terça-feira, 23 de agosto de 2011

Filosofia Económica: Keynes e Marx

John Maynard Keynes (1883-1946)
«Foi exactamente este fulcro da Lei (dos mercados) de Say que veio a tornar-se o ponto central do ataque de Keynes contra aquilo a que preferiu chamar a doutrina "clássica". Negou que a taxa de juro pudesse ser considerada como determinada pela oferta e procura de poupanças, ou como um mecanismo por meio do qual as modificações do desejo de poupar exercessem uma influência causal, em sentido restrito, no nível de investimento. Não poderia ser assim porque a quantia poupada era função, não só da parcimónia, da repartição do rendimento e da taxa de juro, mas também do nível de rendimento global; e este não podia ser considerado independente da quantidade de investimento (e, portanto, do nível de produção e emprego). Se as duas equações que definem respectivamente as escalas de oferta e procura não fossem independentes, o modo de ver tradicional da determinação das taxas de juro seria falacioso». (Maurice Dobb)


Defino a filosofia económica como crítica sistemática das teorias económicas, tendo em vista a elaboração de uma teoria geral da economia capaz de orientar políticas económicas adequadas. Esta definição exige a elucidação do que se entende por economia, teorias económicas, teoria geral da economia e políticas económicas adequadas. Ora, para elucidar estes conceitos, quebramos o aparente consenso gerado por uma definição demasiado genérica que satisfaz as diversas perspectivas que se confrontam no terreno económico, por um lado, e no terreno político, por outro. A Filosofia é um campo de batalha ou, como disse Althusser, luta de classes na teoria. É evidente que tenho a minha própria perspectiva sobre cada uma destas noções polémicas, mas, em vez de a expor de uma forma dogmática, prefiro esboçá-la a partir das diversas polémicas e controvérsias científicas que se travaram entre economistas de orientações teóricas diferentes ao longo da história da análise económica. O presente como ciência constitui o pano de fundo de todas as lutas teóricas e políticas que ocorreram e continuam a ocorrer no terreno da análise económica: o que esteve e ainda está em debate é o próprio destino do capitalismo num mundo que parece caminhar para o abismo. Para dar início a esta tarefa de elucidação da filosofia económica, escolhi o confronto entre Keynes e Marx. Convém dizer que Keynes, quando se digna reparar em Marx, o considera como uma luminária no mundo sombrio dos heréticos, que pouco tem para nos ensinar sobre economia, mas a principal vítima deste desprezo simulado foi o próprio Keynes que morreu sem ter compreendido que a economia faz parte integrante de um todo social em devir histórico que é a sociedade capitalista. No entanto, alguns dos seus seguidores compreenderam que não basta remendar o sistema capitalista, sendo necessário operar uma mudança profunda na estrutura das relações sociais capitalistas para preparar o palco para um novo progresso nas condições materiais e culturais da humanidade. Este último grupo, ao contrário do grupo que procurou conservar as suas ilusões liberais, alinhando-se ao lado da ordem social existente e vendendo a sua competência económica a quem pagasse melhor (Paul Samuelson, por exemplo), foi inevitavelmente atraído pelo marxismo e pela sua ciência da história (Marx) e da sociedade. Joan Robinson é o exemplo mais conhecido de uma economista keynesiana que se aproximou do marxismo, tendo escrito uma obra sobre a economia marxista que merece ser lida - An Essay on Marxian Economics: «A teoria académica, trilhando o seu próprio caminho, chegou, por conseguinte, a uma posição muito semelhante à do sistema marxista. Em ambos, o desemprego desempenha papel essencial. Mostraram ambos que o capitalismo contém, em si mesmo, as sementes da sua própria decadência. No lado negativo, em oposição à teoria ortodoxa do equilíbrio, os sistemas de Keynes e Marx erguem-se lado a lado e, pela primeira vez, houve bastante terreno comum entre os economistas marxistas e académicos para tornar possível o debate». Tal como Joseph Schumpeter, Joan Robinson exprimiu a nostalgia da síntese dinâmica da história e da teoria económica operada por Karl Marx. E ela própria, em diversas das suas obras, em especial em The Accumulation of Capital - um diálogo muito produtivo com a célebre obra de Rosa Luxemburgo com o mesmo título! -, vai ao encontro dessa síntese quando reconhece a esfera restrita em que funciona o sistema keynesiano: Keynes não aborda as grandes questões que preocupavam Marx e solapou a teoria ortodoxa do equilíbrio a longo prazo sem ter nada de definido para ocupar o seu lugar, donde resulta a necessidade de usar a teoria de Marx para "suplementar a teoria de Keynes" e a deste último para "arrematar a de Marx". A esta luz a afirmação de Keynes, segundo a qual O Capital é «um manual de economia desactualizado, não só errado do ponto de vista económico, mas também sem interesse e sem aplicação no mundo moderno», só pode ser vista como um acto de má-fé: todos os elementos positivos da chamada revolução keynesiana são um retorno às concepções clássicas da economia política e, sobretudo, às concepções de Marx. Tanto a crítica da teoria das saídas e da teoria quantitativa da moeda, como a própria teoria do juro de Keynes, baseada na liquidity preference, mergulham as suas raízes na obra económica de Marx. Muitos outros economistas - como por exemplo Fan-Hung, Lawrence R. Klein e Shigeto Tsuru - tentaram operar essa síntese keynesiano-marxista, mas sacrificaram aquilo que há de mais sagrado em Marx: a sua indignação. Graças à descoberta do segredo económico da mais-valia - a apropriação privada do sobretrabalho, do trabalho não pago, Marx converteu a sua indignação em teoria económica rigorosa.


