«Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.
«Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer "potins" - muito entretida.
«Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
«Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto.
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
«Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...» (Mário de Sá-Carneiro)
A Filosofia que habita a linguagem, juntamente com a poesia, tem sido avessa à meditação da chamada "poesia confessional", talvez por temer dispersar-se nas linguagens plurais dos mais diversos eus singulares e dos seus mundos próprios. No entanto, este receio e pudor filosóficos não se justificam, primeiro, porque, como mostrou Hegel, o indivíduo é mediado pelo universal e vice-versa, e, segundo, porque a lingua(gem) usada pelo poeta é uma objectividade que, a-propriada pelo poeta e pelos seus leitores, serve de mediador entre o indivíduo e a sociedade, configurando as emoções subjectivas e, como meio de expressão dos conceitos, produzindo "a relação indispensável com o colectivo e a realidade social" (Adorno). A essência da poesia não se esgota na mera expressão da subjectividade ou na mera expressão da sociedade: a poesia é a "experiência" do processo dialéctico através do qual o indivíduo e a sociedade se constituem um ao outro e se determinam reciprocamente. Nessa experiência, a lingua(gem) a-propriada cria mundos que falam uma voz própria, a voz do poeta, cujo eu se esquece de si no interior da língua, tornando-se plenamente presente. Toda a poesia abre e instaura uma expansão de sentido no mundo já significado e, como epifania de mundo, consagra um mundo que nos arranca do nosso próprio mundo, oferecendo-nos um novo espaço, bem como a oportunidade de habitar o mundo que fundou. O pensamento filosófico procura elucidar os mundos poéticos, deixando-os falar no seu dizer originário. Mário de Sá-Carneiro quis ser escutado e compreendido: "Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda" ("Caranguejola"). Ou, nas palavras de Paul Celan: "O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção - decerto nem sempre muito esperançada - de um dia dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho - têm um rumo".
O poema de Mário de Sá-Carneiro, citado em epigrafe, intitula-se "Feminina" e, nele, o poeta "confessa" um desejo secreto: Mário de Sá-Carneiro "queria ser uma mulher", não uma mulher qualquer, mas um determinado tipo de mulher, a mulher fatal que excitasse todos os homens que a olhassem e que tivesse muitos amantes, enganando-os a todos, até mesmo o amante predilecto. Porém, o poeta, sendo homem e vivendo numa determinada sociedade, sabe bem que estes seus "enleios" e "fantasmas" não podem ser desculpados num homem: as noções sociais de homem e de masculinidade incorporadas pelo poeta vedam-lhe o acesso público e real a esse desejo secreto, do qual toda a sua poesia é uma bela poetização. Embora não seja nomeada, a sociedade está presente nessa "dispersão" interior do eu poético que revela o conflito interior, o antagonismo entre o desejo de ser mulher e a sociedade incorporada e interiorizada que proíbe a sua manifestação e a sua realização: a grande ausente, a sociedade amputadora, fala do interior do eu, como a sua consciência moral, segredando-lhe: "O teu desejo não pode ser desculpado no homem que és". O conflito do eu consigo mesmo reflecte, no labirinto interior, azul anímico, o antagonismo do indivíduo e da sociedade, em cuja dialéctica se joga a identidade. Se a socialização fosse completamente triunfante e bem sucedida, o problema da identidade, o surgimento na consciência da pergunta "Quem sou eu?", não existiria: a identidade seria dissolvida na simetria completa entre a realidade objectiva e a realidade subjectiva, o eu seria a sociedade e a sociedade, o eu, o que constitui uma impossibilidade antropológica. A socialização nunca é totalmente bem sucedida e, em todas as sociedades, emergem assimetrias e rupturas entre a realidade objectiva e a realidade subjectiva, que permitem às pessoas conceberem-se a si mesmas em termos de "profundidades ocultas" ou de um jogo de identidades, sem o qual o individualismo e a inovação não seriam possíveis. Qualquer humano é potencialmente um traídor de si mesmo, no sentido de poder trair, num determinado momento da vida, um dos seus múltiplos eus, públicos ou privados. Sá-Carneiro pensou esta traição de si mesmo como crime: o crime não é somente o acto de trair o "eu" que lhe é socialmente atribuído pela socialização primária - "Tu és um homem e deves comportar-te como homem em todas as circunstâncias da tua vida" - e confirmado pelos outros significativos e generalizados (G.H. Mead) no decorrer da conversação quotidiana, mas também e fundamentalmente trair o seu "eu mais íntimo", aquele que não se deixa colonizar pelo mundo estabelecido, com o qual discorda. Aceitar o eu socialmente atribuído e agir em conformidade com os papéis adequados é trair o eu secreto, e escutar este último e abrir-lhe as portas da vida é trair o "eu público": em qualquer uma destas circunstâncias e opções de escolha, o homem é sempre um traidor de si mesmo, e, por isso, Mário de Sá-Carneiro é levado, desde os poemas de juventude, a definir o homem como um "criminoso": "Eu quero ser um criminoso, /Se ter amor é um crime". Aos olhos da sociedade heterosexista, ter amor não é um crime, desde que o indivíduo se conforme aos papéis sexuais e de género que lhe são atribuídos, identificando-se com eles, mas, quando não há essa identificação, devido a um acidente biográfico, social ou biológico, o amor que deseja e procura desvia-o da "tirania da normalidade" (Espinosa), tornando-se um crime numa dupla-circunstância: por um lado, no caso desse amor revelar-se, um crime contra os padrões sociais que regularizam as relações sexuais, e, por outro lado, no caso de não se revelar, um crime que o indivíduo comete contra "um Outro que eu não posso acorrentar" ("Ângulo"), a sua identidade subjectivamente real. Os crimes diferenciam-se pela "distância" ("Distante Melodia") em relação a esse "Outro", o mais próximo de si mesmo e o mais escondido dos outros, que, no poema "Abrigo", deseja ser mulher de Paris: "Paris - meu lobo e amigo... /- Quisera dormir contigo, /Ser todo a tua mulher". Como homem, com uma identidade socialmente atribuída, logo à nascença, e marcada por um acidente anatómico, a visibilidade do falo, que colide com a sua mais secreta identidade subjectivamente real, Mário de Sá-Carneiro é um "fantasma", isto é, um "emigrado" de si mesmo, mais precisamente desse "Outro que não posso acorrentar" por ser demasiado íntimo, próximo e real: a identidade subjectivamente real torna-se uma identidade de fantasia, objectivada não só dentro da sua consciência, mas também, numa forma transfigurada, como desejo de ser mulher, na sua poesia. O poema "Como Eu Não Possuo" revela o confronto interior desses dois mundos discordantes:
«Olho em volta de mim. Todos possuem -
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço. «Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente! «Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu.
