quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Elogio da Filosofia de Arthur Schopenhauer

«Entre os desejos e as suas realizações decorre toda a vida humana. O desejo, pela sua natureza, é sofrimento; a satisfação engendra bem depressa a saciedade. O alvo era ilusório, a posse rouba-lhe o seu atractivo; o desejo renasce sob uma forma nova, e com ele a necessidade; senão é o tédio, o vazio, a aborrecimento, inimigos ainda mais violentos do que a necessidade. /Claro está que o mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormentadores. /Assim, a história do pecado original reconcilia-me com o Antigo Testamento; a meus olhos é mesmo a única verdade metafísica do livro, embora se apresente lá sob o véu da alegoria. Porque a nossa existência, a parecer-se com algo é com a consequência de uma falta e de um desejo culpado... /O inferno do mundo ultrapassa o inferno de Dante, por cada um de nós ser o diabo do seu vizinho; também há um arquidiabo superior aos demais: o conquistador, que dispõe centenas de milhares de homens em frente uns dos outros e grita: "Sofrer, morrer é o vosso destino; fuzilem-se, portanto, bombardeiem-se mutuamente!"; e eles assim fazem.» (Arthur Schopenhauer)
Arthur Schopenhauer (1788-1861) retoma a distinção kantiana entre fenómeno e coisa-em-si, para construir a sua própria filosofia: a coisa-em-si é a realidade que se esconde por detrás do sonho, da aparência e da ilusão, e essa realidade subjacente ao mundo dos fenómenos é a vontade, não a vontade finita, individual e ciente, mas a vontade infinita, una e indivisível, independente de toda a individuação. Schopenhauer subverte a filosofia de Kant, redefinindo o fenómeno com o recurso ao conceito indiano de Véu de Maia, o sonho que encobre e oculta a realidade, a coisa-em-si, que pode ser conhecida. A vontade infinita devora-se a si mesma e, por estar perpetuamente em conflito consigo mesma, é essencialmente infelicidade e dor. A única via capaz de garantir a libertação da vontade de viver, vontade esta que habita, em graus diferentes, o homem e todos os outros seres da natureza, é a via do ascetismo: a arte pode subtrair o homem da cadeia infinita das necessidades e dos desejos, mas esta libertação obtida pela via da contemplação estética é temporária e parcial. A arte é, por si só, incapaz de redimir definitivamente o homem da vida: redime-o por breves instantes e fornece-lhe um consolo para a própria vida, mas não lhe indica o caminho para sair da vida, isto é, o caminho para a libertação total da vontade de viver.
A tragédia é vista por Schopenhauer como a arte mais elevada, porque revela a vontade em conflito consigo mesma: «A dor sem nome, a angústia da humanidade, o triunfo da perfídia, o domínio discernível do caso e a fatal derrocada dos justos e dos inocentes, surgem, na tragédia, à luz de uma verdade autêntica e assim se obtém um indício significativo da natureza do mundo e do ser». Schopenhauer sofreu a influência do budismo, sendo levado a articular teoricamente as quatro verdades santas do Sermão de Benarés com o dualismo filosófico europeu de Platão e de Kant, o abismo entre a essência da coisa - o que ela é em si - e o mundo fenoménico em que se movem os homens: a existência é dor, do nascimento até à morte (1), a raiz da dor é o desejo (2), a superação da dor exige a anulação do desejo até atingir o nirvana (3), e o caminho da libertação passa pelo desprendimento absoluto e pela extinção do desejo natural (4). Para Schopenhauer, a essência da coisa é a vontade, cuja representação é o fenómeno ou aparência: «Fenómeno significa representação e mais nada; e toda a representação, todo o objecto é fenómeno. A coisa em si é unicamente vontade; nesta qualidade, esta não é de maneira nenhuma representação, difere dela toto genere; a representação, o objecto, é o fenómeno, a visibilidade, a objectividade da vontade. A vontade é a substância íntima, o núcleo tanto de toda a coisa particular, como do conjunto; é ela que se manifesta na força natural cega; ela encontra-se na conduta racional do homem; se as duas diferem tão profundamente, é em grau e não em essência». A vontade subtrai-se às formas próprias do fenómeno - espaço, tempo e causalidade, que constituem o principium individuationis: as formas do fenómeno individualizam e multiplicam os seres da natureza, enquanto a vontade é única em todos esses seres. Porém, ao subtrair-se à causalidade e ao princípio da razão suficiente, a vontade age de