segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Academia das Ciências: Pensar o País

«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalépsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom (sic), e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta»: eis Portugal! (Guerra Junqueiro)
Em vésperas do arranque do Prós e Contras, considerado pelos próprios como "o maior debate da televisão portuguesa", Fátima Campos Ferreira abriu um fórum especial em directo da Academia das Ciências. A agenda centrou-se sobre a economia, a segurança, a educação, a ciência e a investigação e a questão geopolítica. Porém, como sucede nestes programas de televisão, o debate acabou por não seguir a agenda, deixando a tarefa proposta de "pensar o país" congelada para futura oportunidade. Um comportamento tipicamente português: Portugal é eternamente adiado e, de facto, enquanto forem as mesmas pessoas a saltar da Universidade para a política e da política para a Universidade, a Economia ou o escritório de advocacia, a questão será sempre adiada, porque a auto-crítica não faz parte dos "hábitos mentais" de tais arqui-figuras nacionais. Os autodenominados membros das autodenominadas elites nacionais são peritos em enterrar a sua própria responsabilidade no limbo do esquecimento. Por isso, conservo o pré-comentário que tinha feito à agenda deste programa, acrescentando algumas ideias avançadas no debate.
Economia: "Quanto vale a nossa economia?" (Hummm... Quase nada!) Falou-se de uma mudança de paradigmas: da noção do "castelo" para a noção de "rede", portanto, da crise do Estado-Nação e do desfasamento entre os ritmos acelerados da mudança económica global e a lentidão da adaptação do Estado a essa mudança. Vem aí a "sociedade do conhecimento"! Certo, este tipo de sociedade está em marcha, mas não é uma alternativa ao modelo económico capitalista: a sociedade do conhecimento é completamente capitalista e, se a política continuar escrava dos "cálculos económicos" e do seu "fatalismo ideológico", o próprio conhecimento genuíno está em perigo de extinção. Ninguém sabe bem o que significa a sociedade do conhecimento e, no entanto, este conceito-fetiche é constantemente usado para encobrir uma terrível verdade: a ausência de pensamento essencial.
Quanto à crise económica e financeira que ameaça o mundo global, em especial os países ocidentais, apenas foi dito que os seus efeitos e fim são imprevisíveis, o que prova o carácter limitativo dos cálculos económicos e a fragilidade dos "estudos técnicos" em que parece assentar a decisão política. A crise da política, visível no pensamento único, reflecte ausência de pensamento genuíno: as classes dirigentes estão corrompidas e a democracia foi desvirtuada, convertendo-se em cleptocracia. As contradições existem e agravam-se, mas os instalados estão preocupados em conservar o seu próprio poder e as suas ilusões metabolicamente reduzidas.
Educação. "Para que serve a educação?" (Tal como está e com os professores que temos, não serve mesmo para NADA!) O ex-ministro da educação do governo de António Guterres, Júlio Pedrosa, disse coisas pertinentes, mas sem avançar com ideias capazes de as resolver: os desfasamentos, as assimetrias, as desigualdades, as fatalidades, a pluralidade de educações (a da escola, a da sociedade, a da família), enfim coisas que todos já conhecemos. Relativizar a educação pode produzir retóricas interessantes, mas esquece a ideia fundamental de que as instituições educativas devem estar ao serviço da formação cultural e da cidadania inteligente: esta é a missão primordial da escola. É difícil imaginar uma mudança qualitativa do sistema de ensino e de educação com os actuais professores deformados pela Universidade e pelas burocracias de todo o tipo que emanam do Ministério da Educação. Ter diploma não significa nada de especial: qualquer atrasado mental obtém facilmente um diploma! E estes diplomados engrossam cada vez mais as fileiras dos analfabetos diplomados! É isto a sociedade do conhecimento? Este é um problema muito grave porque ameaça o futuro de Portugal que parece estar condenado a ser mais negro do que já é.
Segurança. "Qual a credibilidade da segurança?" (Não é o que está pior no país!) Loureiro dos Santos desdramatizou a questão da segurança e disse que a criminalidade violenta observada ultimamente pode ser facilmente resolvida a curto prazo.
Investigação e Ciência. "Que valor damos à investigação e à ciência?" (Nenhum, porque nada disso existe realmente: tudo é ficção! Apenas existe um "emprego" ou a possibilidade de ocupar o tempo sem fazer nada seguindo um roteiro e preferencialmente um roteiro do prazer!) Esta questão centrou-se em torno da Universidade, como seria de esperar. Fátima Campos disse inadvertidamente uma terrível mentira: "milhares de estudantes portugueses estudam e investigam". Poucos terão sido os estudantes universitários que assistiram em directo a este debate, porque para eles a sociedade do conhecimento significa preferencialmente ligar o computador e ligarem-se a outros computadores em determinados oásis eróticos virtuais, nos quais com uma mão na "pila" e outra no "rato" fazem sexo virtual ou procuram marcar encontros sexuais. A rede é um imenso lugar de novas oportunidades e experiências sexuais: a sociedade do conhecimento revela aqui a sua face sexual. O abuso de drogas e de outros vícios alastra-se entre os estudantes e determinados tipos de violências íntimas são cada vez mais frequentes entre os estudantes que raramente frequentam as faculdades, preferindo ocupar-se de aspectos da vida fácil e irresponsável, em especial as praxes académicas. O horror pelo conhecimento e pelo esforço está instalado: o sistema pactua com a mentira.
