segunda-feira, 11 de abril de 2011

Lucien Goldmann: O Teatro de Jean Genet

«Ora, a problemática fundamental das sociedades capitalistas modernas não se situa já ao nível da miséria nem mesmo ao nível de uma liberdade directamente limitada pela lei ou pela coacção exterior, mas sim no estreitamento do nível de consciência e, por isso mesmo, na tendência à redução dessa dimensão fundamental do homem que é a do possível. Tal como diz Marcuse, se a evolução social não mudar de orientação, o homem não viverá e não agirá senão cada vez mais numa única dimensão, a da adaptação à realidade, e não na outra, a da superação». (Lucien Goldmann)

A evolução social do capitalismo seguiu o rumo unidimensional previsto por Marcuse, o do estreitamento do nível de consciência do possível, mas com a realização de uma condição social objectiva não prevista pela teoria crítica da sociedade: o regresso da pobreza. Herbert Marcuse foi vítima daquilo a que chamo a alucinação da economia mágica: as mentes reduzidas vivem ou, pelo menos, viveram até aqui no mundo mágico do cartão de crédito. A crise financeira de 2008 quebrou o feitiço do cartão de crédito e da vida falsa que ele permitia comprar, devolvendo os indivíduos unidimensionais à sua miséria cognitiva e material: os portadores do pensamento unidimensional - resultante do estreitamento da consciência do possível - não sabem lidar com os efeitos nefastos e adversos da crise financeira e económica. Os animais metabolicamente reduzidos - aqueles indivíduos passivos que só sabem consumir e devorar o mundo, vivendo para não morrer - tornaram-se incapazes de pensar novas alternativas sociais e de as realizar pela praxis revolucionária: destituídos de personalidade e privados de instrumentos teóricos, eles aceitam sem revolta o seu destino como uma fatalidade. A indigência mental e cognitiva destas novas máquinas desejantes que se comportam como zombies coloca um sério desafio à teoria crítica: a teoria da reificação já não é suficiente para pensar a situação de alienação do homem no mundo capitalista e o projecto político que dela deriva deve ser completamente repensado. O que está em causa é a perda da humanidade: os homens que abdicaram da sua humanidade para se entregar completamente às trocas metabólicas com a natureza devastada estão aquém da História. A regressão consumada inviabiliza o potencial político revolucionário da teoria da alienação: onde já não há homens humanos alienados, não pode haver salvação. O elemento regressivo tematizado pela teoria do desenvolvimento de Engels e de Lenine triunfou fatalmente no mundo capitalista tardio, revelando o seu carácter necrófilo: a dupla-face do progresso não permite fechar e concluir definitivamente a História, como defende a sua representação simplista que coloniza e sacrifica o futuro; em vez disso, convida os homens a conquistar o sentido da sua história que permanece aberto. O sentido da História deve ser conquistado pelos homens, porque ele não está escrito previamente num destino e num determinismo: o possível e o impossível enfrentam-se na arena da história e o possível pode fracassar. A ironia da história reside precisamente na distância que se estabelece em cada geração entre o desejado e o realizado. Enquanto movimento de abertura total que medeia entre os opostos, a dialéctica recusa-se a fechar a história e a despedir-se do passado como algo morto: a abertura da dialéctica realiza-se não só na busca de um mundo melhor - um mundo cuja possibilidade real não está garantida, mas também na renovação contínua da herança. Ao olhar para trás, a dialéctica procura libertar o futuro. A conquista do futuro implica o resgate e a redenção integral do passado: aquilo que o neoliberalismo se apressou a enterrar deve ser trazido à nossa presença se quisermos tentar salvar a aventura humana neste planeta.