Como é evidente, como filósofo e como cientista, eu sempre-já tomei partido a favor da economia política de Marx (liberta dos seus dogmas clássicos): o meu objectivo nesta série de textos dedicados à filosofia económica será melhorar a perspectiva de Marx e mostrar a sua superioridade teórica e política em relação às perspectivas adversárias dos economistas burgueses, cujo contributo positivo para o crescimento dos nossos conhecimentos económicos não rejeito. Neste primeiro texto, vou analisar três pontos de vista dos keynesianos, confrontando-os com os respectivos pontos de vista marxistas. A teoria económica de Marx encontra-se exposta em duas obras clássicas: Teoria do Desenvolvimento Capitalista de Paul M. Sweezy e Tratado de Economia Marxista de Ernest Mandel. Robert L. Heilbroner, um economista que admiro pelo facto de se preocupar com os temas da filosofia económica, reconheceu o mérito destas duas obras da autoria de economistas marxistas que, numa era de apologia do capitalismo, ousaram pensar contra a corrente dominante no pensamento económico. Mandel optou por uma exposição histórica da economia marxista para demonstrar a sua superioridade em relação às outras escolas económicas. Um empreendimento semelhante já tinha sido realizado por Leo Huberman na sua obra História da Riqueza do Homem ou mesmo por Maurice Dobb na sua obra A Evolução do Capitalismo, mas o que os diferencia da obra de Mandel é o facto de terem iniciado a sua análise com o feudalismo, dando um destaque especial à passagem da economia feudal para a economia capitalista: Mandel é mais ambicioso, porque pretende apresentar uma síntese da história e da teoria económica desde as sociedades primitivas até aos nossos dias. Os economistas burgueses mais favoráveis ao marxismo - Oskar Lange e Wassily Leontief, por exemplo - reconhecem essa superioridade da economia marxista manifestada na sua capacidade de integrar na análise económica aquilo a que chamam os quadros institucionais, mas, em termos de teoria económica, não deixam de apontar as deficiências da economia marxista, uma das quais e a principal é a teoria do valor-trabalho: «A superioridade da Economia marxista na análise do capitalismo não se deve aos conceitos económicos usados por Marx (a teoria do valor do trabalho), mas à especificidade exacta dos dados institucionais que distinguem o capitalismo do conceito de economia de troca em geral». Esta especificidade da análise económica marxista permite-lhe - ainda segundo Oskar Lange - a formulação de uma teoria do desenvolvimento económico: a crítica de Oskar Lange atinge - antes do tempo - o coração do empreendimento de Mandel que mais parece ser uma exposição do materialismo histórico. (W. W. Rostow reconheceu a força da teoria marxista do desenvolvimento económico e a teoria da grande transformação de Karl Polanyi é tributária do marxismo.) Concordo com esta crítica dos economistas burgueses: a teoria económica marxista pode e deve ser apresentada em termos mais abstractos e formais e, se não for capaz de o fazer, não pode reivindicar a sua superioridade teórica em relação ao pensamento económico burguês. No seio do marxismo, os filósofos foram os primeiros a reconhecer essa dificuldade e contornaram-na a favor da ciência da História (o materialismo histórico). Na minha perspectiva, os marxistas foram prisioneiros da distinção estúpida entre materialismo dialéctico e materialismo histórico, distinção que não é adequada para pensar a novidade teórica do marxismo: o que quero dizer é que o marxismo sempre foi mal-pensado, a começar desde logo pelos seus fundadores - Karl Marx e Engels. Os economistas burgueses e marxistas estão condenados a procurar novos entendimentos entre si, de modo a elaborar uma teoria económica unificada, capaz de resolver os problemas que afligem a humanidade. Aquilo que seduzia os economistas burgueses - a noção marxista de auto-crítica da história da humanidade - está hoje liberta da mitologia comunista. Porém, para manter um diálogo produtivo com o marxismo, os economistas burgueses devem libertar-se da mitologia do capitalismo: o fim destas duas ilusões poderá apontar para uma era mais produtiva em termos de produção de conhecimentos económicos. O sistema teórico de Keynes - no fundo, uma teoria do rendimento, cuja repartição determina, em última análise, o nível de emprego, - rompeu com a economia neoclássica, assente na Lei dos Mercados de Say (a teoria de que a oferta cria a sua própria procura), pondo fim aos dois ramos do mecanismo auto-regulador, o da taxa moeda-salários (a célebre falácia da composição denunciada por Keynes!) e o da taxa de juro (o erro de supor aquilo que se deve provar demolido por Keynes!). No entanto, apesar deste contributo positivo para o crescimento do conhecimento económico, Keynes não conseguiu libertar-se inteiramente da atitude neoclássica que concebia a vida económica abstraindo-a do seu cenário histórico. Com Keynes a economia política burguesa passa de apologética a pragmática: o seu objectivo não era tanto justificar o capitalismo em teoria, como tinha feito a escola neoclássica, com a qual estava familiarizado, mas sobretudo salvá-lo na prática, de modo a prolongar a sua existência e a atenuar a violência das suas flutuações periódicas: em época de crise, quando há descida do rendimento e desemprego maciço, as despesas públicas - investimentos públicos - devem suprir a carência de investimentos privados. O jogo do multiplicador permite à despesa pública aumentar o rendimento nacional em maior soma do que a aplicada (teoria do deficit-spending) e, deste modo, "reiniciar a pompa da recuperação" económica. Ora, os três pontos de vista keynesianos que vamos analisar resultam deste preconceito ideológico que Keynes partilhava com os demais economistas burgueses, sobretudo com os neoclássicos: perder de vista a generalização histórica para poder encarar o capitalismo como a forma "natural" da sociedade humana e como a satisfação última das aspirações humanas.