Gomes Canotilho, penso que com a aprovação de Conceição Pequito, foi peremptório quando afirmou, contra o coro que ia do "palco" aos representantes da Fundação Calouste Gulbenkian na "plateia", que infelizmente não há verdadeira investigação científica em Portugal, o que prova que a sociedade do conhecimento é uma farsa até mesmo ao nível das universidades: nem os professores ensinam nem os estudantes querem aprender. Para mudar esta situação de degradação do ensino universitário, instalada desde o 25 de Abril, é preciso ser realista e dizer que este ensino é, em última análise, responsável pela crise da educação em Portugal: os professores dos outros níveis de ensino foram formados por estas universidades. A crise do ensino superior alargou-se das licenciaturas para as pós-graduações, incluindo os mestrados e fatalmente os doutoramentos. Estas provas são públicas e podem ser consultadas: o disparate é colossal! A noção de saberes ou de conhecimento sistémico apresentada por José-Barata Moura parece ser e é efectivamente uma ideia sem futuro, além de ser muito positivista e prisioneira de uma lógica burocrática que bloqueia a prática pedagógica e a investigação de qualidade. Afinal, o espírito da verdadeira investigação esteve ausente neste debate académico. Mas ele já esteve presente nas universidades? José-Barata Moura disse que só está presente em "conversas particulares": as aulas abdicaram do pensamento e, em seu lugar, usam e abusam das novas tecnologias para encobrir a ignorância activa e a falta de memória. Curiosamente, foi repetida até à náusea uma ideia-slogan doentia: ninguém recebe o poder; o poder conquista-se. Sim, é verdade, desde que se tenha em conta que em Portugal o poder não é conquistado por mérito mas por cunha. Isto significa que não há poder e muito menos autoridade: os que se auto-intitulam "homens de conhecimento" enterram-se sempre que recorrem a esse argumento miserável. A situação miserável do país fala mais alto do que as suas vozes finitas e confronta-os com a sua própria mediocridade e culpa. Os estudantes portugueses não querem abandonar o país e, quando o fazem, desejam regressar, porque, em Portugal, emprego e trabalho são categorias que se excluem mutuamente: ter emprego significa ter a vida garantida sem trabalho e ter trabalho pode significar não ter emprego e muito menos segurança. Portugal é o oásis invejoso da ociosidade.
Xadrez Global. "Até que ponto compreendemos o actual xadrez político-económico, europeu e global?" (Hummm... Mas o homem metabolicamente reduzido ainda pensa? Pura ilusão!)" A noção de Ocidente avançada por Loureiro dos Santos não é de todo rigorosa e, enquanto se brincar com a semântica geopolítica, o Ocidente continua a afundar-se num oceano de negócios que inviabiliza o futuro. Um aspecto que me preocupou como português foi o "elogio" ao mundo árabe, indiano ou mesmo chinês, bem como a expectativa depositada nos paises de expressão oficial portuguesa, incluindo o Brasil: conversas e negócios de gabinete não resolvem os problemas nacionais, a menos que estes "instalados" andem a vender Portugal.
Os ilustres convidados de Fátima Campos Ferreira que procuraram "Pensar o País", em directo da Academia das Ciências, são arqui-figuras já nossas conhecidas: Adriano Moreira, José Barata-Moura, Júlio Pedrosa, Manuel Porto, Gomes Canotilho, Loureiro dos Santos, Dias Farinha, Diogo Lucena, Conceição Pequito, entre outros. Muitos dos presentes que não tiveram direito à palavra poderiam ter enriquecido este debate, mas, regra geral, em Portugal, quem tem boas ideias é sempre silenciado. Os grupos instalados sufocam todas as vozes que possam ameaçar os seus pequenos monopólios feudais, tratando-os como "iluminados". Ser iluminado é ser criminoso: os instalados liderados por Adriano Moreira não desejam mudar nada que possa retirar-lhes protagonismo. Eles dizem que "tudo corre bem", mas é mentira: a situação miserável do país fala contra estas vozes finitas que pretendem silenciar a revolta interior dos portugueses.
Conforme esperava, o programa não foi muito esclarecedor, apesar da participação brilhante de alguns dos seus participantes situados na ala esquerda em relação à moderadora. Ainda não foi desta vez que ocorreu o milagre desejado. E fiquei com a ideia de que a própria Academia das Ciências não funciona bem. O pensamento nunca habitou as velhas luso-instituições que se preservam ao abrigo de um sistema corrupto de conservação de cargos, ou seja, o pensamento é anti-sistémico e absolutamente anti-burocrático.
J Francisco Saraiva de Sousa