No ensaio «Le Théâtre de Genet: essai d'étude sociologique», Lucien Goldmann (1970) - discípulo de Georg Lukács - analisou quatro peças de teatro de Jean Genet: Les Bonnes (As Criadas), Le Balcon (A Varanda), Les Nègres (Os Negros) e Les Paravents (Os Biombos). Estas quatro peças de teatro têm uma estrutura comum, isto é, partilham os seguintes elementos: as personagens são colectivas (1), as relações entre estas personagens são relações de oposição - o conflito entre dominados e dominantes (2), o conflito implica dois elementos sentimentais contraditórios - o ódio e a fascinação dos dominados pelo universo dos dominantes, restando-lhes no final a realização do ritual (3), e o real é sempre mentiroso, inautêntico e odioso quando confrontado com os valores autênticos do ritual imaginário (4). A acção histórica constitui o tema fundamental destas peças de Genet e, por isso, as forças activas não são os indivíduos mas sim os grupos sociais. Com excepção de Saïd em Les Paravents, as personagens são colectivas: o Senhor e a Senhora e Solange e Claire em Les Bonnes, a Varanda e a gente humilde que vem à Casa das Ilusões em Le Balcon, os Negros e os Brancos em Les Nègres, e os Colonizadores, os Revoltosos e os Mortos, sem falar do Exército e das Prostitutas, em Les Paravents. As relações entre estas personagens colectivas são relações de oposição que tomam a forma do conflito entre dominados e dominantes, e os sentimentos dos dominados para com os dominantes compõem-se de dois elementos contraditórios - o ódio e o fascínio que geram e garantem a coerência do universo de cada uma das peças de teatro. Assim, por exemplo, as Criadas querem matar a Senhora mas não conseguem fazê-lo e os Revoltosos querem subverter a ordem estabelecida mas não conseguem destruí-la: o fracasso das tentativas dos dominados para liquidar os dominantes justifica o seu fascínio face ao poder dos opressores. A única coisa que os dominados podem realizar é o ritual, mediante o qual fingem matar os dominantes e, ao mesmo tempo, ser os dominantes. O ódio inspira o elemento da destruição, enquanto o fascínio conduz ao elemento da identificação deste ritual: as Criadas fingem ser a Senhora e matar a Senhora, e a Gente Humilde finge ser os poderosos e destruir os poderosos pela revolução. Neste universo das peças de teatro de Genet, o mundo real é sempre mentiroso, inautêntico e odioso: quer dizer que só a aparência contém a verdade. Investido nos e pelos valores autênticos, o imaginário do ritual é absolutamente humano e válido em si mesmo, embora não seja bem sucedido na transformação da realidade. Cada uma das peças de teatro de Genet enfrenta a problemática da passagem do imaginário ao real. Porém, a impossibilidade dessa passagem não permite às personagens comprazer-se nesse universo imaginário, o que gera o seu desespero: o suicídio das Criadas, a mutilação de Roger (A Varanda) ou o final inusitado de Les Paravents: o tiro de espingarda, disparado por um dos novos Senhores, que mata Saïd - o herói que começa a Revolta contra a ordem antiga sem no entanto ser reconhecido pela nova ordem.