modo absolutamente livre e cego. Apesar de assumirem aspectos e nomes diferentes nas suas manifestações fenoménicas, as forças da natureza, tais como a gravidade, o electromagnetismo e a motivação, são uma única força - a vontade de viver. A objectivação da vontade tende, na escala conflituosa dos diversos graus ou ideias que assume na natureza, para um nível mais elevado de objectivação no mundo animal, em especial no mundo humano, onde se torna razão que age em virtude de motivos. O homem, como representação, é fenómeno entre fenómenos e, como tal, está sujeito à lei geral da causalidade na sua forma da motivação. Mas, uma vez que a realidade não se reduz totalmente à representação, o homem tem a possibilidade de se reconhecer livre e esta possibilidade é-lhe conferida pela essência íntima do mundo e de si próprio: todas as acções e movimentos do seu corpo são efeitos da vontade, isto é, objectivações da vontade livre e cega. Com o homem, a vontade ganha clareza, tornando-se consciente, mas perde a segurança do instinto do animal, porque a razão tende a errar e, como guia da vida, falha a maior parte das vezes no seu objectivo: a razão humana está ao serviço da vontade, sendo a sua escrava.
A vida é, na sua essência mais íntima, dor, isto é, o sofrimento é o fundo de toda a vida: «Um indivíduo, um rosto humano, uma vida humana, isso é apenas um sonho muito curto de espírito infinito que anima a natureza, dessa obstinada vontade de viver, mais uma imagem fugidia, que a brincar ela esboça na tela sem fim, o espaço e o tempo, para aí a deixar durante um momento, - momento que, em comparação com essas duas imensidades, é um zero, - depois apagá-la e dar assim lugar a outras. Contudo, e é isto que na vida dá para reflectir, cada um destes esboços dum momento, cada um desses ímpetos paga-se: a vontade de viver em todo o seu furor, sofrimentos sem número, sem medida, depois, no fim, um desenlace durante muito tempo receado, finalmente inevitável, essa coisa amarga, a morte, eis o que eles custam. E é por isso que a visão dum cadáver nos torna bruscamente tão sérios». A ética de Schopenhauer visa indicar o caminho da libertação humana, respondendo a esta questão fundamental: Como pode o homem escravizado pela vontade cega negar a vontade de viver? Schopenhauer recorre à ética de Kant, nomeadamente ao seu conceito de liberdade da essência inteligível do homem, para mostrar que a coisa em si está fora das formas do princípio da razão suficiente: a vontade é livre e esta liberdade da vontade é omnipotência. O desejo de viver ocupa toda a vida dos seres vivos e mantém-nos em movimento e em combate perpétuo pela própria existência, com a certeza de serem finalmente vencidos: «A própria vida é um mar cheio de escolhos e redemoinhos: o homem, à força de prudência e de cuidado, evita-os, e sabe, contudo, que embora consiga, pela sua energia e arte, escapar-se entre eles, desse modo nada mais faz do que avançar pouco a pouco em direcção ao grande, ao total, inevitável e irremediável naufrágio; que tem o cabo no lugar da sua perda, na morte: eis o termo último dessa penosa viagem, mais temível a seus olhos do que todos os escolhos até aí evitados». A vida humana decorre entre o desejo e a sua realização, num movimento de queda incessantemente travada: todo o ser do homem reside numa sede insaciável, num querer incessante, num esforçar-se contínuo, sem alvo, sem repouso. Na origem do querer está uma necessidade, uma falta, uma dor, da qual o homem é uma presa. A vida é, neste sentido, dor, e a vontade de viver é o princípio da dor. Querer significa desejo e o desejo é privação daquilo que se deseja, deficiência, indigência e, portanto, dor. A vida consiste num esforço contínuo para afastar e cessar a dor, obtendo o prazer, mas, quando satisfaz o desejo e a necessidade, surge um novo desejo e uma nova necessidade: a satisfação dos desejos, das necessidades e das paixões jamais tem um carácter definitivo, porque o desejo renasce sob uma forma nova e com ele a necessidade. De todos os seres da natureza o homem é o mais assediado pelas necessidades: o homem é escravo das necessidades, e a sua vida oscila, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento para o aborrecimento, o tédio e o vazio. O tédio é mais insuportável que a dor e, dos sete dias da semana, seis pertencem à fadiga e à necessidade e o sétimo ao tédio. Schopenhauer é levado a negar o princípio de Leibniz, segundo o qual este é o melhor