Falta-me unção pra me afundar no lodo. «Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem me estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!... «Castrado d'alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
- Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?... «Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua.
Bebê-la em espasmos d'harmonia e cor!... «Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria... «Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo d'êxtases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante... «De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo». Todos os humanos que o rodeiam possuem alguma coisa, mas ele, Mário de Sá-Carneiro, parece ser o único que nada possui, até "mesmo quando enlaço". "Castrado de alma" e sem saber fixar-se e vincular-se a outro humano, homem ou mulher, afunda-se na sua dor: não é como os outros e, no mundo destes outros que possuem, ele é um emigrado, um estranho ou um clandestino num mundo heterosexista, no seio do qual não pode esperar por alguém por causa da sua "delicadeza" ("Caranguejola"). O desejo da mulher que vai na rua é "desejo errado", porque o que o poeta deseja possuir não é a mulher como ser-outro, complemento de si mesmo, mas a sua "carne estilizada" no seu próprio corpo: Mário de Sá-Carneiro só vibraria "se fosse aqueles seios transtornados" e "se fosse aquele sexo aglutinante". Na posse imaginária da mulher, o poeta quer ser e sentir "aquilo que estrebucho e não possuo", isto é, "quer (simplesmente) ser mulher": possuir seios transbordantes e aguçados e possuir, em vez do pénis, uma vagina. A dor em que se afunda, sem conseguir ascender ao céu - ser mulher - ou descer ao lodo - ser homossexual -, é o rasgo da dilaceração ou, como diz o poeta, castração de alma, a alma amputada, no sentido que é dito neste poema: «Eu não sou eu nem sou o outro, /Sou qualquer coisa de intermédio: /Pilar da ponte de tédio /Que vai de mim para o Outro». A dor dilacera e dispersa a alma, diferenciando-a e cortando-a em pedaços, as diversas identidades de Mário de Sá-Carneiro. Mas, ao rasgar a sua unidade anímica e ao diferenciá-la, a dor reúne e articula o que foi separado pelo rasgo e pelo corte. A alma do poeta habita a dor, onde encontra o seu suporte - o "pilar" - no "intermédio": a "ponte", o "labirinto" ou a "escada" entre duas identidades, uma socialmente atribuída, o "desejo errado" - ser homem heterossexual -, e outra - ser mulher heterossexual - poetizada para enfrentar a identidade não-assumida aberta e publicamente: a homossexualidade passiva. Mário de Sá-Carneiro poetiza o entre, o intermédio: o desejo de ser mulher, a identidade transexual como recurso poético e ficcional para resolver a sua dispersão interior. Porém, a identidade ficcionada elaborada para reunir a dispersão interior produz um outro corte mais profundo que não cicatriza: rasga a sua unidade com o corpo que, ao "espelho", a nega como "fantasiada guerra" ou "fantasia alada". Alguns versos de dois poemas revelam o desconforto com o próprio corpo. Nos poemas "Crise Lamentável" e "O Fantasma", o poeta, além de revelar desconforto de género, confessa um desejo de mudança corporal: "Gostava tanto de mexer na vida, /De ser quem sou - mas de poder tocar-lhe... /E não há forma: cada vez perdida /Mais a destreza de saber pegar-lhe. /(...) /"Que tudo em mim é fantasia alada, /Um crime ou bem que nunca se comete: /E sempre o Oiro em chumbo se derrete /Por meu Azar ou minha Zoina suada..." (Crise Lamentável). "O que farei na vida - o Emigrado /Astral após que fantasiada guerra -/Quando este Oiro por fim cair por Terra, /Que ainda é oiro, embora esverdinhado?" (O Fantasma).
