terça-feira, 18 de setembro de 2012

Podemos ser marxistas sem ser comunistas?

Porto e Douro River
A questão é puramente retórica: Eu sou marxista e, no entanto, nunca acreditei na possibilidade de realização real de uma sociedade comunista, e o próprio Marx já era comunista antes de ser marxista. O comunismo não é uma invenção marxista: ele tem, portanto, uma arqueologia atrás de si. A Filosofia tem elaborado ao longo da sua história diversas utopias que lhe permitiram criticar a ordem estabelecida, de modo a operar transformações significativas do mundo: o comunismo foi uma dessas utopias sociais. Não nego o papel histórico desempenhado pelo comunismo: ele serviu de bandeira à luta de classes dos trabalhadores contra a exploração económica e a opressão política. No entanto, qualquer tentativa séria de realizar o comunismo esbarra contra determinadas estruturas da natureza humana. Considero que tentar moldar a própria natureza humana é uma tarefa perigosa, porque ela produz um acréscimo de dominação em vez de um acréscimo de liberdade. A actualização do marxismo que preconizo implica o abandono do projecto comunista e a sua substituição por um novo projecto político. Já cheguei a defender uma utopia mínima: uma sociedade não-regulamentada. Porém, o meu realismo político leva-me a desconfiar da possibilidade efectiva de uma sociedade de indivíduos autónomos: a dialéctica confronta-se em cada conjuntura política com os limites que a natureza humana impõe à sua imaginação. A história é um processo aberto: qualquer tentativa para o concluir produz mais dominação do que libertação. E a dialéctica está condenada a oscilar entre a dominação e a libertação se quiser ser a figura da própria abertura. A ideia de uma sociedade desalienada não é dialéctica.

Ando muito preocupado com a ausência de estudos económicos marxistas: a teoria filosófica só pode criticar a sociedade estabelecida em função de alternativas económicas propostas por economistas marxistas. Com a emergência do estruturalismo, pelo menos no espaço francófono, a Filosofia não só recusou a História como também abandonou a crítica da economia política. O estruturalismo entregou o destino do mundo nas mãos dos tecnocratas e dos seus modelos neoliberais. O estruturalismo foi provavelmente a filosofia mais nociva produzida nas últimas décadas do século XX: todas as outras filosofias que dele emergiram mais não são do que capitulações da Filosofia perante a economia neoliberal. Ora, como demonstra a crise de 2008, os economistas não são as figuras mais adequadas para gerir os destinos do mundo. A economia tal como a conhecemos mais não é do que a tentativa de moldar o mundo em função dos interesses de determinadas camadas da classe capitalista. Os manuais de texto da economia devem ser queimados na praça pública, porque não queremos ser governados por homens que odeiam a cultura superior. Ser economista é sinónimo de malvado. António Sérgio lamentava a aversão dos portugueses pelos estudos económicos, sem no entanto ter explicado essa aversão: as escolas de economia que entretanto surgiram em Portugal são escolas de ladrões: os seus membros sonham desde cedo com o seu próprio enriquecimento pessoal à custa dos empobrecimento dos portugueses. Os economistas e os gestores não geram riqueza; pelo contrário, eles geram pobreza planeada. O mundo regrediu desde que os economistas e os gestores capturaram o poder económico e o poder político. A crise em que vivemos é também a crise desta ideologia económica

J Francisco Saraiva de Sousa

6 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Um dia será necessário repensar a teoria do contrato social porque há nela algo que tem permanecido impensado. A partir da teoria do contrato social, podemos levar a cabo uma crítica radical da civilização. A civilização como opressão, em vez de libertação!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Procuro não desesperar mas acho que estou demasiado familiarizado com a tradição para abrir uma brecha nela e procurar novo rumo. Mas estes caminhos do pensamento devem ser explicitados. Acho que há uma alternativa ao discurso-padrão da modernidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, ah, desistam de entender os meus comentários: eles têm alvos cirúrgicos! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Em Portugal, nunca se pensou seriamente a escola e a educação. As escolas foram minadas por duas racionalidades: a das pedagogias igualitárias e a económica. De certo modo, as escolas já estavam mortas antes de serem submetidas aos cortes financeiros. As duas racionalizações conjugadas produziram uma tremenda irracionalidade: privaram a escola da sua função educativa.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já leram "As Palavras e as Coisas" de Michel Foucault? Quando li esta obra, tinha dezasseis anos e dela retive apenas algumas frases que legitimavam a leitura que Althusser fazia de Marx. Hoje reli uma entrevista de Sartre, onde ele critica o estruturalismo. Reconheci nela o meu pensamento adolescente. Afinal, eu sempre estive mais próximo de Marcuse do que de Althusser, embora tenha uma grande admiração-dívida pelo último.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sei que tenho alguns amigos moçambicanos e angolanos aqui. Aproveito para responder a todos num único post: Eu não sou a pessoa mais indicada para ensinar o ABC da Filosofia. Sou demasiado profissional para isso. Além disso, ainda não vislumbrei um plano de curso de Filosofia para moçambicanos e angolanos. Prometo pensar sobre o assunto.

Ah, esqueci de dizer que a Filosofia é fundamental para o desenvolvimento dos vossos países: uma aproximação política à Filosofia pode ser um esboço de programa.