1. Para Marx, a teoria económica faz parte da teoria do funcionamento de um determinado sistema social, mais precisamente do capitalismo: «A traços largos, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação económica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa, criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta organização social termina, assim, a pré-história da sociedade humana» (Marx). Os keynesianos não possuem uma teoria coerente da história ou, se a possuem, ocultaram-na em todas as suas obras sobre economia. Eles parecem vacilar entre duas posições: a história e a economia são mutuamente irrelevantes ou, então, a história tem algo a aprender com a economia, mas a economia não tem nada a aprender com a história. Este ódio-desprezo pela história é praticamente partilhado por todos os economistas burgueses, e compreende-se a razão disso quando vemos os keynesianos a negar a possibilidade de existência de sistemas sociais diferentes do capitalismo: ignorar as diferenças entre sistemas sociais equivale a negar uma alternativa social ao capitalismo, que os keynesianos tomam como forma inevitável e eterna de sociedade. A insensibilidade histórica de Keynes levou-o a aplicar a sua teoria das obras públicas, desenvolvida na Grã-Bretanha nos anos posteriores a 1930, à construção das pirâmides no Egipto Antigo ou à construção de catedrais na Europa Medieval. Para Keynes, as pirâmides egípcias e as catedrais medievais constituem exemplos de projectos financiados por défices orçamentais que criaram empregos e eliminaram a depressão. Esta interpretação de empreendimentos históricos destinados a salvar as almas choca profundamente a nossa sensibilidade histórica, ao mesmo tempo que descredibiliza a cientificidade do discurso económico keynesiano. Keynes escreveu a sua obra The General Theory of Employment, Interest, and Money (1936) numa conjuntura favorável à mudança de paradigmas económicos: a Grande Depressão de 1929 acentuava e expunha a crise da economia neoclássica, mostrando que o desemprego e a depressão económica, longe de serem impossíveis, como tinha defendido Marshall, são as normas a que tende a economia capitalista. Keynes chegou mesmo a "prever-temer" o colapso do capitalismo quando escreveu que considerava «o aspecto rentier do capitalismo como uma fase transitória que desaparecerá depois de cumprida a sua missão histórica», mas a sua alma conservadora levou-o a ver o drama da pobreza e da necessidade - resultante da crise de 1929 - como «uma confusão assustadora, uma confusão transitória e desnecessária», que pode ser corrigida pela inteligência keynesiana. Hicks e Kalecki tinham posições mais próximas de Marx: o epigrama de Kalecki - «a tragédia dos investimentos é que eles causam crises porque são úteis» - revela uma estreita afinidade com o epigrama de Marx - «a verdadeira barreira à produção capitalista é o próprio capital». Em vez de encarar as crises periódicas do capitalismo como momentos do seu colapso final sob o peso das suas próprias contradições, como fez Marx, Keynes preferiu encará-las como crises de inteligência, cuja solução não exige uma redefinição das relações sociais, mas uma dose liberal de sabedoria keynesiana. Marx elaborou uma espécie de tipologia dos perfis ideológicos dos economistas na sua obra Miséria da Filosofia, que nos ajuda a compreender como a ideologia funciona na realidade da ciência e na ilusão da ciência, um tema que Ronald L. Meek retomou na sua obra Economia e Ideologia. No fundo, a insensibilidade histórica dos economistas burgueses reflecte o seu próprio preconceito ideológico: eles negam a história para defender magicamente o carácter inevitável e eterno da sociedade capitalista. Não posso deixar de referir a brilhante crítica da ideologia subjacente à noção burguesa de soberania do consumidor realizada por Paul A. Baran na sua magnífica obra A Economia Política do Desenvolvimento: a superioridade de Baran enquanto economista marxista não reside apenas na sua capacidade de generalização histórica que lhe permite explicar os "movimentos históricos" que deram origem ao "processo de produção sob dadas condições" (Marx), mas também na sua competência filosófica. Estas qualidades intelectuais que distinguem um grande economista de um economista vulgar raramente encontram-se reunidas num economista burguês.


