia política burguesa opera em todas as obras de Karl Marx, assumindo - sobretudo nas Teorias da Mais-Valia - a forma de uma crítica da ideologia. Porém, a crítica da ideologia enquanto crítica imanente ou auto-crítica da sociedade burguesa nem sempre permanece fiel à dialéctica: criticar a sociedade burguesa em nome de uma sociedade justa inexistente é retomar a velha ideologia da crítica transcendente, dando-lhe um aspecto científico tão ao gosto do espírito positivista do século XIX. O erro do marxismo soviético foi ter combatido a ideologia burguesa no seu próprio terreno, o positivismo. É certo que este desvio positivista que desvirtua a dialéctica se encontra na própria obra de Marx, mas também encontramos lá o seu antídoto: a crítica do positivismo. Hoje, depois do colapso inesperado do mundo comunista, estamos em condições mais favoráveis para elaborar a Filosofia de Marx, desembaraçando-a do seu núcleo mitológico: o comunismo, a versão secular da Cidade de Deus. A teoria apocalíptica da História que esbocei noutros textos visa precisamente levar a cabo esse programa de desmitologização do marxismo, sem no entanto romper com o seu núcleo de verdade: a articulação entre história e política.


A crise financeira de 2008 colocou à luz do dia todas as misérias e falsidades da chamada ciência económica burguesa: a articulação que opera entre economia e matemática não é uma ligação orgânica, mas uma técnica de adaptação usada para moldar a realidade em função de uma ideologia económica movida pelo interesse do domínio. O marxismo enquanto auto-crítica da história da humanidade é um conceito que me seduz, porque permite criticar o economicismo burguês que tenta neste tempo indigente reduzir brutalmente a sociedade, a personalidade e o mundo da vida à economia de mercado. Actualizar o marxismo é desde logo lutar contra este feudalismo económico que tenta reduzir o mundo dos homens a um refeitório e a um cemitério. É sabido que o Manifesto do Partido Comunista começa por elogiar a sociedade burguesa e o seu papel histórico revolucionário para logo a seguir anunciar o seu colapso inevitável: o Manifesto é uma obra-prima da filosofia política, mas, quando olhamos para o desenvolvimento do capitalismo, a imagem que dele retemos é a de uma anaconda gigante que procura abraçar muscularmente toda a sociedade à escala global de modo a matá-la. Marx esteve sempre atento ao carácter economicista da ideologia burguesa, tendo elaborado os conceitos fundamentais que nos permitem compreendê-la nos seus desenvolvimentos mais recentes: a auto-crítica da sociedade burguesa abriu-se à auto-crítica da história da humanidade encarada como história da dominação. Depois de ter dominado a natureza, colocando a sua destruição ao serviço do lucro, a burguesia e os seus lacaios procuraram mais recentemente dominar a próprio homem: a história das ciências mais não é do que a história da dominação da natureza exterior e interior. A preferência pelo pensamento matemático e quantitativo revela o interesse que move a ideologia burguesa: a dominação. Vista a esta distância temporal, a luta que a ideologia burguesa travou outrora com a Igreja já não nos parece ser uma luta tão revolucionária quanto parecia ser aos olhos dos seus contemporâneos: o seu desejo secreto foi sempre domesticar o próprio homem, retirar-lhe a humanidade e devolvê-lo à mais brutal condição de animal. Hoje vemos à luz do dia aquilo que Engels vislumbrou nalgumas passagens da sua obra: o carácter destrutivo e necrófilo da ideologia burguesa. A crise ecológica e antropológica é a crise da própria economia capitalista: o que quer dizer que a crítica imanente já não precisa de recorrer a um ideal transcendente ou a uma ideia reguladora (no sentido de Kant) para condenar a irracionalidade da economia de mercado, bastando-lhe mostrar que lá onde ela parece triunfar antecipa a catástrofe final. Contra a claustrofobia nas suas mais diversas versões ergui uma nova figura de pensamento-mundo: a dialéctica como abertura total, mas, para o fazer, sacrifiquei a antropologia subjacente à teoria histórica de Marx. Doravante, para conservar a chama da esperança revolucionária, posso radicalizar tanto Rousseau quanto Hobbes, mas preferi avançar com o conceito de homem como ser-sem-abrigo.


