sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Walter Benjamin: História e Redenção (1)

«O único modo que ainda resta à filosofia de se responsabilizar perante o desespero seria tentar ver as coisas como aparecem do ponto de vista da redenção. O conhecimento não tem outra luz, excepto a que brilha sobre o mundo a partir da redenção: tudo o mais se esgota na reconstrução e não passa de elemento técnico. Há que estabelecer perspectivas em que o mundo surja deslocado, alienado, em que se mostrem as suas fissuras e fracturas, tal como indigente e deformado aparecerá um dia à luz da redenção. Situar-se em tais perspectivas sem arbitrariedade e violência, a partir do contacto com os objectos, só é dado ao pensamento». (Theodor W. Adorno)
«A teologia significa aqui a consciência de que o mundo é um fenómeno, de que não é a verdade absoluta nem o último. A teologia é (...) a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode permanecer assim, que o injusto não pode considerar-se como a última palavra. (A teologia é a) expressão de uma ânsia, de uma nostalgia de que o assassino não pode triunfar sobre a vítima inocente». (Max Horkheimer)
Em 1940, Benjamin ditou, pouco tempo antes de morrer, à sua irmã Dora, o último texto que concluiu em vida: dezoito teses numeradas e mais duas acrescentadas como apêndice sobre a filosofia da história, com o título Über den Begriff der Geschichte. Estas teses foram concebidas como uma espécie de introdução metodológica à obra em que estava a trabalhar e que nunca chegou a concluir, O Livro das Passagens. Michael Löwy chamou a atenção para "a qualidade subversiva única" destas teses que faz delas "um dos documentos mais radicais, inovadores e visionários do pensamento revolucionário desde as Teses sobre Feuerbach de Marx". Porém, o carácter revolucionário destas teses não reside tanto na dialéctica entre o teológico e o político tout court, aquilo a que Löwy chama abusivamente o "messianismo histórico", mas sobretudo na nova concepção da história e da temporalidade que emerge dessa dialéctica e que tem por alvo a crítica de um certo "materialismo histórico" impregnado pela excessiva e tranquila confiança nas vantagens do desenvolvimento tecnológico, como se este só por si mesmo conduzisse a humanidade à emancipação. Para os social-democratas e os "comunistas", bem como para os "liberais", a emancipação estava assegurada pelo progresso que fazia a humanidade avançar como um todo, no seio de um tempo vazio e homogéneo, em direcção a uma infinita perfectibilidade do género homo, conquistada paulatinamente através da "exploração e destruição da natureza": "Desde o início o vício secreto da social-democracia, o conformismo, não afecta apenas a sua táctica política, mas também as suas perspectivas económicas. Nada foi mais corruptor para o movimento operário alemão que a convicção de nadar no sentido da corrente. Ele considerou o desenvolvimento técnico como o sentido da corrente, o sentido em que ele pensava estar a nadar. A partir daí bastava dar um passo mais para imaginar que o trabalho industrial apresentava uma conquista política" (Tese XI).
Na 11ª Tese sobre Feuerbach, Marx escreve: "Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kommt aber darauf an, sie zu verändern". E, curiosamente na tese com a mesma numeração, Benjamin mostra que a tarefa de transformação do mundo levada a cabo pelo social-democracia e pelo "comunismo" estalinista não só traia o verdadeiro pensamento de Marx, sendo homologável à ideologia burguesa do iluminismo, como também conduzia às catástrofes da modernidade, tais como as duas Guerras Mundiais, Auschwitz e Hiroshima, as guerras imperialistas, a destruição do meio ambiente ou a ameaça de uma guerra nuclear, as quais não são meros "acidentes de percurso" ou "estados de excepção", mas decorrem do próprio progresso e das suas ilusões: a modernidade é catástrofe ou, em hebraico, Shoah. Uma tal concepção da história "só é capaz de considerar os progressos no domínio sobre a natureza, não as regressões da sociedade", prefigurando assim "já os traços dessa tecnocracia" que Benjamin reencontra no fascismo e nós na sociedade metabolicamente reduzida. A transformação do mundo implica, portanto, um novo conceito, isto é, um novo rumo político: a interrupção da história, a Unterbrechung messiânica ou a paralisação (Stillstand) historiográfica.