dos mundos possíveis, retomado mais recentemente por Karl Popper para legitimar a sociedade neoliberal: como não pode realmente existir um mundo pior, este nosso mundo é o pior dos mundos possíveis. Para Schopenhauer, o optimismo é o auto-elogio injustificado do verdadeiro criador do mundo: a vontade de viver que se espelha na sua obra. A miséria do nosso mundo real protesta e grita contra todas as hipóteses de uma obra perfeita, criada por um ser sumamente sábio, bom e todo-poderoso: os homens vieram ao mundo já viciados, como filhos de pais gastos pela desgraça, e a sua existência miserável e condenada à morte é uma espécie de expiação pela pesada culpa do mundo. O Inferno de Dante mais não é do que o pálido espelho deste mundo de tormentos e de sofrimentos, perante o qual o optimismo é uma opinião realmente ímpia e odiosa, isto é, a glorificação ideológica da dominação de uns - os diabos atormentadores e o Estado corrupto (arquidiabo) - sobre os outros - as almas atormentadas e desgraçadas: «Querer é essencialmente sofrer e, como o viver é querer, toda a vida é, na essência, dor. Quanto mais elevado for o ser, mais ele sofre. A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência, com a certeza de ele ser vencido. A vida é uma incessante caçada onde os seres, ora caçadores, ora caçados, disputam entre si os restos de uma horrível carniça; uma história natural da dor que se resume desta forma: querer sem motivo, sofrer sempre, lutar sempre, depois morrer, e assim sucessivamente pelos séculos dos séculos, até o nosso planeta se desfazer em bocados».
A actualidade de Schopenhauer, para usar o título de um ensaio de Max Horkheimer, reside precisamente no seu pessimismo esclarecido: a recusa de todas as tentativas metafísicas de transformar os objectos temporais dos homens em objectivos eternos e absolutos, mediante a construção artificial da ideia de progresso, como se a escala dos seres da natureza fosse uma escala de perfeição. A história do homem é, do princípio ao fim, a repetição do mesmo acontecimento - o pecado original, o egoísmo, as guerras sem tréguas que devastam o mundo como destino do género humano, sob diversos nomes e diversas roupagens. Como história da guerra, do sofrimento, da crueldade e do malum metaphysicum, a história humana apresenta-nos o homem na situação de perda, de abandono e de finitude radical: a imagem da sua impotência para lançar longe de si a vontade cega. A vida do homem e os seus tormentos são manifestações dessa vontade todo-poderosa que o aprisiona no ciclo infindável e infernal das necessidades: a fabricação de deuses e de ídolos é realizada em vão, porque o homem só pode contar consigo mesmo: «O Antigo Testamento tinha feito o mundo e o homem a obra dum Deus; mas o Novo Testamento reconheceu que a salvação e a libertação do mundo, hoje em dia mergulhado na miséria, deviam vir do próprio mundo: assim foi preciso fazer desse Deus um homem. Portanto, a vontade do homem é, e permanece, para ele, aquilo de que tudo depende». A filosofia de Schopenhauer resiste à sedução dos ídolos e à sua pretensão de ocupar o vazio deixado pelo Deus destronado: os homens colocaram todas as dores e todos os sofrimentos no inferno e encheram o céu com os produtos finitos - absolutizados - do seu tédio mortal. Schopenhauer recusa esses falsos absolutos que, sendo finitos, ocupam o céu, vedando à filosofia o acesso ao caminho da teologia, no sentido de continuar a tentar justificar racionalmente o sofrimento do mundo. Nesta negação da idolatria palpita a ânsia de justiça temporal: o pessimismo metafísico de Schopenhauer não desemboca necessariamente na resignação perante o malum metaphysicum e a história já consumada do egoísmo. Ora, esta história consumada do sofrimento dá ao homem a consciência de si e do seu próprio destino, mas, para que isto suceda, o homem deve ultrapassar o animal que há em si, o animal que vive limitado e submerso no presente, sem levar em conta o seu passado: a razão permite ao indivíduo libertar-se da sua animalidade e a história permite aos povos referir o presente ao passado e antecipar o futuro. Para Schopenhauer, as lacunas da história são as lacunas da autoconsciência do homem: o homem insensível à história e aos gritos de dor das vítimas inocentes e da natureza comporta-se como um animal estúpido - aquilo a que chamo o animal metabolicamente reduzido, completamente mergulhado no presente e dominado pelo ciclo infernal da necessidade. A razão na esfera do indivíduo e a história na esfera da totalidade dos indivíduos possibilitam a libertação - a negação - da vontade de viver, na certeza de que o bem-estar e a felicidade são totalmente negativos, «só a dor é positiva»: eis a máxima do pessimismo de Schopenhauer que, perante a positividade do sofrimento que excede infinitamente a alegria, olha para os que ainda são mais desgraçados do que nós, como o remédio para a libertação total.