Como é evidente, a análise do universo das quatro peças de teatro de Genet não pode eclipsar a análise das diferenças: cada peça institui um mundo e Lucien Goldmann abordou as diferenças entre os quatro mundos. Em As Criadas, Genet coloca no centro a autenticidade do imaginário em oposição ao carácter sórdido da vida real. Numa passagem da peça, as Criadas e a Senhora dizem a mesma coisa - o seu amor pelo Senhor e o facto de o seguirem até ao desterro, mas a fala das Criadas é sempre autêntica, dramática e humana, enquanto a fala da Senhora é ridícula e odiosa. As Criadas fingem - todas as tardes - ser a Senhora e matar a Senhora, retomando o ritual em que Claire interpreta o papel de Senhora e Solange o papel de Claire: elas afirmam amar o Senhor com um amor autêntico e querer segui-lo no caso de ser deportado. No entanto, foram elas que denunciaram o Senhor, fazendo com que fosse preso. Mas, como o Senhor foi libertado, as Criadas correm o risco de ser presas por falsa denúncia: o seu ritual quotidiano é interrompido e elas são forçadas a reconhecer a sua derrota. Tentam em vão envenenar a Senhora, mas esta é demasiado forte para ser destruída: as Criadas destroem-se a si próprias para triunfar no imaginário. No final da peça, a Senhora é de tal modo magnânima que lastima a morte da pobre Claire, envenenada pela malvada Solange. E esta responde-lhe: «Deixei de ser a criada, eu sou Mademoiselle Solange». A peça A Varanda segue o mesmo esquema: À varanda encontram-se os poderosos - o Chefe da Polícia e Madame Irma, a proprietária, e, por baixo, a Gente Humilde que vem à Casa das Ilusões representar o papel daqueles que imagina serem poderosos - o papel de General, o papel de Bispo e o papel de Juiz. A peça narra uma evolução social que ocorreu efectivamente na sociedade ocidental depois da ameaça revolucionária dos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial e da derrota das forças favoráveis à revolução. As cenas da Casa das Ilusões em que a Gente Humilde interpreta os papéis do Bispo, do Juiz e do General mostram que o ritual se estrutura de maneira homóloga ao de As Criadas: as essências autênticas destas três figuras são incompatíveis com a nova realidade. As figuras reais não realizam as suas essências imaginárias, e a Gente Humilde é levada a tomar consciência do novo poder instalado na Casa das Ilusões no decurso da Revolta. Após a morte do bispo, do juiz e do general reais, os verdadeiros poderosos da Varanda - o Chefe da Polícia e Madame Irma - aproveitam a Gente Humilde para os substituírem, fazendo deles realmente um bispo, um juiz e um general. Porém, no final da peça, as pessoas que iam à Casa das Ilusões para representar essas três figuras começam a pedir para interpretar o papel de Chefe da Polícia, a força organizacional todo-poderosa que derrotou a Revolta: Roger, o chefe revolucionário, exige a organização e opõe-se aos que defendem o sonho, a espontaneidade e a autenticidade. Mas depressa compreende que é apenas o Chefe da Polícia na aparência, quando na verdade pretendia ser realmente o Chefe do Executivo. Ao compreender esta discrepância entre o imaginário e o real, Roger mutila-se, isto é, suicida-se, e o Chefe da Polícia real - o poder da organização contra-revolucionária - fica «livre» para reinar mais outros dois mil anos.

Como já vimos, as quatro grandes peças de teatro de Genet mostram o seu alinhamento político à Esquerda Radical que se operou quando começou a gravitar à volta de Jean-Paul Sartre e da revista Les Temps Modernes (Gallimard): a descoberta da luta de classes é transposta poeticamente para a sua obra, introduzindo nela a crítica social e o elemento da revolta contra o sistema estabelecido e do não-conformismo. Em Os Negros, Genet coloca à varanda os Brancos: o Militar, o Magistrado, o Eclesiástico, a Rainha e o Criado. O tema central da peça é a oposição radical entre os dominados - os Negros - e os dominantes - os Brancos. No início, os Negros representam o ritual periódico do assassinato de uma mulher branca, pelo qual foram condenados pelos Brancos. Os Negros acabam por matar simbolicamente um outro Negro que os traiu, e, quando Ville de Saint-Nazaire volta à cena, anuncia que, após essa execução, virá um novo chefe que conduzirá os Negros à vitória. A partir deste momento, o ritual dos Negros altera-se substancialmente e a peça termina com a destruição imaginária dos Brancos. Apesar de ser uma mera vitória no plano do ritual do imaginário, ela existe e substitui a derrota. Os participantes Negros não querem interpretar o papel que lhes cabe no ritual do assassinato, mas Archibald consegue convencê-los a participar: Vertu e Village explicam-lhe que se amam e que o seu amor lhes basta, não sentindo por isso necessidade de participar no ritual. Archibald responde-lhes, dando-nos a chave da peça: «Vocês não podem amar-se por não poderem fazê-lo senão com palavras brancas. Ora, para poderem usá-las, vocês deveriam estar não na cena mas na sala, entre os brancos que não vos aceitam. Vocês são Negros, e é impossível amar-se entre negros, entre dominados, no mundo daqueles que vos dominam e com palavras que não são as vossas. É necessário, antes de tudo, um novo mundo e, correspondendo a esse mundo, uma nova linguagem, para poderem realmente viver um amor que seja vosso, um amor negro». No final da peça, quando o ritual está consumado e os brancos foram executados, Vertu e Village permanecem em cena e, no momento em que Village deseja ser abraçado, trocam estas palavras: «VERTU (a Village). Todos os homens são como tu: imitam. Não poderás inventar outra coisa? /VILLAGE. Por ti, inventaria tudo: frutos, palavras mais frescas, carros de mão com duas rodas, laranjas sem caroços, camas de três lugares, uma agulha que não picasse, mas gestos de amor, isso é mais difícil... enfim, se insistes... /VERTU. Ajudar-te-ei. O certo é que, pelo menos, não poderás enrolar os teus dedos nos meus longos cabelos louros». Este final só é possível porque a situação se alterou: «Existe um novo dirigente negro e o ritual insere-se numa luta que conduzirá talvez à vitória» (Goldmann). Embora não opere a passagem da derrota dos dominados à sua vitória real e à derrota dos dominantes, a peça mostra a possibilidade virtual dessa vitória dos dominados, razão pela qual pode aparecer no amor heterossexual entre Vertu e Village a esperança de encontrar novas palavras que lhe permitam realizar-se enquanto amor negro.