2. Embora não tenham uma teoria coerente da história, os keynesianos possuem uma espécie de psicologia social. Ou, pelo menos, o sistema teórico keynesiano implica uma psicologia social. Onde encontramos o esboço da psicologia social keynesiana? Os keynesianos analisam os modelos de comportamento característicos da sociedade capitalista como se fossem manifestações de "propensões" ou "instintos animais" congénitos. Dessas propensões congénitas destacam basicamente a propensão a consumir ou, o que é o outro lado da mesma moeda, a propensão a poupar. A psicologia keynesiana pode ser resumida em três enunciados: os capitalistas e os trabalhadores assalariados são integrados numa única categoria, a categoria do público (1); quando a renda nacional sobe o público poupa mais, mas, quando desce, poupa menos (2); e todos os homens são dotados de certa propensão a poupar que governa o modo como utilizam a sua renda (3). O que está aqui em causa não é o facto da distribuição da renda - entre outros factores - desempenhar um papel importante na determinação dos resultados da economia no seu conjunto, mas o facto dos keynesianos serem incapazes de inserir os modelos de comportamento no contexto social donde emergem, sendo levados a tratar o comportamento dos indivíduos sob o capitalismo como se fosse universal. Além de não serem universais, no sentido de serem partilhados por todos os homens, independentemente do lugar e do tempo, esses modelos de comportamento destacados pelos keynesianos variam muito em função das classes sociais no seio da própria sociedade capitalista. Assim, por exemplo, na sociedade capitalista, os detentores dos meios de produção são movidos no seu comportamento económico pelo impulso a acumular capital: o que quer dizer que os capitalistas não consomem todas as suas rendas, investindo uma parte significativa na expansão do campo das suas operações produtivas. Os trabalhadores comportam-se de modo completamente diferente. Quando podem poupar uma parte dos seus magros salários, os trabalhadores fazem-no não para construir a sua riqueza, poder e prestígio, como sucede com os capitalistas, mas para formar uma reserva contra o desemprego ou a velhice, financiar a educação dos seus filhos ou promover algum bem-estar. A psicologia da classe trabalhadora e a psicologia da classe capitalista são diferentes, reflectindo cada uma delas as posições objectivas ocupadas pelos seus membros num determinado complexo de relações sociais: os capitalistas acumulam por acumular e pelas vantagens que isso proporciona, enquanto que os trabalhadores poupam em certas épocas para poder gastar noutras. Henri Lefebvre dedicou um importante estudo à psicologia das classes sociais, uma matéria que tem importantes implicações teóricas para a teoria marxista. A este propósito, já defini noutros textos a minha posição: o aspecto mais fraco da teoria marxista foi sempre a psicologia dos interesses que Marx herdou do Iluminismo. Wilhelm Reich, Herbert Marcuse e Erich Fromm realizaram a síntese freudo-marxista para colmatar essa lacuna da teoria de Marx, mas todas as reivindicações revolucionárias exigidas por eles foram satisfeitas pelo capitalismo sem ter sido necessário mudar de sistema social: o que quer dizer que o conservadorismo dos instintos inerente à psicanálise de Freud tem a sua razão de ser na psicologia profunda do homem. O marxismo tem outras alternativas para além da psicanálise, algumas das quais já foram exploradas: a psicologia evolutiva, a etologia e a sociobiologia encontraram até agora mais eco na economia política burguesa do que na economia política marxista. O preconceito marxista contra a genética deve ser superado: a miséria da psicologia keynesiana não reside no facto de encarar o comportamento como sendo determinado por certas propensões inatas, mas em ter generalizado a motivação capitalista a toda a história humana, incluindo a sua evolução filogenética, sem conseguir explicar como o homem pré-histórico pôde "adquirir" - e incorporá-la no genoma - essa propensão a poupar num tempo de escassez. Qualquer que seja a biogramática que define a "natureza humana", ela não é indiferente à acção das estruturas das relações sociais e culturais: a análise do comportamento do homem não pode ser separada da análise do sistema social e da sua história prévia. A teoria marxista analisa o comportamento social, não a partir dos indivíduos e da sua adição mecânica, como faz a economia burguesa, mas a partir da estrutura e da forma da sociedade em que vivem: a definição marxista do homem como "conjunto das relações sociais" (Marx) rejeita, pelo menos numa primeira aproximação, qualquer teoria de uma "natureza humana" que permaneça imutável ao longo da história. Embora seja suficiente para desmistificar a teoria burguesa da natureza humana proposta pelos keynesianos, a teoria marxista ortodoxa não está livre de dificuldades: a noção de homem como portador de determinações sociais levada ao seu extremo reificador do "tipo" é incompatível com o próprio ideal de emancipação que orienta a praxis política dos marxistas. Quem é que gosta de ouvir dizer que a sua personalidade é uma instituição social? Esta teoria de Arnold Gehlen presta-se a um uso conservador, substituindo a ditadura dos genes pela ditadura das regulações sociais: um cogito sobresocializado é o resultado da tirania do capital que converte a sociedade humana numa colmeia de abelhas. Aquilo que Marx disse em relação à arte grega deve ser aplicado à teoria da natureza humana: a natureza humana não é tão maleável e moldável como pensavam os marxistas ortodoxos. O marxismo precisa de uma nova antropologia interpretada como ontologia fundamental: a noção de homem como ser-sem-abrigo que avancei noutros textos permite colmatar esta lacuna preocupante da teoria marxista. Escusado será dizer que com esta noção ontológica do homem estou a introduzir a morte no seio da teoria marxista e, a partir do momento em que confronto o marxismo com a morte, a política marxista sofre alterações substanciais: o optimismo militante de Marx é obrigado a ceder o seu lugar àquilo a que chamo o pessimismo metódico.