O verdadeiro eu do poeta está fechado hermeticamente no armário e, como não conseguiu "estender pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés", entregou-se desesperadamente a uma "fantasiada guerra" que é "resgatada" na poesia: Mário de Sá-Carneiro procurou habitar poeticamente a sua verdadeira identidade, embora numa forma transfigurada, mas não encontrou quietude e serenidade e a sua alma peregrina e "vagabunda", mergulhada e atormentada no "cismar" ("Escala") consigo mesma e na "divagação" ("Manucure"), não se transfigurou em alma azul, capaz de operar a transformação desejada: "E eu que sou o rei de toda esta incoerência, /Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la /E giro até partir... /Mas tudo me resvala /Em bruma e sonolência" ("A Queda"). No poema "Dispersão", fala da perda: "Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, /E hoje, quando me sinto, /É com saudade de mim. /Passei pela minha vida /Um astro doido a sonhar. /Na ânsia de ultrapassar, /Nem dei pela minha vida... /Para mim é sempre ontem, /Não tenho amanhã nem hoje: /O tempo que aos outros foge /Cai sobre mim feito ontem". As "catedrais de Ser-Eu" ruíram todas, quais ilusões lunares e copulares do Mário, e, como nenhuma das suas vidas, a real e a idealizada numa figura de papel, lhe agradavam, Mário de Sá-Carneiro entrou numa profunda crise de angústia, uma "crise lamentável", que o conduziu ao suicídio prematuro, perpetrado no Hotel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris, com o recurso a cinco frascos de arseniato de estricnina. Este acto de antecipação voluntária da morte certa, no qual Mário de Sá-Carneiro afirma plenamente a sua liberdade poética, constitui a acusação derradeira da sociedade heterosexista e fechada que nega aos seus membros a possibilidade de viverem de acordo com o seu mais íntimo eu e as suas aspirações a ser mundo na abertura do mundo comum. A ânsia do poeta é a ânsia por uma sociedade (eroticamente) plural, onde cada um possa habitar sem angústia o seu verdadeiro mundo subjectivo e nele encontrar a serenidade e a quietude da alma azul: o início originário de um novo mundo.
J Francisco Saraiva de Sousa
87 comentários:
Bem, disperso-me entre dois poetas de craveira desigual: Trakl e Sá-Carneiro, mas ambos apontam para além do princípio de realidade estabelecido: um novo início, uma nova sociedade que permita a diferença e o direito a uma vida pacificada. Mas vou concluir os dois posts: avancei com este para não deixar esquecer a "ideia"... :)
Pois, "fechado no armário"... alguns contemporâneos assumiram-se como o grande poeta Kavafis e outros que não, como o dramaturgo Strindberg. Em todo o caso, reitero a minha posição de cepticismo sobre o interesse dos "gay and lesbian studies" no estudo das obras e artistas.
Ui!... o que eu tenho de ler para me actualizar, francisco-imparável!
Espero que esteja mais descansado e que aproveite bem o período de férias.
Vou ler os seus posts e regressarei ;-)
Oi amigas
FCPORTO: Somos TETRA-CAMPEÕES!
Oi Borboleta: não estou a fazer um "gay and lesbian study"! Não vejo a minha elucidação a essa luz! Porque é inegável que o poeta enfrenta esse problema de identidade: o eu que ele poetiza quer ser o que é, mas fracassa como mostra o seu final trágico. A poesia de Sá-Carneiro resgata esse eu subjectivamente real: não é treatro; é o seu mundo subjectivamente real.
Oi Denise: Com a festa, fiquei com o pé novamente inchado. Sim, terei de repousar; o entorse demora algum tempo e não tenho sido amigo de mim mesmo.
Mas hoje estou feliz por ver o Porto city e Portugal felizes: é bom vencer e o FCPorto vence com mérito e trabalho, muito trabalho.
O que LAMENTO é a atitude de Rui Rio que é o único Presidente de Câmara da Europa que não recebe os campeões.
É Rui Rio amigo do Porto e de Portugal? Quem traz prestígio ao Porto é o FCPorto, não Rui Rio, que devia ir para o Hades e lá arder com os outros demónios. Usa o Porto para se lançar a nível nacional, mas com ele não se vai longe: fica-se em último lugar, sem honra, sem orgulho.
Quando votam, os portuenses deviam pensar melhor no destino da cidade do Porto: servir a cidade é contribuir para a felicidade de todos os seus cidadãos. A MARCA FCPORTO traz prestígio e desenvolvimento. E Pinto da Costa vai dar-nos o Museu das Vitórias Azuis, além da presença dos jogadores na conferência de Jesualdo Ferreira confirmar a sua continuidade. :)
Viva o DRAGÃO AZUL!
Viva o Dragão, viva!!!
(é o meu signo chinês)
Danilo Svágera da Costa
Se passar por este blog, onde o linkei, prometo linkar o seu blog no CyberPhilosophy, que pertence a outra conta.
Abraço
Denise: Não sei qual o meu signo chinês! Esqueci-me... :)
Estou parvo; é do sono: Posso deixar comentário nesse meu blog! :)
Pois, antes de ler este seu último comentário pensei isso mesmo: ou está parvo ou é do sono! :-))
Se bem entendi, nasceu na véspera da revolução dos cravos. se assim foi, o seu signo chinês é o Tigre que, no reino do Rabiscos e garatujas é, plim!, um dragão azul!
Esta pulverização do sujeito, a dificuldade na gestão dos conflitos interiores e a fusão sexual estão muito bem configuradas nas Confissões de Lúcio do Mário de Sá-Carneiro.
Nasceu no ano da revolução? Então tem 35, dei-lhe um ano a mais. ahah
Ok, pode não estar a empreender um "gay study", mas coloca o problema da identidade de forma maniqueísta: é homem que queria ser mulher, logo é gay que não se assume, e vive atormentado por isso. Não sei, parece-me básico.
Além disso, esta sua conclusão:
«Mário de Sá-Carneiro habita poeticamente a sua verdadeira identidade»
é errónea, porque se defende que Sá-Carneiro queria ser efectivamente mulher (ou assumir-se como gay) e que poeticamente se assume, então, escreveria enquanto sujeito feminino, e não enquanto ser que anseia ser mulher ou, então, como sujeito que deseja homens, como o faz Kavafis.