6 comentários:

pedro oliveira disse...

Bom dia,
Não vi ontem o prós e contras e tenho especial curiosidade no que disse Júlio Pedrosa, era possivel em traços gerais o que disse ele sobre a educação?

Obrigado
pedro oliveira

vilaforte

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bom dia Pedro Oliveira

Ele problematizou a educação em termos de diversas assimetrias, reconhecendo que não possuia uma solução para o problema. Contudo, deu pistas interessantes, mas os falsos consensos nacionais neutralizam as propostas.

Fernando Dias disse...

A educação neste debate foi central. De facto a pluralide da educação foi fatal não só para Portugal mas para toda a modernidade. A educação fragmentada distanciou-se do exercício de formação integral do homem.

A formação integral do homem tem de ser dialógica, numa relação recíproca e respeitadora, e numa superação da cisão individualismo/colectivismo.

Tem que ser superada a instrumentalização técnica da educação pois é na relação espontânea com o outro que se encontra o nível mais profundo da vida humana, que está fora dos laboratórios e dos métodos experimentais. Para isso é preciso mais Filosofia na Escola, mas uma filosofia que incentive o diálogo e o respeito pelos outros que são pessoas e não coisas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Boa Noite Fernando Dias

Tenho lido os seus belos posts mas sem comentar: estava com a ideia de o surpreender com uma crítica a António Damásio. Fico feliz por ter escrito sobre a decisão neste seu último post.

De facto, neste momento estou mais virado para a política: a ciência está subserviente em relação ao poder instituído e deixa-se "usar e abusar". A filosofia é rebelde!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tem razão: está tudo tão claro na nossa mente! No entanto, tentam enganar-nos mas os enganados são eles! Estava para elaborar mais as ideias neste post mas não me deu pica repetir tudo o que tenho dito. O problema de Portugal é visível e, sem coragem política, agrava-se. É muito chato passar uma vida a ver as asneiras de pessoas que só abandonam a cena pública quando morrem. Que tristeza ter de ver estas coisas a envelhecer, roubando a oportunidade a outros. O prolongamento da vida vai colidir com as forças de juventude! Morte e vida são irmãs gémeas! É preciso compreender isto antes que seja tarde...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Stent, um biólogo molecular, avançou no passado recente com uma visão radical: as ciências atingiram o seu limite, isto é, o projecto científico esta esgotado, da física à biologia. Ele coloca a questão no âmbito de uma filosofia do fim do progresso, com a qual concordo. Um dos limites é precisamente a incapacidade das neurociências explicarem a consciência.

O mundo está a morrer e pouco podemos fazer para o salvar: a regressão cognitiva e cultural é total. A filosofia cedeu e agora é tarde: o que vem aí é barbárie.