Mito do Progresso, Erros da Social-Democracia Europeia. A 13ª Tese sobre a Filosofia da História clarifica a crítica que Benjamin dirige à social-democracia, acusada de trair "a sua própria causa" (Tese 10), na figura dos seus políticos derrotados pelo fascismo e ligados ao "mito do progresso", confiantes "na «massa» que lhe servia de «base»" e sujeitos "a um aparelho incontornável": "Na sua teoria, e mais ainda na sua prática, a social-democracia determinou-se como uma concepção do progresso" que, longe de se relacionar com a realidade, se apresenta com uma pretensão dogmática. Nesta perspectiva social-democrata, o progresso era encarado sob três aspectos: em primeiro lugar, era o progresso da própria humanidade e não apenas das suas aptidões e dos seus conhecimentos; em segundo lugar, era "um progresso ilimitado" que corresponde ao carácter infinitamente aperfeiçoável da humanidade; e, em terceiro lugar, o progresso "era considerado (como um processo) essencialmente contínuo", automático e seguindo uma linha recta ou uma espiral. O facto de todos os políticos social-democratas, "comunistas" ou liberais, estarem convictos de que «a História estava do seu lado» revela até que ponto estavam comprometidos com a concepção iluminista do progresso, centrada exclusivamente na promoção tecnocrática dos progressos no domínio sobre a natureza, sem ter em consideração as regressões da sociedade e da própria humanidade que emergiam como resultado das suas práticas económicas. Como escreve Horkheimer: "Se as ontologias essencializam indirectamente as forças da natureza por meio de conceitos objectivados e, assim, favorecem a dominação da natureza, a doutrina do progresso essencializa directamente o ideal da dominação da natureza e, finalmente, deriva, ela própria, numa mitologia estática e derivada". A popularidade da teoria da evolução por selecção natural no seio de certos sectores da social-democracia justifica-se pelo facto de Darwin ter procurado mostrar que a selecção natural faz com que "as qualidades materiais e corporais" progridem para "a perfeição", o elemento moralista que Darwin foi buscar à ideologia económica (C. Lewontin). O "vício secreto" da social-democracia" é efectivamente o "conformismo", ou, em linguagem darwiniana, o adaptacionismo, em nome do qual a mente do engenheiro, isto é, a mente do industrial em forma tecnológica, transforma gradualmente "os homens num conjunto de instrumentos sem objectivos próprios".
A filosofia de Benjamin é movida por uma poderosa força política revolucionária. No texto sobre Moscovo, Benjamin afirma que, "mais rapidamente do que Moscovo propriamente dita, é Berlim que aprendemos a ver de Moscovo". E o que aprendemos a ver? Benjamin responde apontando para o fenómeno da corrupção: "Sob o capitalismo, o poder e o dinheiro tornaram-se grandezas comensuráveis. Uma determinada quantia em dinheiro é convertível numa determinada forma de poder, e é possível calcular o valor de troca de qualquer poder. Em termos gerais, é assim que as coisas se passam. Neste contexto só se pode falar de corrupção quando este procedimento é aplicado de forma demasiado expedita, como que em curto-circuito. No âmbito do dispositivo seguro da imprensa, da administração e dos trusts, ele dispõe do seu próprio sistema de distribuição, adentro de cujos limites se mantém legal. O Estado soviético pôs fim a esta comunicação entre dinheiro e poder. O partido reserva para si o poder, o dinheiro entrega-o aos homens da NEP (Nova Política Económica)". Com esta descrição, Benjamin está a denunciar o aburguesamento, alcançado através do mecanismo de corrupção em curto-circuito, dos dirigentes partidários da social-democracia que, no texto sobre Kracauer, são nomeados como "empregados" ou "colarinhos-brancos" (Angestellte), os assalariados bem remunerados da classe média e das classes dirigentes, cuja "adaptação ao lado humanamente indigno da ordem actual está mais desenvolvida do que no operário". Os dirigentes da social-democracia corromperam-se e traíram a causa da libertação e da emancipação: em vez de implementarem a mudança social qualitativa, criaram as condições necessárias para integrar social e politicamente as forças de oposição, promovendo aquilo a que Marcuse chamará mais tarde uma "sociedade sem oposição" assente num falso consenso.