Mário Sá-Carneiro, pelo contrário, exibe na sua sua poesia um conflito de identidades - qual é a identidade de Mário Sá-Carneiro?
Ah, não sabia que era tigre... E isso de ser tigre que significa?
Sim, as Confissões do Lúcio configuram esse conflito, mas ainda não tenho uma chave completa, porque pretendo captar a essência da coisa...
Else: ainda não conclui o post, mas quando digo que ele habita poeticamente a sua verdadeira identidade, isso significa que ele assume na poesia aquilo que é e que queria ser na vida real.
O querer ser mulher não implica necessariamente ser gay, até porque os gays normais não querem ser mulheres. No entanto, dado viver numa sociedade heterosexista fechada, sem referências gays positivas, a pessoa pode ser levada a identificar-se com o sexo oposto. Porém, Sá-Carneiro quer ter mamas e vagina: ser mulher. Ele poetiza uma mudança de sexo: o que é dito é o transexualismo. Mas ainda vou pensar melhor sobre o assunto: a identificação com o sexo oposto é uma marca da cultura latina.
Há o espelhos/os espelhos que funcionam de um modo intenso em Sá-Carneiro: o espelho desmente o seu eu poético, porque a imagem que vê é uma mulher transfigurada..., sem mamas aguçadas...
Sinceramente, continuo na minha: acho que é uma interpretação simplista e, além disso, pouco interessante na compreensão da sua poesia. É a mesma coisa que a respeito do Orlando de Virgina Woolf, disséssemos: o sujeito é masculino, logo a Woolf era lésbica, mas como n se podia assumir, queria ser homem, conflito de personalidades: suicídio. Enfim, equação apressada. Acho q os artistas e poetas experimentam múltiplos sexos (à Deleuze) e múltiplas personalidades e vidas, é essa sua plasticidade e extrema sensibilidade que lhes permite serem tocados pelo mundo, e por vezes, de forma fatal. Psicologizá-los, e "tirá-los do armário" depois de mortos, acho q é risível senão for mesmo ofensivo.
*sujeito narrador
A alma do poeta é um labirinto:
"Choro por mim... Como fui louco.."
"Se a minha alma fosse uma Princesa nua
E debochada e linda..."
"Então, eu mesmo fui trancar todas as portas;
Fechei-me a Bronze eterno em meus salões ruídos... (...)
Estilizei em Mim as douraduras mortas!"
"Sou qualquer coisa de intermediário"
Só por mero preconceito se pode não-escutar a alma do poeta que vibra na sua poesia: o Poeta quis ser escutado; não o escutar é matar a sua "essência", como diria Florbela. A poesia dele diz o mundo subjectivo...
Os gays e as lésbicas têm direito a falar dos seus mundos: o amor não é todo ele heterossexual.
Eu ouço o poeta, mas preocupo-me menos com as questões sexuais (vistas duma forma básica: homem/mulher; gay/hetero) e mais com as literárias. Mas continue com a sua "missão" de fazer uma pretensa redenção.
Têm claro, mas n é o facto de se ser gay ou hetero q se fala de uma maneira diferente de sexo e amor. E em segundo lugar, há milhares de formas de expressarmos a nossa sexualidade, uma multiplicidade de sexos, q n se estringe a "gay/lesbian/bi/hetero/transgénero"... que Deus nos livre de tal. Como dizia o Pasolini: é intolerável ser tolerado!
"Menino de ouro" significa homossexual masculino... E o oiro é uma palavra muito usada pelo poeta.
Não vejo a poesia como encenação ou delírio de palavras: a linguagem que configura as emoções subjectivas é comum e é nela que nos entendemos uns aos outros; a experiência do poeta tb é comum...
Mas meditar a poesia é escapar à análise literária...
Hummm... Porém, o eu poetizado pelo poeta é demasiado "erótico e sexual": o seu mundo alimenta-se desse subterrâneo sexual.
Então, do seu ponto de vista, qual é o interesse da poesia de Mário Sá-Carneiro se o reduzir a um homossexual reprimido?? Só o avilta!!
Desculpe, eu aprecio a sua sensibilidade e inteligência, mas neste aspecto não posso estar em mais desacordo. Sou absolutamente contra este tipo de interpretações.
Reprimido num sentido... mas, em termos reais, em Paris deve ter saído da clandestinidade: aí foi "mulher", como diz noutro poema. Mas este aspecto psicológico não pretendo analisar: faria parte de um estudo psicológico, que não é o meu objectivo. Colocar em palavras o seu verdadeiro eu que não se revela na vida real é tarefa nobre, até porque instaura um mundo que reclama tolerância e paz, um mundo não-repressivo, liberto dos estigmas... A qualidade da sua obra tb reside aqui: mostra um outro mundo oposto ao estabelecido.
As "encenações" dos poetas nunca são meras ficções: revelam um mundo que convida ao pensamento. Fazer poesia é instaurar um mundo...
Para todos os efeitos, a vida pessoal de Sá-Carneiro não me interessa: não estou a psicologizar ou sociologizar...
Se não houver repressão/condicionamento, não há liberdade.
Se não houver conflito, não há maturação.
Enfim, acho que n é tarefa nobre ser fantasista... acha que se Mário Sá-carneiro soubesse quem era o seu verdadeiro eu, se teria suicidado na flor da idade, aos 26? (A minha idd, por acaso). Portanto, o que derivará de tal tarefa é fantasia.