3. Quanto à relação entre a economia e a política, os keynesianos elaboraram uma teoria deus ex machina do Estado para elucidar a natureza desta relação: «Os keynesianos isolaram o sistema económico do seu contexto social, tratando-o como se fosse uma máquina a ser enviada à oficina, para ser consertada e reparada por um engenheiro - o Estado» (Paul M. Sweezy). Neste capítulo das relações entre a acção política e a economia, os keynesianos não partilham todos a mesma concepção: cada um deles tem a sua própria receita para o pleno emprego, padrões de vida mais elevados e prosperidade duradoura. Os programas keynesianos de melhoramento social não visam a mudança social qualitativa, a construção de uma nova sociedade, mas apenas a reforma do capitalismo levada a cabo pelo Estado. Porém, o que os programas keynesianos não explicam é como se pode melhorar o capitalismo através da redistribuição da renda a favor dos pobres sem reduzir o poder do capital e aumentar o poder dos trabalhadores. Numa sociedade como a nossa em que todas as alavancas do poder estão nas mãos dos capitalistas, qualquer tentativa de redistribuir a renda a favor dos pobres esbarra contra os interesses da classe capitalista, já para não falar do medo da pobreza das classes médias que faz delas presas fáceis do grande capital financeiro e/ou da demagogia dos candidatos a ditadores. Na sua obra económica O Imperialismo, Fase Final do Capitalismo, uma obra muito actual, Lenine (1916) coloca uma questão retórica que podemos dirigir aos keynesianos: Onde a não ser na imaginação dos reformadores sentimentais, existem trusts capazes de se interessar pelas condições das massas, em vez da conquista de colónias? Lenine é, depois de Marx e Engels, o maior teórico do marxismo: quem queira compreender a história do século XX deve ler a sua obra escrita e render-se à genialidade teórica e política de Lenine. De certo modo, a crítica que dirigiu a Kautsky e C.ª é a crítica que devemos dirigir aos keynesianos: todos os ingredientes - incluindo o pacifismo democrático dos oportunistas da social-democracia - que produziram as duas Grandes Guerras Mundiais estão presentes na actual conjuntura mundial - com a China a ocupar a posição do Japão, claro! - e, como sucedeu no passado, a Alemanha volta a estar no centro como país-chave, com a França já com as pernas abertas para não resistir à invasão alemã. Em Estado e Revolução, Lenine expõe a teoria marxista do Estado na sua articulação com a economia e a revolução, mas esta teoria permanece descritiva, devendo integrar os contributos de Gramsci e Althusser para se converter em teoria explicativa. Mais uma vez os marxistas foram obrigados a aperfeiçoar a teoria marxista para justificar a não-ocorrência da revolução no mundo desenvolvido: os resultados brilhantes justificam o esforço teórico, mas continuam a ser prisioneiros de uma teoria psicológica deficiente: «Marx não previu até que ponto o capitalismo conseguiria subornar os trabalhadores com refrigerantes e automóveis Ford» (Joan Robinson). A materialidade grosseira deste suborno capitalista revela um outro conceito de natureza humana que não permite sonhar com a realização de um reino da liberdade para o homem. O capitalismo consegue subornar materialmente não só os trabalhadores como também os economistas e outros colarinhos-brancos. Os economistas burgueses sabem isso tão bem que dispensam a elaboração de uma teoria do Estado, oscilando entre