quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Filosofia e Diferenciação Sexual da Hiena Malhada

Os sábios da Antiguidade, entre os quais Aristóteles, acreditavam que a hiena malhada era hermafrodita. O erro era compreensível, porque a fêmea possui um clitóris tão grande quanto o pénis do macho e, tal como este, urina por intermédio do seu falo. Além disso, a fêmea parece não ter vagina, visto que, no decurso do acasalamento, o macho introduz o seu pénis na extremidade do clitóris e, mais tarde, as crias nascem por esta via clitoridiana, com consequências dolorosas e, frequentemente, fatais para a mãe.

Glickman & Licht (1987) ajudaram-nos a compreender como uma situação tão inusitada pôde estabelecer-se durante a evolução. As hienas nascem com esta aparência externa sexualmente monomorfa, embora as fêmeas tendam a ser maiores do que os machos. Foram sugeridas duas hipóteses: ou os dois sexos são expostos aos androgénios pré-natais (1), ou os seus tecidos epiteliais desenvolvem-se de forma masculina, quer os androgénios estejam presentes ou ausentes (2).

Os estudos do metabolismo dos esteróides da placenta da hiena fortaleceram a primeira hipótese. Nos outros mamíferos, a placenta aromatiza rapidamente os androgénios em estrogénios e esta transformação pode ser uma via para proteger a mãe e os fetos fêmeas contra os androgénios produzidos pelos machos fetais. Convém lembrar que, nos roedores, uma proteína plasmática impede os estrogénios circulantes de masculinizar o cérebro: a "alfa-feto-proteína". Como demonstraram Licht et al. (1992), a placenta da hiena é totalmente desprovida desta "enzima aromatase". Como a mãe hiena produz grandes quantidades de androstenediona (Glickman et al., 1987) e a placenta não pode converter esta hormona androgénica em estrogénios, todos os fetos recebem quantidades consideráveis de androgénios. Este facto pode explicar a razão da sua aparência masculina.

Um teste crucial para esta hipótese seria observar se, na hiena listrada, cuja fêmea não tem essa aparência de macho, a placenta tem uma actividade mais semelhante à dos outros mamíferos do que à da hiena malhada. Enquanto não se realizarem essas observações, parece ser provável que o cérebro da hiena malhada seja afectado pelos androgénios precoces, dado que as fêmeas crescem mais rapidamente e são mais agressivas do que os machos. A sua vida social está centrada em torno das fêmeas adultas, que são todas dominantes em relação aos machos.

Em termos etológicos, esta dominância das fêmeas quer dizer que elas são as primeiras a comer uma presa e que, fora da estação dos amores, não toleram ao seu lado a presença dos machos. Existe também uma hierarquia de dominância entre as fêmeas e as filhas das fêmeas de elevado estatuto social, na qual as últimas tendem a aceder primeiramente à alimentação e aos outros recursos. A pressão selectiva é, portanto, considerável para tornar as fêmeas agressivas, sobretudo em relação às outras fêmeas.
Além disso, descobriu-se que, nas hienas "criadas em cativeiro" em Berkeley, os recém-nascidos começam a lutar imediatamente após o seu nascimento. Eles nascem com dentes e utilizam-nos imediatamente para atacar os membros da ninhada. As fêmeas são particularmente agressivas, principalmente contra as suas irmãs. Os "estudos de terreno" também indicam que, no estado selvagem, é muito frequente que um recém-nascido mate um outro recém-nascido (Glickman & Licht, 1991). Ainda não se sabe se este excesso de agressão seja devido à estimulação do cérebro pelos androgénios pré-natais, mas, mesmo que esse seja o caso, as fêmeas acasalam-se e o seu cérebro, ao contrário do que sucede com as ratazanas androgenizadas antes do nascimento, não é permanentemente não-receptivo. Porém, o acasalamento da hiena malhada parece ser um combate angustiante, já que a fêmea tolera mal a proximidade do macho e este, por sua vez, alterna aproximações e afastamentos da sua parceira fisicamente mais poderosa.
Seja como for, estes dados sugerem que a ausência da enzima aromatase desempenha um papel fundamental na diferenciação sexual da hiena malhada. Se a sua ausência na placenta da hiena malhada produz fêmeas hiper-androgenizadas, então é provável que, noutros animais, o mesmo efeito possa ocorrer, donde resulta uma explicação provável de certos tipos de estruturas e de comportamentos sexuais, incluindo a orientação sexual.
De facto, o estudo da hiena malhada foi usado para testar a hipótese neuro-endócrina da diferenciação sexual do cérebro e do comportamento, portanto, das diferenças sexuais, mas estudos mais recentes parecem apontar para a existência de factores e de mecanismos genéticos, particularmente evidentes em certas espécies animais, que agem sobre a diferenciação sexual antes da produção e da entrada em cena da testosterona pré-natal. Por isso, o "modelo da hiena malhada" tem sido ultimamente «preterido» a favor do "modelo do carneiro", o qual parece fornecer uma explicação interessante da homossexualidade masculina humana, destacando o papel fundamental da aromatase na diferenciação sexual do cérebro e do comportamento, bem como na «determinação» da orientação sexual. Além disso, estudos recentes, recorrendo a procedimentos experimentais ultrasofisticados, têm mostrado que a diferenciação sexual da hiena malhada é um processo muito mais complexo do que se pensava inicialmente.
A história da ciência tem destas coisas: modelos que mereciam inicialmente a "confiança" da comunidade científica acabam por revelar a sua fragilidade e, em vez de parar, a ciência recorre a outros modelos para tentar uma explicação dos fenómenos em estudo, podendo mudar ou manter a mesma hipótese de trabalho encarada a uma nova luz. Este caso da hiena malhada, além de interessar à epistemologia, pode ajudar a filosofia a ler a sua própria história à luz das "diferenças sexuais" referidas pelos filósofos nas suas obras, sem encarar essas afirmações como "preconceitos" que devam ser ignorados e esquecidos, de modo a avançar tanto quanto possível com a nova Filosofia Sexual. (Este post é uma versão corrigida e alterada de outro post editado no meu blogue "NeuroFilosofia", com o título HIENA MALHADA: Um modelo animal. Não adianta ler esta primeira versão, porque contém um ligeiro erro corrigido aqui.)
ANEXO. Para ilustrar a necessidade de abrir este novo campo da pesquisa filosófica (a Filosofia Sexual), iremos apresentar um texto de Marco Túlio Cícero que revela que este romano já sabia delimitar o campo das diferenças sexuais, quer inter-sexuais, quer intra-sexuais. No seu tratado "Dos Deveres", Cícero escreve sem rodeios:
«A outra (personalidade) é atribuída pessoalmente a cada um de nós. Assim como, nos corpos, há notórias diferenças - alguns destacam-se pela velocidade na corrida, outros pelo vigor na luta, havendo mesmo em certas fisionomias laivos de dignidade (masculina) e em outras, encanto (feminina) -, assim as almas se caracterizam por distinções ainda mais acentuadas» (p.53).
Neste texto, Cícero refere-se apenas às diferenças individuais e às distinções que podemos observar entre os mortais (seres humanos), mas, mais adiante, nesta mesma obra, menciona também as diferenças sexuais e de género, uma das quais - a fisionomia - já é aqui notada. Não pretendemos analisar a teoria das diferenças sexuais de Cícero, mas apenas mostrar que a filosofia sempre esteve atenta a esta problemática da diferenciação sexual. Esta problemática deve ser retomada pela filosofia contemporânea e lida à luz da filosofia biológica, em particular da neuro-filosofia, e não à luz do construtivismo e do perspectivismo sociais, como sucede entre os literatos incultos ou pseudo-cientistas sociais, que confundem opinião metabolicamente reduzida, voluntarista e tola com ciência de rigor.
Filósofos tais como Aristóteles, Santo Agostinho, Aquino, Montaigne, Descartes, John Locke, Hobbes, David Hume, Adam Smith, Kant, Schopenhauer ou Hegel, para só mencionar estes nomes, abordaram várias vezes estes temas das diferenças sexuais, que a filosofia posterior tendeu a ignorar ou a abandonar ao esquecimento, delirando com o discurso do seu próprio fim e desconstruindo sistematicamente a sua história.