A peça Os Biombos merece um destaque especial, não só por causa da sua complexidade intrínseca, mas também pelo facto de reintroduzir novamente o elemento da homossexualidade que esteve ausente nas outras três peças de Genet. O tema central de Os Biombos é a oposição entre os dominados e os dominantes, entre os Colonizados e os Colonizadores, mas o assunto é, desta vez, a vitória dos dominados. No decurso da acção da peça, aparecem claramente definidas três ordens: a ordem dos dominados e dos dominantes, já nossa conhecida, a ordem dos revoltados vitoriosos e a ordem dos mortos. A estas três ordens opõe-se um grupo não-idêntico e hierarquizado, o grupo formado por Saïd, a sua mulher, Leïla, e a sua mãe. Este grupo opõe-se a todas as ordens que encontra no decurso da acção, tal como sucede com os outros dois sectores da peça que enquadram a acção principal: o Bordel e o Exército. Mas, antes de abordar as acções paralelas do Bordel e do Exército, convém elucidar a estrutura da acção principal. Inicialmente, temos a ordem da opressão na qual a autenticidade só existe no imaginário. Segue-se a revolta começada por Saïd que recusa aliar-se com os outros rebeldes, permanecendo isolado para salvar o seu não-conformismo e a sua autonomia individual. E, por fim, temos a vitória dos revoltosos: os revoltosos tornam-se dominantes após a vitória e ocupam o lugar dos antigos poderosos, cuja ordem da opressão é substituída por uma nova ordem que deveria construir um mundo livre. Porém, os novos senhores questionam o estatuto de Saïd na nova ordem: estão dispostos a perdoar, aceitando Saïd e apagando o passado. Ommou, uma personagem colectiva e simbólica, lembra-lhes que o perdão não é suficiente para justificar a nova ordem que eles estão prestes a criar: a revolta só pode ser justificada pela construção de um mundo livre, onde o não-conformismo tenha o seu direito e a sua função reconhecida. Mas os novos senhores não compreendem esta perspectiva e um deles dispara um tiro de espingarda que mata Saïd. Saïd sempre foi mais «anarquista» e radical do que Leïla e a sua Mãe, a última das quais participou efectivamente na resistência e na revolta. Após ter entrado no reino dos mortos, a Mãe aguarda a chegada de Leïla e do seu filho. Como não aceitam o reino dos mortos, Leïla e Saïd recusam entrar nele, mas, enquanto Leïla envia o seu véu, Saïd não envia nenhum sinal, passando directamente ao nada: o seu não-conformismo radicalizado abre uma esperança de futuro, afirmando o mundo da liberdade no seio de um mundo não-livre.