duas posições: uns - os neoliberais - encaram o Estado-governo como uma espécie de demónio, responsável por todas as dificuldades económicas, outros - os keynesianos, por exemplo - encaram o Estado-governo como um deus ex machina que pode tirar a economia de qualquer dificuldade em que se meta, mas tanto uns como os outros não conseguem permanecer durante muito tempo longe do governo: o que quer dizer que todos eles reconhecem que, numa sociedade de classes como a nossa, o poder económico e o poder político se encontram nas mãos da mesma classe dominante que os usa para garantir os seus próprios fins, a dominação política, a hegemonia (Gramsci). Keynes tratou o Estado como um deus ex machina que deve ser convocado sempre que os seus actores humanos, agindo de acordo com as regras do jogo capitalista, isto é, da economia de mercado, entram num dilema do qual aparentemente não há escapatória possível. Os economistas burgueses aprenderam, pelo menos desde a crise de 1929-32, a tratar o Estado como parte integrante do sistema económico, destacando a sua capacidade para evitar ou debelar uma depressão séria da economia e o seu papel na política do armamento e da Guerra: o intervencionismo do Estado é, de uma forma ou de outra, aceite tanto pelos neoliberais como pelos keynesianos. No entanto, há aqui uma diferença significativa entre estes dois grupos de economistas burgueses: Keynes derrubou o mito burguês de uma harmonia entre os interesses privados e os interesses públicos, o que o aproxima da teoria marxista. Afinal, o Estado corre o risco de ser usado para beneficiar interesses privados à custa do interesse público, ou seja, o "deus" pode converter-se em actor. Para o marxismo, o Estado mais não é do que um actor - o actor principal! - que garante a reprodução do sistema capitalista. John Strachey acreditava que as tendências perigosas do capitalismo das grandes empresas e do capital financeiro podiam ser compensadas na esfera pública pela democracia. (O velho princípio da força compensadora de John K. Galbraith!) É certo que a democracia ajudou a realizar algumas aspirações humanas, mas não conseguiu abolir as desigualdades sociais e as assimetrias de poder e, o que é pior, não conseguiu travar o seu agravamento. Ainda duvidam da veracidade do prognóstico de Marx de pauperização crescente da população trabalhadora mundial? Hoje o que está em causa é a própria suspensão da democracia: o público tão idolatrado pela economia burguesa está de tal modo domesticado e alienado no ciclo infernal de satisfação das suas necessidades metabólicas que perdeu todo o tipo de contacto real com o mundo e de intervenção no mundo. Depois do êxito estrondoso do suborno capitalista das classes trabalhadoras em todo o mundo desenvolvido, suborno este que privou a teoria marxista da sua base de apoio social, só nos resta uma causa política meritória: a defesa do Ocidente e da sua tradição crítica, a defesa da continuidade da vida humana neste planeta azul. Quando travavam uma luta renhida com o Bloco Soviético, os economistas burgueses diziam defender o Ocidente, mas hoje sabemos que não se pode defender o Ocidente fazendo a apologia do sistema social que o está a destruir: o capitalismo. Deste modo, o marxismo regressa à sua matriz, da qual verdadeiramente nunca saiu: a Grande Tradição do Ocidente, cujo génio filosófico e científico sempre foi capaz de encontrar uma saída que garantisse a dignidade da vida humana.