A ética de Schopenhauer indica o caminho para a libertação - a negação - da vontade de viver. A vontade cega de viver provoca em si própria luta perpétua, combate sangrento e dilaceração, que, no plano da história dos homens, se traduzem na guerra permanente entre indivíduos, a bellum omnium contra omnes de Hobbes, isto é, na injustiça. O egoísmo - essencial a todos os seres na natureza - está na origem da contradição íntima da vontade e revela-se na história sob um aspecto medonho: a guerra entre todos os indivíduos, o combate de feras, que traduz essa contradição essencial que rasga a própria vontade de viver em duas partes inimigas e que toma uma forma visível graças ao princípio de individuação. Para Schopenhauer, a injustiça - o rasgão, a invasão no domínio onde a vontade é afirmada por outrem, é precisamente a condição da vontade de viver dividida e discordante consigo mesma: «A vítima da injustiça sente essa invasão na esfera onde ela afirma o seu próprio corpo, a negação dessa esfera por um estranho; experimenta imediatamente uma mágoa moral, muito distinta, muito diferente da dor física causada pelo próprio facto, ou do mal-estar produzido pela perda que lhe foi infligida. Quanto ao autor da injustiça, nasce nele a ideia de que no fundo ele mesmo e essa vontade manifestada no corpo da vítima são apenas um; de que ao ultrapassar os limites do seu corpo e das suas forças, foi a mesma vontade numa outra das suas manifestações, que ele negou; finalmente que, se se considera em si como pura vontade, é ele mesmo que na violência ele combate, ele mesmo que ele despedaça» no remorso. A injustiça expressa-se de diversas formas, tais como o canibalismo, o assassinato, a mutilação, a pancada e a usurpação da propriedade, mas conserva sempre o carácter próprio da acção de um indivíduo que estende a afirmação da vontade enquanto manifestada pelo seu próprio corpo, até negar a vontade manifestada pela pessoa do outro, submetendo-a ao seu jugo, reduzindo-a à escravatura e usurpando os seus bens. A negação da injustiça é o direito, cuja acção não é uma transgressão e uma negação da vontade do outro, com a finalidade de a fortificar em nós. O Direito e o Estado só podem ser compreendidos na perspectiva da vítima da injustiça. Para combater a injustiça, é preciso adquirir o conhecimento da unidade fundamental da vontade em todos os seres que sofrem e reconhecê-los como sujeitos. A malvadez é injustiça e o indivíduo malvado é aquele que tem uma inclinação para cometer a injustiça: o malvado não se contenta em afirmar a sua vontade de viver, tal como se manifesta no seu corpo, mas afirma a sua vontade através da negação da vontade dos outros, sujeitando-a à sua própria vontade violenta e suprimindo-lhes a existência. O malvado rouba e nega a existência dos outros e, deste modo, converte a sua malvadez em pura crueldade: a dor do outro passa a constituir o seu único objectivo. Uma vez que se julga separado dos outros e da dor, o malvado não reconhece que «o carrasco e o inocente são apenas um». No remorso de consciência e na angústia duradoura que acompanham a sua acção injusta e cruel, o malvado evita tomar consciência clara e lúcida da unidade da vontade em todos os homens que sofrem. O reconhecimento desta unidade ou desta solidariedade universal dos homens e das vítimas dos falsos absolutos no sofrimento, para além da ilusória multiplicidade do princípio de individuação, conduz à justiça - a negação da malvadez - e, num grau mais elevado, à bondade. A bondade mais não é do que o amor desinteressado pelos outros, isto é, a caridade, a piedade, a compaixão. Para Schopenhauer, o homem de grande coração rasga completamente o Véu de Maia e «distingue menos do que ninguém entre ele mesmo e o outro»: o malvado faz a sua alegria com o sofrimento do outro e o homem injusto faz do outro um instrumento para provocar o seu próprio bem-estar, enquanto o homem justo faz tudo para não infligir mais sofrimento aos outros, procurando aliviá-los das privações, porque o sofrimento