A acção principal da peça Os Biombos - as relações entre o grupo de Saïd e as três ordens - é enquadrada por duas acções paralelas: a do Bordel e a do Exército. A história do Bordel acompanha de perto a sucessão das três ordens e as duas transformações que operam a passagem de umas às outras. Na ordem da opressão, o Bordel é o universo do ritual e do imaginário, onde os colonizados encontram a única autenticidade essencial que pode existir num mundo onde os dominados são explorados e oprimidos pelos dominantes: Warda é a prostituta que representa no Bordel o universo do imaginário autêntico. Posteriormente, as prostitutas comprometem-se com a luta revolucionária, sendo respeitadas, cumprimentadas e recebidas pelos outros combatentes como membros da sociedade. A sua função social na luta contra a ordem da opressão torna-se real: o combate revolucionário substitui o imaginário e Malika encarna a resistência no Bordel. Porém, após a vitória dos rebeldes e o aparecimento da ordem dos mortos, a nova sociedade nega todo o valor ao Bordel: Warda é morta, Malika é esquecida e uma prostituta chegada do Norte apodera-se do lugar que elas ocupavam no Bordel. Como já vimos, a revolta dos resistentes criou um mundo que recusa o não-conformismo e o imaginário: os revoltosos tornados poderosos comportam-se como os soldados que combatiam em defesa dos interesses dos antigos dominantes. A nova ordem que deveria instaurar o reino da liberdade fecha-se ao imaginário da autenticidade e não tolera o não-conformismo. Algo semelhante poderia ser dito em relação à acção paralela do Exército, mas o que importa aqui destacar é a relação homossexual entre o Tenente e o Sargento do Exército: o episódio da peça que mais escandalizou os críticos literários puritanos. O tema da homossexualidade encontra-se presente nos romances de Genet - Le Journal du Voleur (Diário de um Ladrão), Notre Dame des Fleurs (Nossa Senhora das Flores) e o famoso Querelle de Brest (Amar e Matar), por exemplo, bem como na sua primeira peça de teatro, aliás medíocre: Haute Surveillance. Em As Criadas, A Varanda e Os Negros, os amores importantes são amores heterossexuais: os amores das Criadas pelo Senhor (amor autêntico) ou pelo Leiteiro (amor sórdido), o amor de Roger por Chantal, e o amor de Village por Vertu. Em Os Biombos, ao lado do amor heterossexual de Saïd por Leïla, aparece o amor homossexual do Tenente pelo Sargento do Exército. Durante o período pré-teatral, Genet estruturou o seu universo literário com valores - amor, coragem, amizade, etc. - que eram reconhecidos pela sociedade estabelecida, e, para tornar as suas obras não-conformistas e inaceitáveis aos olhos puritanos da sociedade existente, foi obrigado - por razões puramente estéticas e não apenas biográficas - a acrescentar a essa estrutura de fundo uma outra dimensão, a dimensão oblíqua, como lhe chamou Goldmann: «amor sem dúvida, mas amor homossexual; coragem, mas coragem para o crime; amizade, mas amizade no vício e nos comportamentos que a sociedade condena e assim por diante». Porém, a partir do momento em que descobre o universo da luta de classes de Karl Marx, Genet já não precisa desta dimensão oblíqua para tornar a sua obra inaceitável para a sociedade estabelecida: a homossexualidade desaparece bruscamente nas suas obras de teatro - As Criadas, A Varanda e Os Negros - para reaparecer novamente no Exército de Os Biombos. Nesta peça de teatro, o Exército perdeu a guerra e, como já não luta pela vitória, limita-se a celebrar um ritual - o da guerra imaginária. Esta situação dá-lhe um valor positivo e autêntico e, para evitar a valorização excessiva da instituição militar que existe ainda na sociedade, Genet introduz novamente a dimensão oblíqua. Para salvaguardar o ambiente familiar da sua pátria, cada um dos militares do Exército não deve morrer sozinho num mundo estrangeiro e, por isso, quando o Tenente morre, os outros soldados sacrificam os valores que tinham conservado para tornar menos dolorosa e menos solitária a morte do Tenente e a sua própria morte. O romantismo patético desta cena é neutralizado pela introdução da homossexualidade, que permite valorizar a autenticidade dos dominantes vencidos sem no entanto ceder ao poder normalizador da sociedade vigente. Uma sociedade livre só será verdadeiramente humana quando aceitar o não-conformismo em todas as suas esferas: o amor heterossexual deve libertar-se do heterosexismo e deixar ser - ao seu lado - o amor negro e o amor homossexual. A obra de Genet abre as portas à grande esperança que, na qualidade de docta spes, alimenta e orienta a luta pela construção permanente de um mundo melhor.

J Francisco Saraiva de Sousa