J Francisco Saraiva de Sousa

15 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Só agora me lembrei que a Papillon está no estrangeiro! :(

quintarantino disse...

Má sina ter nascer hiena malhada macho!
Digo eu.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Coitados dos machos! São completamente dominados pelas fêmeas! É um caso curioso entre os mamíferos: os machos subalternos em relação às fêmeas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas existem outras espécies em que as fêmeas são hiperandrogenizadas: a uma certa toupeira também exibe estas características: clitóris é um falo significativo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estes casos são interessantes em termos evolutivos: Como explicar estes fenómenos a partir da teoria da evolução por selecção natural? Muita controvérsia! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Na foto A, a fêmea foi tratada com um inibidor da aromatase; na foto B, não sofreu qualquer "tratamento". Fotos de Glickman et al. :)

Manuel Rocha disse...

Francisco,

Juro que nunca me passaria pela cabeça filosofar sobre os orgãos reprodutivos da hiena...:))

Brincadeiras à parte é uma abordagem muito pertinente para questionar determinados formatos do pensamento dominante... a analogia inusual é optima ferramenta para tentar desbloquear certos vicios de raciocinio e procurar respostas em locais insuspeitos e por vias nunca percorridas...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tenho estado a ler as últimas investigações sobre a hiena e, de facto, é um animal que desafia tudo, mesmo o pensamento dominante na biologia! Também estou intrigado com a hiena. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Logo que processe mais estudos sobre a hiena, prometo publicar novo post. Vou ver se posso publicar as ecografias... :)

André LF disse...

Gostei muito do seu post!
Talvez a hiena seja um animal mais complexo e interessante do que o homem.

André LF disse...

Retificando: A hiena malhada.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Quem sabe? Mas que é um animal curioso é e ainda não compreendido, apesar da técnica experimental ao dispor. Foi para desanuviar! Era já muita corrupção! :)

Vinícius Camargo Penteado disse...

Oi J.
Parabéns pelo seu blog, gostei muito da proposta e de alguns textos que já li. Estou começando a trabalhar nesse Universo virtual e referências como a sua só me fazem bem.
Espero que você visite outras vezes o Aopedavida
Provavelmente citarei novamente seu blog no meu.
Obrigado
Um abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Vinícius!

Sim, já visitei o seu blog e gostei muito. Sim, tomei conhecimento dele através do link - infelizmente fui obrigado a tirar as fotos da texto que refere. Obrigado pela visita!
Abraço

Fernando Vrech disse...

Diferenças de comportamento são aprendidas, não neguem esse fator. Buscar explicações biológicas ou fisiológicas para diferenças de comportamento entre gêneros é pura especulação; ruim na minha opinião. Já que as únicas diferenciações causadas pelos hormônios sexuais que estão comprovadas são físicas. Seria improvável, com a tecnologia atual, verificar supostas influências dos hormônios na aptidão cerebral ou no comportamento. Vocês reclamaram de pseudo-ciência, portanto não a pratiquem.