Anexo: Ainda ontem escutei um debate entre euro-deputados portugueses na SICNotícias, com o qual não estou de acordo. Nas últimas décadas, fruto do debate entre o mundo livre e o bloco soviético, houve uma sucessão de teorias que carecem de fundamento. Alguém disse que o Estado e a soberania já não fazem sentido neste mundo global. Mas esta é uma ideia estúpida: uma federação europeia nunca será similar à federação americana, não só por razões linguísticas mas também por razões culturais e históricas. Além disso, o mundo global não é um mundo sem Estados: há Estados que dominam outros Estados neste mundo global e há sobretudo um poder económico e financeiro que, sendo interno aos Estados, os procura dominar como se fosse exterior. É como pensar que podemos ter uma economia saudável sem um sector produtivo forte: alguém imaginou que doravante o homem se alimenta de informação. Mais outra ideia estúpida: o Ocidente anda a "comer" aquilo que é produzido na China e noutras economias emergentes, aquelas que estão a crescer. Meus amigos, o mundo global continua a ser capitalista e o capitalismo não rompeu com as suas leis básicas de movimento. Se alguns Estados europeus estão a enfraquecer, há outros na Europa e fora da Europa que estão a fortalecer. Perder a soberania e aliená-la noutra instância pode apontar para novas formas de escravidão. As pessoas andam demasiado estúpidas e alucinadas para pensar bem. Num mundo em que todos pensam ninguém pensa verdadeiramente, porque são todos pensados pelo capital mas por um capital verdadeiramente estranho. E há mais: a globalização da comunicação e o acesso à Internet não significam que as pessoas andem hoje mais informadas do que no passado. A maior parte dos utentes das redes sociais faz um uso muito mesquinho delas - e a informação que circula carece de qualidade. Por outro lado, não se pode dizer que todos nos deslocamos: os euro-deputados deslocam-se porque têm as viagens pagas, mas a maior parte das pessoas não se desloca. A mobilidade é mais outra ideia estúpida. Para todos os efeitos, um mundo global é humanamente pouco sedutor. E há ainda outra coisa: a democracia não resolve as assimetrias entre Estados, tal como não resolveu as desigualdades sociais. Esta é mais outra ideia estúpida herdada da campanha anti-comunista. Sim, o mundo está a mudar - o capitalismo expande-se de modo selvagem - mas não no sentido da "mudança" apontada pelos euro-deputados que esqueceram a cabeça em casa.