Não, os poetas instauram um contra-mundo que nos permite pensar o mundo, o real, isso sim.
A Else escreveu:
"e "tirá-los do armário" depois de mortos, acho q é risível senão for mesmo ofensivo."
Florbela no seu diário íntimo escreveu:
"Tenho pela mentira um horror quase físico".
"Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo - uma alma - se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me".
"Viver não é parar: é continuamente renascer".
Claro que Sá-Carneiro sabia o que era: isso é dito na sua poesia, mas não viveu publicamente o que era, como "mulher". O seu contra-mundo é a transfiguração do mundo estabelecido que o condenou à clandestinidade.
Todos escrevemos na esperança de ser resgatados por alguma alma piedosa e inteligente que nos possa fazer renascer!
"Claro que Sá-Carneiro sabia o que era"
Como tem essa certeza? Ou, não me diga, que "conflito de identidades" para si é o binómio gay/hetero. Nesta sua grelha como entende Pessoa?
O nosso reduto íntimo é intransitivo e intraduzível. Conhecer o poeta será, antes, reconhecê-lo como arauto dos deuses.
Bem, não reduzi o conflito das sexualidades ao binómio hetero-gay, até porque existem os dois sexos...
Pessoa é um desafio: a sua sexualidade nunca se manifestou; não tinha vida sexual. Um homem sem sexo: talvez seguisse esse caminho. Crneiro fantasia desejos e é debochado, Pessoa é seco..., muito murcho...
Bem, agora tenho de trabalhar, mas depois continuamos a discussão. ;)
Pessoa n é nada murcho! Como diante da vitalidade de Álvaro de Campos, de Alberto Caeiro...
Enfim, o Francisco parece que sofre desta erotização extrema da nossa sociedade.
Bem, "ser arauto dos deuses" é absolutizar muito a linguagem enquanto voz da existência e nós vivemos num mundo empírico... Ou seja, a linguagem deixa de falar como voz estranha ao sujeito quando é falada como a própria voz do poeta e, assim, o eu esquece-se de si no interior da língua, tornando-se plenamente presente.
Sim, referia-me ao Pessoa como "ser sexuado", como diria Ponty: basta ler as cartas de amor! Muito murcho!
Sim, mas referir-se ao Pessoa, um dos maiores poetas do século XX, como murcho, acho pouco, sendo q o q estava em causa era o conflito de identidades.
"a linguagem deixa de falar como voz estranha ao sujeito quando é falada como a própria voz do poeta"
Precisamente, o poeta tem de fazer esse processo alquímico, para q se torne entendível e "universal", mas nesse processo perde obviamente muito do que é... é uma construção: o poeta é um fingidor... etc. releia Pessoa, apesar de eu gostar de Sá-Carneiro, Poeta é muito melhor a demonstrar esse "jogo de identidades".
*Poeta=Pessoa
Ok, vou pensar o fingimento amoroso de Pessoa e o seu heterotexto! :)
Sobre Mário de Sá-Carneiro, Pessoa escreveu, muito tempo despois da sua morte:
"Como nós éramos só um, falando! Nós éramos como um diálogo numa alma".
Eram Gémeos! :)
Meto-me em cada trabalho!? Ainda não conclui o anterior e já estou mergulhado neste! Mas já vislumbro a sua unidade, de resto difícil de explicitar num post!
A ideia é simples: Mário de Sá-Carneiro poetiza uma identidade transexual, a de ser mulher, onde recolhe a sua dor, resistindo à dispersão, aos fragmentos do rasgo interior. Mas isso não significa que tenha sido um transexual: foi simplesmente um homossexual cansado da vida de urinol e de café. A fantasia de ser mulher alimentou-o mas teve o seu preço fatal...
Ah, e brincando com os estudos literários e o projecto "Orfeu", direi que o compromisso do poeta com o futurismo é o compromisso com a homossexualidade (finalmente, depois de 20, 50, 70 anos?) liberta da colonização e estigmatização heterosexistas. A identidade transexual como recurso poético ainda é colónia do heterosexismo! :)
Bem, já tinha descoberto, mas é inevitável falar dos "brinquedos" (dedos? nabos? cenouras? bonecas? trapinhos, tesoura, linhas e agulhas?) do poeta. De resto, confirma a sua dependência e passividade... Um grande Homem, o poeta! :)
Lá continua a fazer o inventário do aspecto "passivo" de Mário Sá Carneiro, o Francisco gosta mesmo disso. Fazer clínica aos poetas. Bah!
Quando voltar a pensar, passo por aqui.
Hummm... análise clínica dos poetas tb é "giro": a noção de dor do poeta é consistente e profunda. Só que não posso explicitar todo esse universo. :)
Elsinha
Não fique amuada, porque tudo isso está na poesia do "Sazinho" e ele quis ser entendido 20 anos mais tarde: as "catedrais" do eu são labirintos e eu procuro um caminho seguro nesses labirintos, lançando pontes ou ligando escadas. O poeta sente no túmulo uma lufada de ar fresco: o "bolor" que o cobriu de vida e que o acompanhou na morte desaparece com aquilo a que chama análise clínica. Ar fresco, verdade explicitada, renascer poético... :)
Ainda bem. Ficam para si essas meditações. Como leitora, dispenso-as. O Francisco fala dos "engenheiros", mas a sua cabeça é igualmente maquinal. Fale de ciência!