Com esta noção evito fechar a história, ao mesmo tempo que desmistifico o sonho de eternidade, isto é, o pesadelo da economia política burguesa. Deste modo, com este movimento de gincana teórica, permaneço paradoxalmente fiel a Marx, mesmo quando condeno a ilusão do seu projecto de desalienação do homem. Tinha dezassete anos quando li O Capital de Karl Marx que nunca mais voltei a ler na íntegra, a não ser para confrontar algumas referências com a edição alemã. Confesso que gostava muito de me livrar da tarefa de reformular a crítica da economia política, mas, como o programa capitalista de reformas educativas era a própria destruição da educação, suspeito que terei de voltar ao estudo dos assuntos económicos. Porém, para chamar a atenção dos filósofos, vou esboçar um programa de Filosofia Económica. A exploração masturbatória dos lugares escuros de uma subjectividade atrofiada ou inexistente não é uma tarefa digna dos filósofos: a crítica da economia política permite-lhes reassumir o seu lugar natural na esfera pública, recuperando a masculinidade da Filosofia e do seu discurso. Para estudar economia, não é preciso ser um Homem-mulher, cuja infância foi vivida na despensa da casa paterna, porque o objectivo desse estudo crítico é precisamente libertar o mundo da clausura da despensa. Há duas conexões que definem o espaço de intervenção filosófica: a sua ligação com a ciência e a sua ligação com a política. Qualquer uma destas conexões - ou mesmo a sua ligação à arte - é, por natureza, masculina. Uma das áreas de estudo da filosofia económica é a própria obra económica de Marx. Convém alertar para o facto de Marx produzir alterações filosóficas radicais à medida que elabora a sua obra económica que lhe permitiu descobrir as "leis que governam o modo de produção capitalista": o que quer dizer que Marx faz filosofia fazendo a crítica da economia política. A sua enorme erudição revela-se em cada página das suas obras económicas, tanto no corpo do texto como nas notas de rodapé. Mais: Marx faz uma leitura sui generis de toda a história da filosofia ocidental que ainda não foi recuperada pelos estudos marxistas. A teoria do dinheiro, por exemplo, permite ter acesso à chave de leitura de Marx, e, para a estudar, é preciso recorrer aos Grundrisse e, sobretudo, à Contribuição para a Crítica da Economia Política, onde é apresentada a versão mais completa da teoria do dinheiro de Marx. A teoria do dinheiro de Marx é, toda ela, uma filosofia da história, sem a qual não podemos compreender o mundo em que vivemos. (As suas profundas implicações éticas ainda não foram estudadas: a teoria da moeda de Marx permite pensar o chamado niilismo europeu!) Estudar Marx é, desde logo, estudar toda a economia clássica inglesa, mas é preciso ser mais ousado e, a seguir, estudar a recepção da obra económica de Marx, tanto pelos seus discípulos como pelos seus adversários burgueses. A teoria do valor-trabalho - a teoria de Ricardo reformulada por Marx - pode servir de fio condutor: os maiores economistas burgueses reconheceram o mérito da obra económica e política de Marx, mas nunca lhe perdoaram esta teoria. Frank H. Knight, Joseph Schumpeter, Oskar Lange e Joan Robinson fizeram tudo para descartar a teoria do valor-trabalho que, como demonstrou Roman Rosdolsky, não compreenderam. Estudar esta e outras controvérsias científicas em torno dos preços e dos salários ajuda a compreender os limites da economia burguesa. (Não há nada melhor que devolver aos críticos a sua crítica: a economia burguesa é a metafísica do terror total.) A história da economia é, no fundo, a história do confronto e da polémica dos economistas burgueses com a obra económica de Marx. Este confronto só foi silenciado depois da Queda do Muro de Berlim, quando surgiram os profetas da desgraça a anunciar o triunfo definitivo do neoliberalismo. Mas, como já vimos, a crise de 2008 que se prolonga até aos dias de hoje como crise da dívida pública dos Estados soberanos, acelerando o processo de desagregação da Europa, voltou a colocar a teoria de Marx na ordem do dia: a análise marxista da sociedade capitalista é de tal modo brilhante que continua a ser válida para explicar os últimos desenvolvimentos do capitalismo tardio. Fora do marxismo não há propriamente um discurso científico sobre a sociedade capitalista: a economia burguesa bem pode recorrer aos cálculos e aos métodos quantitativos que isso não lhe empresta qualquer tipo de cientificidade ou mesmo de rigor. Demolir a pseudo-cientificidade do discurso económico burguês e confrontá-lo com a imagem do homem subjacente à sua visão estreita deve ser uma das prioridades da filosofia económica. Karl Marx não só fornece diversos modelos críticos que nos permitem desconstruir a economia burguesa, como também avança com uma teoria do conhecimento científico que revela o seu carácter ideológico: a economia política burguesa é a apologia ideológica de um sistema irracional que gera continuamente exploração, opressão, pobreza, miséria e destruição. Todos os economistas que receberam o Prémio Nobel da Economia deviam comparecer diante de um Tribunal que os condenasse à prisão perpétua: a suposta "racionalidade" dos seus modelos - ou falta dela! - é a melhor medida que podemos utilizar para denunciar a sua estreiteza de espírito. O individualismo metodológico permite-lhes planear a pobreza e o crime organizado em nome de uma falsa abstracção, a do indivíduo isolado, como se o capital não fosse realmente uma relação social. A economia burguesa que anseia pelo apagamento do outro do capital - o trabalhador - é absolutamente arbitrária: tudo aquilo que não serve os interesses de classe dos capitalistas - a subjectividade dos ladrões - é sistematicamente omitido em nome de uma cientificidade inexistente. Para estudar o carácter arbitrário e criminoso da economia burguesa, basta analisar as suas definições, a começar desde logo pela própria definição de economia.  As "dicas" dadas são suficientes para elaborar uma filosofia económica capaz de libertar a imaginação política que recusa capitular diante dos opressores. Por isso, termino com outro texto de Marx:


«Quanto mais se recua na história, mais o indivíduo - e, por conseguinte, também o indivíduo produtor - se apresenta num estado de dependência, membro de um conjunto mais vasto: este estado começa por se manifestar de forma totalmente natural na família, e na família ampliada até às dimensões da tribo; depois, nas diferentes formas de comunidades provenientes da oposição e da fusão das tribos. Só no século XVIII, na "sociedade burguesa", as diferentes formas do conjunto social passaram a apresentar-se ao indivíduo como um simples meio de realizar os seus objectivos particulares, como uma necessidade exterior. Mas a época que dá origem a este ponto de vista, o do indivíduo isolado, é precisamente aquela em que as relações sociais (revestindo deste ponto de vista um carácter geral) atingiram o seu máximo desenvolvimento. O homem é, no sentido mais literal, um animal político, não só um animal sociável, mas um animal que só em sociedade pode isolar-se. A produção realizada à margem da sociedade pelo indivíduo isolado - facto excepcional que pode muito bem acontecer a um homem civilizado transportado por um acaso para um lugar deserto, mas levando consigo já, em potência, as forças próprias da sociedade - é uma coisa tão absurda como o seria o desenvolvimento da linguagem sem a presença de indivíduos vivendo e falando em conjunto. É inútil insistirmos nisto. Nem mesmo haveria razão para abordarmos este assunto se tal banalidade, que tinha um sentido e uma razão de ser para pessoas do século XVIII, não tivesse sido reintroduzida muito a sério por Bastiat, Carey, Proudhon e outros em plena economia política moderna. Para Proudhon torna-se por certo muito cómodo fazer mitologia para dar uma explicação histórico-filosófica de uma relação económica de que ele ignora a origem histórica: a ideia desta relação teria surgido já acabada, um belo dia, na cabeça de Adão ou Prometeu, que depois a deixaram ao mundo como herança... Nada é mais fastidioso e árido do que o locus communis possesso de delírio» (Karl Marx).


J Francisco Saraiva de Sousa 

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, fiz alguns acrescentos que afinam noções fundamentais da Filosofia de Marx.

Unknown disse...

realizações do comunismo pelo mundo
1)estupro de 5.000.000 de mulheres pelos comunas(comunistas)
2)assassinato de 100.000.000 de pessoas pelos comunistas
só isso é o suficiente para mostrar que comunismo não presta