que vê um outro sofrer o toca «quase de tão perto como o seu próprio sofrimento». A compaixão nasce do conhecimento do sofrimento do outro, tornado compreensível através do nosso próprio sofrimento. Schopenhauer desenvolve uma teoria do choro que clarifica a sua noção de identidade entre caridade e piedade: «Chorar é, portanto, ter piedade de si mesmo». Quando chora, o homem coloca-se no lugar do outro que sofre, vendo na sua sorte o destino comum da humanidade e, portanto, o seu próprio destino. Chorando a sorte dos outros, o homem chora o seu próprio destino e tem piedade de si próprio: a piedade é excitada pela «sorte de toda a humanidade, da humanidade votada antecipadamente a um fim que apagará toda uma vida por vezes tão plena de actos, e que a reduzirá ao nada. Mas, neste destino da humanidade, o que vemos, sobretudo, é o nosso próprio destino, e vemo-lo tanto melhor quanto mais de perto a morte nos toca».
A partir do momento em que vê nos sofrimentos dos outros o seu próprio sofrimento, reconhecendo neles o seu mais verdadeiro e íntimo eu, o homem está preparado para a libertação total: a ascese através da qual nega a vontade de viver, deixando de ser um mero elo da cadeia causal que o liga ao sofrimento do mundo. Com o recurso ao testemunho do budismo, do hinduísmo e dos místicos cristãos, Schopenhauer define a ascese como o horror do homem pela vontade de viver e pelas dores do mundo. O homem abdica da sua vontade de viver, isto é, desliga-se voluntariamente da vida e, dado os prazeres serem uma afirmação da vida, sente horror por eles: «O homem chega - através da ascese - ao estado de abnegação voluntária, de resignação, de quietude verdadeira e de paragem absoluta do querer». O asceta é o homem que vê para além do princípio de individuação e que, conhecendo a essência das coisas em si, abarca o conjunto. Vendo-se a si em todos os lugares, retira-se do círculo infernal da necessidade: «A sua vontade dobra-se: ela já não afirma a sua essência, representada no espelho do fenómeno; ela nega-a». Mas, para alcançar este estado de graça, como lhe chamam os cristãos, o homem deve libertar-se, desde logo, do impulso sexual e reprodutivo: a castidade absoluta constitui a primeira e a mais básica manifestação da libertação - negação - ascética da vontade de viver. O impulso reprodutivo domina todas as formas do amor sexual e lança os homens uns contra os outros no palco conflituoso da afirmação da vida, de modo a servirem o génio da espécie que desencadeia e determina a escolha de parceiro, o namoro e a paixão: o amor sexual escraviza o homem, ligando-o afirmativamente à vida e fazendo dele um mero instrumento ao serviço da sobrevivência da espécie. A quietude, a serenidade, a pobreza voluntária e intencional, a renúncia aos prazeres, o despojamento das riquezas, o isolamento, a penitência voluntária, a contemplação silenciosa, o desprendimento, o desapego da vida, o sacrifício e outras manifestações de ascetismo contribuem para a negação da vontade de viver, ajudando o homem a mortificar a sua vontade e a subtrair-se à determinação dos motivos que actuam sobre ele como fenómeno. O conhecimento total da essência da vontade funciona como um sedativo da volição e do querer sempre mais que aprisiona o homem na cadeia infindável das necessidades: eis aqui na supressão da vontade o único e verdadeiro acto de liberdade que é possível ao homem. Ao libertar-se radicalmente da realidade da dor, o homem redime toda a natureza. O pessimismo de Schopenhauer cede finalmente à afirmação e à busca da redenção no nada - redenção sem redentor (Jürgen Werbick), mas esta afirmação do nada pode ser dialecticamente convertida na resistência à afirmação, mediante a interpretação da negação da vontade de viver como negação determinada do capitalismo e da sua vontade sofrega de lucro imediato, alimentada pela expansão ilimitada do leque das necessidades humanas que instrumentaliza e explora descaradamente: a transformação transcendental vista como autocontenção do querer sempre mais e libertação da consciência crítica do sistema económico que explora as necessidades naturais, sociais e individuais do homem, acrescentando-lhe novas necessidades supérfluas, para perpetuar a sua dominação e dinamizar o crescimento económico descontrolado e voraz. (Recomendo a leitura deste post sobre o pensamento tardio de Horkheimer, que clarifica alguns aspectos abordados aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