A ideia de progresso é mais do que um idolum saeculi, no sentido de substituir a fé na providência como a "mão invisível" (Adam Smith) que orienta o desenvolvimento da humanidade (Hegel), porque, como mostrou John Bury, foi usada para dirigir e impulsionar toda a civilização ocidental desde as suas origens mais remotas que Max Weber descobre já no Antigo Testamento e sobretudo no Novo Testamento até aos nossos dias. "A ideia de progresso humano é, como diz Bury, uma teoria que contém uma síntese do passado e uma profecia do futuro", fundada numa interpretação da história que visualiza o homem a caminhar lentamente, pedetentim progredientes, numa direcção definida e desejável, de resto uma concepção inseparável da noção de que o tempo flui de modo linear, como uma flecha em direcção sempre ascendente, desde um passado primitivo ou bárbaro remoto até à realização de uma sociedade perfeita e feliz no futuro. Se saber é pecar ou, pelo menos, lançar as sementes do pecado, como já ensinava a narração javista da Criação ou o mito da Caixa de Pandora, então a história do ocidente pode ser vista como o desejo irreprimível consumado de conhecer o conteúdo da caixa que, por ordem divina, não devia ser aberta. O resultado da violação da proibição divina foi, como mostrou Robert Nisbet, a libertação de diversos males que têm afligido a humanidade, a nossa teodiceia, mas também a fomentação da criatividade nos mais diversos domínios da cultura e da sociedade humanas e a estimulação da esperança e da confiança da humanidade e dos indivíduos na possibilidade de mudar e melhorar o mundo. Benjamin acentua mais os aspectos negativos do progresso do que os seus aspectos positivos, enquanto Ernst Bloch faz precisamente o contrário, embora ambos sonhem com um mundo melhor na perspectiva mais profunda da restitutio ou da apokatastasis: o primeiro a partir do resgate do "paraíso perdido", a "origem matinal" ou "início imaculado", o segundo, sonhando o futuro utópico da humanidade que se abriga no interior quente e ígneo da "matéria proto-utópica". Esta aparente aporia é «superada» pelo facto de o marxismo não ser uma filosofia tecnofóbica e permanecer uma filosofia aberta, isto é, não-concluída: Benjamin reconhece n' O Livro das Passagens que o conceito de progresso teve uma função crítica na sua origem, estreitamente ligada ao nascimento da ciência moderna, que desaparece a partir do século XIX quando a burguesia conquista posições de poder, donde resulta a tarefa urgente de submeter um tal conceito a uma crítica imanente levada a efeito através do materialismo histórico, cujo "conceito fundamental não é o progresso mas a actualização". O progresso científico e técnico, cujos efeitos na arte entusiasmaram Benjamin, parece ser mais ou menos óbvio, mas o progresso da humanidade, mais precisamente a ideia da perfectibilidade moral e social do homem, não é de todo evidente e, a avaliar pelas catástrofes recentes da modernidade, parece indicar fenómenos preocupantes de regressão da sociedade e da cultura que, nos nossos tempos, se manifestam na escalada de violência verdadeiramente patológica dos tempos metabolicamente reduzidos. Por isso, no seu texto Parque Central, a propósito de Baudelaire, Benjamin escreve que "o spleen é o sentimento que corresponde à catástrofe em permanência", sentimento de melancolia que contrasta com a esperança militante de Ernst Bloch. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Resolvi editar este post por partes para evitar textos demasiado longos, sem sacrificar a explicitação da filosofia da história de W Benjamin. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este primeiro número dedicado à filosofia da história de Benjamin está concluído, embora possa fazer alguma alteração no último parágrafo. O objectivo aqui foi fazer aquilo que os comentadores pós-modernos grisalhos de Benjamin não fazem: clarificar uma crítica interna da Esquerda, a da social-democracia e do "comunismo". Neste momento, após a Queda do Muro de Berlim, Marx está livre desse fantasma que foi o comunismo soviético e pode ser recuperado novamente para a crítica da nova ordem europeia: a Santa Aliança que é a União Europeia. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estive a ver um ensaio sobre Benjamin perdido na net e fiquei deveras surpreendido com a afirmação de que Benjamin era fascinado pela fantasmogoria da modernidade e seus fetiches. Será que estes comentadores leram o fetichismo da mercadoria de Marx, onde Benjamin se inspira? Eles parecem ter um conceito positivo de fetiche: são fetichistas e desconhecem a dinãmica do capitalismo. Intelectuais da merda é o que são! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, amigos, terei de estabelecer um confronto entre Benjamin e Bloch, porque a noção de progresso não pode ser descartada: seria uma traição para a nossa civilização ocidental. Rever a noção é uma coisa, outra coisa é abdicar dela e dos seus sonhos de um mundo melhor.