Mas qual "amuada", estou-me nas tintas para aquilo q o F. pensa de Sá-Carneiro, como amiga lhe digo q é n é interessante e é patético querer "libertar" o poeta. Quem se julga? Santinho dos gays ostracizados? A arte e a poesia não se analisam a luz tão corriqueira.
"LGTB power" bla bla tretas
Ok, Else, mas a compreensão da poesia exige que se pense aquilo que nela é dito. Se o universo de Sá-Carneiro é uma clausura, compete ao seu leitor pensá-la; caso contrário, é fingir que no reino de sua majestade tudo corre bem, quando há sofrimento que as pessoas procuram evitar. Dar a palavra ao sofrimento é libertá-lo dessa prisão e mostrar que o mundo pode ser mais respeitador e diferente daquilo que é: um mundo que amordaça as pessoas por serem diferentes da ditadura do vulgar e da hipocrisia.
Além disso, é libertar o poeta da "loucura" que lhe possa ser atribuída: ele não estava a fingir que era destituído de eu, mas sim a "fingir" a dor em que se afundava, sem encontrar uma voz amiga capaz de o ajudar a salvar-se. E, quem sabe se ainda hoje não existem pessoas que temem dizer o seu sofrimento? E isto porque a boa consciência instalada não querer ser incomodada e acordada do seu sono da in-diferença!
Gosto de lutar por causas nobres e contribuir para a mudança e a construção de um mundo melhor. Escutar os que sofrem ou sofreram é dar-lhes voz, fazer eco das suas vozes silenciadas, na esperança de que venham a ser escutadas e que não tenham morrido em vão! É o que penso! A poesia não é somente o veículo dos que gostam ornamentar a sua vida com palavras que não compreendem nem querem compreender. Como dizia Antero de Quental ou Brecht, a poesia pode ser a arma de uma mudança de paradigmas!
E como é que isso acontece? Explique-me, aí do alto da sua consciência "comprometida".
Dizer que Mário Sá Carneiro era gay e que sofria com isso, n vejo onde é que resida daí a liberdade. A vida é sofrimento e dor. Não é por sairmos todos do armário e ficarmos histéricos que o mundo se torna um sítio mais fácil para se viver.
Sim, falta pensar a dor do poeta, em todos os seus meandros e "imagens", as suas catedrais interiores, mas essa é uma tarefa difícil de levar a cabo no post: os poemas em que me apoio são longos e o poeta vacila entre a fuga e o regresso, embora o pensamento da morte apareça desde logo instalado e o barco acabe por naufragar: Sá-Carneiro não terminou a travessia, acabou com a dor no suicídio que foi previamente pensado.
A noção de tempo do poeta é aparentemente desconcertante: para ele, tudo é passado, isto é, já passou; parece negar o futuro, mas este ser tudo passado surge quando já se está resolvido a terminar com a dor...
Desculpai esta intromissão no vosso interessante diálogo, mas foi o que me saiu.
Homo labyrinthicustua mente é um cibernético labirinto
qual ave sulcando suavemente os ares
em busca de um império
cercado pelo mistério
para dele fugir e te libertares
daquilo que és: tu próprio o labirinto
Homo labyrinthicustua mente é um cibernético labirinto
qual ave sulcando suavemente os ares
em busca de um império
cercado pelo inefável mistério
para dele fugir e te libertares
daquilo que és: tu, o teu próprio labirinto
Augusto Cardeal
De facto, o universo interior do poeta é um labirinto e, ele próprio, usa essa imagem, bem como a da escada, da ponte, do barco, etc.
Penso que a Else tema que a leitura que faço corre o risco de perder o que é poetizado. É uma polémica antiga que opôs Benjamin a outros "leitores de poesia". Porém, o problema que transparece na poesia de Sá-Carneiro é o da identidade e o mundo que elabora não é "o mundo", mas "um mundo", talvez o mundo de um traidor de si mesmo. Mas, como já tinha dito, é quase impossível elucidar essa traição de si num post.
A conversa é fundamental para manter a identidade e o poeta procura isso na e pela sua poesia: conversar com os outros em busca de ecos, outra imagem por ele usada. Silenciar essa tentativa desesperada de conversar do poeta é silenciá-lo, é não escutá-lo, é matá-lo outra vez...
Cheguei agora da FNAC (NS), onde vi um livro intitulado «A Vida Sexual de Fernando Pessoa» (palimpsesto), e que poderá interessar a alguém que aborda esta temática...
No seu lugar, comprei (saidinho agora mesmo): «Citações e Pensamentos», pois interessa-me mais o «idear» do poeta do que propriamente o seu «sentir» (embora o «sinta» (ou possa sentir) na leitura da poesia --, e menos ainda o que pensam os outros do seu «sentir»), do qual aqui fica um pequeno trecho que aborda «o problema da sinceridade do poeta», pp. 116-17:
«O poeta superior diz o que efetivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir.
Nada disto tem a ver com a sinceridade. Em primeiro lugar, ninguém sabe o que verdadeiramente sente [...]. Tanto assim é que não creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais que uns quatro ou cinco poetas que dissessem o que verdadeiramente, e não só efetivamente, sentiam.
[...]
O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero no mundo.»
Ideias Estéticas - da Literatura
Julgo ter essa obra noutra editora e com o título "Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literária". Não sei, vou ver...
Encontrei esta afirmação do Pessoa:
"Um assunto sexual deve ser tratado em arte de modo que não suscite desejo. Para suscitar desejos, serve melhor uma fotografia pornográfica".