32 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A filosofia pessimista da vontade cega de Schopenhauer lança-nos um desafio arrepiante: viver e aceitar a nossa condição efémera e mortal na grande roda do mundo. Devo falar da morte... Aliás, estava a prever isso quando numerei este post.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E estou a ficar um pouco distante da interpretação de Horkheimer: a ânsia de infinito que Schopenhauer partilha com Hegel é uma ânsia de justiça, mas dentro deste mundo. Há uma dialéctica que opera de modo subtil, mas preciso relaxar para a captar... O problema colocado é o seguinte: o que resta da verdade num mundo sem deuses e sem Deus? Schopenhauer recusa o ateísmo e o panteísmo e diz vivermos no pior dos mundos possíveis. Um mundo pior do que este não pode existir: Deus é negado!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O confronto com Nietzsche ajudava a clarificar a postura de Schopenhauer, mas está fora do âmbito deste post. Vou ver se posso contornar a resignação! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Há outra leitura que ainda não foi feita, talvez porque a filosofia tem sido subserviente em relação ao discurso disparatado da ciência: a crítica da ideia de progresso ilumina a natureza da ciência e a sua incapacidade para compreender a humanidade e o mundo. A ciência é mais uma filosofia que procura dominar tecnicamente o mundo sem o compreender. Daqui resulta que a tecnociência não é conhecimento mas mera técnica de domínio. Apesar das núvens negras que ofuscam a claridade, começo a ver uma luz lá longe: a aventura humana e ocidental não está perdida. É difícil tematizar essa luz, mas ela já brilha em certos momentos da minha praxis.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O problema da ciência é querer materializar uma filosofia que assassina o homem e destrói a natureza: a prática científica e os seus efeitos não correspondem à consciência científica. A ciência ilude-se com um discurso falso ou. como diz Schopenhauer, é mentirosa. Por exemplo, a medicina diz que cura, mas nunca definiu o que é a cura. Há aqui um efeito ideológico que deve ser pensado...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A filosofia séria é extremamente difícil e mais difícil é tentar partilhá-la com os leigos! Algumas das dificuldades que mencionei podem ser facilmente resolvidas com truques técnicos, mas é bem melhor evitar esses tecnicismos e ser acessível! :)