J Francisco Saraiva de Sousa

21 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem-vindo, Hong Kong! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummm... afinal, tenho muitos alemães, holandeses e franceses em sintonia comigo. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oh, que pena não ter todos os livros de economia, pk estou a achar graça ao assunto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Algumas equações de Marx precisam ser modificadas!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bah, estou um pouco embaraçado porque aboli a ideologia comunista e deixo de ter referência. Mas não vou desistir do meu caminho...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Porém, algo similar à sabedoria keynesiana devia ser aplicado agora para permitir o crescimento da nossa economia: a solução neoliberal vai afundar-nos na crise e na pobreza. São as políticas neoliberais que estão a tramar tudo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ai, tive um professor que dizia que era marxista por acidente: o que ele queria dizer era que era aristocrata. Até pode ter alguma razão, mas prefiro a minha explicação: o conflito interior entre o eu filósofo e o eu cientista. Neste texto, o eu cientista está a empurrar-me para outro lugar. Mas deve haver algum sítio onde eles se encontram e se reconciliam. Espero...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Com os USA a dominar, estou encantado com a adesão da Europa: vamos derrubar a direita neoliberal e o capitalismo de bolsa. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu bem defendo que é preciso formalizar a teoria económica marxista pk se torna mais fácil de manejar e de desenvolver...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oh, agora apetece-me postar sobre sociedades de insectos! Sou assim - a minha cabeça adora mudar de assunto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hmmmm... o meu blog está a ser considerado como uma excepção neste caldo de vazio que é web. Mas, por outro lado, não quero ser alvo de pressão: eu produzo naturalmente, eu sou muito tirano comigo, mas não suporto encomenda externa. Sou assim - Free.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bah, espero que não leiam isto: tenho uns amigos "poetas" que invadem o meu facebook esperando não sei o quê?! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já deviam saber que não aprecio o jogo de rimas destituídas de ideias! Bahhhhhhhhhhhhhhhhhhh

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Em compensação, tenho um empresário americano da comunicação que me lança desafios espantosos - ainda me converto em engenheiro informático. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A América tem isso de bom - quem é competente safa-se bem. Em Portugal, passa-se o contrário: ser burro maldoso e invejoso compensa! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Aguardo as 19:45! Ai...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vejam uma das mensagens que recebo:

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J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas não consigo ler todas as mensagens: algumas pedem-me para ser more, more agressive.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Adoro os desafios americanos:

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J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, eles não acreditam na minha nacionalidade. Ainda vou para San Diego! :)

Unknown disse...

realizações do comunismo pelo mundo
1)estupro de 5.000.000 de mulheres pelos comunas(comunistas)
2)assassinato de 100.000.000 de pessoas pelos comunistas
só isso é o suficiente para mostrar que comunismo não presta