Não encontro a citação, mas algo idêntico na secção "Sobre Poesia".
Pois, essa ideia de Pessoa, não sei se fará sentido hoje, na nossa sociedade consumista e sexista... Só a «psicologia do desejo, ou da fruição» e o marquetingue ideológico poderão responder...
[Aparte: olha, comentei o teu artigo «Inveja e Psicopatologia Portuguesa» no «CyberBiologia...». Se quiseres dar uma vista de olhos...]
Já li o teu comentário e concordo no sentido de ser necessário deixar uma porta aberta ao subterrâneo e ao futuro, evidentemente. Se há uma profecia, devemos cumpri-la e, de certo modo, tenho procurado essa energia a partir de Ernst Bloch, relendo a nossa história. Procura conservar a esperança...
Recorri a Klein para explicar a inveja que mina as nossas relações, mas sem pretender esgotar o tema, porque sei haver outras leituras.
Infelizmente, por falta de tempo, não posso desenvolver mais este post, que considero concluído. Havia muito mais trabalho a realizar, mas talvez o que foi dito seja suficiente para estimular futuras clarificações que foram aqui omitidas. :)
André
Parabéns e desejo-lhe muitas felicidades. Feliz aniversário!
Saudosos cumprimentos.
Em relação à crítica de fundo que Fraulein Else me dirige, nesta leitura de Sá-Carneiro, respondo com a voz de outro poeta português:
"Se a existência é uma incessante mudança, o móvel equilíbrio do ser implica uma abertura aos outros sem preconceitos nem fantasias deformadoras" (António Ramos Rosa)
Ahah! Muito bem.
Mas fantasista deformador é o F., que "obriga" o Sá-Carneiro a assumir (supostamente) a sua homossexualidade, de modo a "libertar-se".
Tem preconceitos a dois níveis, a saber, primeiro, numa visão da homossexualidade como noção política de normalização (uma visão muito capitalista, aliás, na detenção da individualidade), segundo, a presunção de que a verdade liberta. A verdade não liberta de nada, tal como conhecer a causa do trauma não cura a neurose, como dizia Freud. Enfim, o seu método de meditação da poesia de Sá-Carneiro é tecnicista e não o subscrevo, é isto.
Olá, Francisco! Grato pela lembrança. Um abraço!
Olá André, nascido a 13 de Maio, o dia da aparição da Virgem...
Estava para fazer um post sobre Vinicius de Moraes e as suas figuras femininas, mas não tive tempo para o alinhavar, até porque descobri um outro amor no poeta... Fica para outra oportunidade!
Else
Atribui-me dois preconceitos que, no sentido de Gadamer, não orientaram esta leitura:
1. Não tenho uma noção da homossexualidade como política da normalização e muito menos capitalista, mas não vejo qual o prazer sádico de negar a essas pessoas uma vida aberta ao mundo, não vivida na clandestinidade. Para puro gozo sádico nega-se o seu direito à liberdade e à dignidade?
2. Não disse que a verdade liberta, embora ajude a clarificar a mudança social desejada. O meu objectivo foi resgatar a poesia de Sá-Carneiro e trazê-la para a nossa companhia, desvelando o que tem sido sistematicamente esquecido. Desvelo o mundo que fundou e que foi esquecido pelos seus "analistas". Reclamo e actualizo para o nosso tempo a verdade do seu mundo...
Ok, então, primeiro: não há prazer sádico em perceber Sá Carneiro como homossexual reprimido e ignorá-lo. Pura e simplesmente não acho que esse facto seja relevante para reflectir a sua poesia. Segundo: não sei se sabe, mas a sua leitura não tem nada de original, a pretensa homossexualidade de Sá-Carneiro já saltou aos olhos de especialistas.
Enfim, n vejo nada de nobre e utópico no que sustenta, antes pelo contrário, releva da tendência hodierna de sexualizar a subjectividade e querer detê-la em equações e funções demasiado simples.
Não estou seguro da existência da leitura que faço do poeta e, sobretudo, nos termos em que faço, porque eu não refiro a homossexualidade do poeta como coisa exterior ao próprio, como um estigma: leio essa homossexualidade no seu fazer poético, o que é diferente de dizer que ele era gay.
Quanto à "sexualização da subjectividade", é difícil negá-la, porque o humano é um ser sexuado: a dimensão sexual da subjectividade está sempre presente, não é uma exterioridade. E essa dimensão ganha relevância quando a poesia diz um amor que não tem nome: "nomeia" o reprimido pela sociedade, sem lhe dar um nome específico. A minha leitura tem em conta diversas identidades: a heterossexual e a transexual poetizada que indicia a homossexual. Se outro especialista tratou deste assunto nestes termos, desconheço-o, mas deve ter sido ressonância mórfica: uma estranha coincidência! :(
Aliás, negar a sexualidade é o mesmo que aceitar o heterosexismo, mas a pureza do heterosexismo é deveras impura: é monopólio da sexualidade exclusiva, portanto, negação das diferenças.
E como compreender o "drama" do poeta sem levar em conta os conflitos interiores das identidades? Apagar tudo isso da sua poesia é matá-lo uma segunda vez! Francamente, não compreendo o seu "purismo assexual", isto é, heterosexista! :(
Bom, é óbvio q n sou "heterosexista", portanto nem me vou debater por aí.
O que eu acho é que o Francisco toma como certo que a expressão poética de Sá Carneiro coincida com as suas emoções e desejos reais - será que sim? Como pode ter a certeza disso? Os artistas imaginam também emoções, experiências, etc. Logo, é uma leitura que me parece superficial.
Além disso, e repetindo-me, mesmo admitindo que sim, que Sá Carneiro na sua poesia exprimia a dor de uma exclusão forçada, por que é que as condições da sua vida devem ser atendidas quando o que importa é a poesia em si?
E mais uma vez lhe digo que a sexualidade binária do F. é q é muito básica. Eu não falo de homossexualidade, mas tb n falo de heterosexualidade. Para si só existe esta tensão dialéctica, para mim existe muito mais q isso e, daí, que seja relutante em admitir esta sua leitura.
Tensão dialéctica sem síntese, claro! (A sua)
Antes de tudo, um esclarecimento: eu disse logo no início que a homossexualidade do homem real chamado Sá-Carneiro não me interessava: o que interessa é a tensão ou tensões que se nomeiam na sua poesia.
A tensão entre heterosexualidade e homossexualidade revela-se no poeta e é com essa tensão que se debate o Eu/Rei do poeta. Como o resolve? Criando uma figura de papel: o querer ser mulher, a identidade transexual.
Ora, essa tensão só é possível quando o indivíduo incorpora dois mundos discordantes: o heterosexista que lhe diz que é homem hetero e o homossexual que rejeta essa pretensão hetero. No poeta, a identidade hetero é desejo errado, porque entra em conflito como o outro que não se deixa acorrentar. Se ele não tivesse incorporado essa discordância, não haveria tensão, mas esta existe e é solucionada poeticamente pelo desejo de ser mulher, onde se revela o carácter passivo da sua homossexualidade. Ora, este desejo é uma fuga que o afunda cada vez mais na crise lamentável. Portanto, não lhe atribuo nenhum binómio, mas sim o que descubro na sua poesia, terreno que nunca abandonei, excepto quando refiro o suicídio...
A identidade transexual poetizada é uma espécie de luto, luto da heterossexualidade e luto da homossexualidade, mas tb é uma ponte; nela revela-se a passividade da homossexualidade que no poeta não se deixa acorrentar.
Ok, então reoriento a minha crítica, porque "querer ser mulher" significa para si querer ser passivo, indiciando uma homossexualidade frustrada.
Ora, não lhe parece que é uma interpretação possível, é certo, mas de curta visão?
Por exemplo, se aplicarmos a interpretação lacaniana das obras de arte, o "querer ser mulher" pode ser o desejo de regressar ao imaginário, fase anterior à aquisição (masculina) da linguagem, estar mais próximo, assim, do inconsciente, a fonte da imaginação para o poeta. A simbologia da mulher é mais profunda do que a "passividade".
E, indo mais longe, talvez possa dizer que o desejo de ser mulher é um desejo de renascer, de voltar à vida na figura de mulher (a mulher grávida) e, nesse caso, o conflito estaria resolvido por definição...
Mas em tudo isso revela-se a sociedade heterosexista que trata a homossexualidade como desejo errado, quando na verdade a heterossexualidade é que é, à luz interior, o desejo errado, porque não coincide com o Outro ue não se deixa acorrentar: quer ser no mundo aberto...
Pode interpretar esse desejo de ser mulher como fase do imaginário: é o que é, uma figura da imaginação do poeta...
Talvez daí o "ter sido (todo) ontem"! Seria necessário pensar essas "conexões"...
Destaco a passividade porque ela está demasiado marcada nos poemas, porque, se fosse mais "actividade", usaria outras imagens e talvez tivesse construído uma identidade bissexual, mas não descobri esta última...
Ah, afinal encontrei a frase referida pelo Augusto Cardeal:
"O poeta superior diz o que efetivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir.
"Nada disto tem a ver com a sinceridade. Em primeiro lugar, ninguém sabe o que verdadeiramente sente (...). Tanto assim é que não creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais que uns quatro ou cinco poetas que dissessem o que verdadeiramente, e não só efetivamente, sentiam.
(...)
O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero no mundo."
A frase é assinada por Álvaro de Campos, o autor de uma estética não-aristotélica, e o texto "Nota ao Acaso" está incluido em "Textos de Crítica e de Intervenção" da edição das Obras Completas de Fernando Pessoa das Edições Ática.
Num outro texto, ele diz: "Fingir é conhecer-se" e "estar é ser". A última frase vai ao encontro do Heidegger que medita a poesia. A primeira lança em jogo o fingir, isto é, o próprio Pessoa. :)
Sim, eu também tenho esse livro (não aqui, mas noutra casa, onde tenho a minha biblioteca); as referências que dei vêm no livro que citei (o que, aliás, acho que não está correto, pois nem a bibliografia que o compilador usou tem...).
Se «o Poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente», poderá aceitar-se que «fingir é conhecer-se»; no entanto, acho que no particular da expressão «estar é ser» (às vezes intermutável na língua portuguesa), isso poderá ter diversas leituras: estar é ser... o quê? Fingidor, o Dasein ou o «estar no mundo» heideggeriano ou, antes, ser visto segundo o conceito (de conflito) de Jaspers?
Este Pessoa é um quebra-cabeças (um labirinto de onde só sai -- ou entra -- quem tiver as chaves do plano para abrir os selos do seu mundo misterioso, o que equivale a alcançar o centro do seu pensamento... pensamento que faz dele o maior poeta do séc. XX). E até acho um pouco estranho que figuras de topo da psicologia como Freud e Jung nunca se lhe tenham referido (que eu saiba), pois teriam aí um «case study» bastante interesssante para as suas investigações...).
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