Unknown disse...

Axo q era o sartre q dizia q algo como "toda a técnica de excelencia é tb metafisica"(algo assim:)


Deixo um link com um artg mt bom sobre as origens dos movimentos e organizações de esquerda portugueses e da peninsula iberica.

:)

http://cnt-ait.info/article.php3?id_article=1502

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Como é evidente, não evito o tecnicismo ou a minúcia hermenêutica, mas penso que não temos todos os instrumentos teóricos para abordar certos aspectos deste pensamento: a tensão habita o pensamento de Schopenhauer e isso é visível mais na sua faceta natural do que na sua dimensão histórica. A ideia de finalismo conflitua com a sua visão, ou então, se o mundo é determinado pelo mal radical, não há nada a fazer. Estes aspectos foram simplesmente abandonados pelo pensamento e é necessário voltar a pensar neles.

Unknown disse...

Eu n acho. A minha sensaçao desde sempre é q a fil do Schop está sobejamente impregnada de antroporfismo e projecçao psic...


Uareva, já fui ao facebook escarrapachar isto a proposito do artg de hoje do SOL sobre as escutas ao Vara e sus muchachos socraticos ==>>> FDP!!!



«Não se iluda pensando que eles não têm um plano. Eles têm sim; se eles não tivessem, as circunstâncias por si só os forçaria a desenvolver um. Uma conquista conduz a outra; uma vitória abre o apetite para mais vitórias. (Maquiavel, carta a Francesco Vettori)»

Conheci-o através do Débord ^^

Unknown disse...

antropomorfismo* :))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas com isso a que chama antropomorfismo Schopenhauer pode defender o princípio da compaixão alargado a toda a natureza, sem negar o homem. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Para todos os efeitos, é melhor humanizar a natureza do que animalizar o homem! Aqui reside o segredo da libertação! :)

Unknown disse...

LOL
e etnocentrico tb, sure.
Fdx, mas esta cena que vem no Sol é mesmo dum maquiavelismo do caraças. LOL, ri-me bué com a parte do cavaco - mas não é mesmo pra rir -
O seu socrates que se demita rápido, pois escandalo tamanho nunca cá se viu.
Ja hoje o BE Fazenda cascou bem no Lacão eheh


bem,

ASTA 0/

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bah, o Sol é um jornal da merda e, se seguissemos o BE ou a oposição, estávamos já de tanga: não há alternativa a Sócrates e a Teixeira dos Santos! O BE é a ala comunista de Alberto João Jardim!

Unknown disse...

Voltei. mas nem era pra comentar o Sol :)
De todo o modo, o q lá estão sao transcriçoes das escutas! goste-se ou não da tendencia direitista do jornal, objectivamente, as falas estão lá pra quem as queira ler.

Vinha pra lhe mostrar a matrix:


Meta vc mesmo no google "VENEZUELA 4 FEVEREIRO" e veja os resultados do topo.

Abra uma noticia e um site como este e reflita qual dos dois lados mais manipula e engana

http://www.rnv.gov.ve/noticias/index.php?act=ST&f=32&t=119129

;)


ASTA 0/

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Defender o mau jornalismo da tvi? Aquilo era um monstro calunioso - a vergonha do jornalismo encarnado nacional! O caso está encerrado! Era uma calúnia total!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok, vou ver... O PGR já comentou o sol... :)

Unknown disse...

mais revelaçoes

http://www.ionline.pt/conteudo/45476-octavio-machado-liedson-bate-num-director-e-vai--seleccao


:)

Unknown disse...

a password do comp do rui pedro soares, adm da PT, onde descobriram a minuta de compra TVI, era................... SOCRATES2009!!!!!!!! HUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUA

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

De uma coisa estou certo: a comunicação social é responsável pelo aniquilamento da democracia e da qualidade da crítica: o sistema da indústria cultural foi sempre uma força obscura ao serviço do poder estabelecido. Portanto, não posso fazer a defesa de uma comunicação medíocre! Quanto ao outro aspecto, sempre disse que Portugal é corrupto e malvado: a corrupção é ubíqua! Bruxas a caçar bruxas merecem ser todas eliminadas!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Aliás, sei que Portugal é malvado e corrupto desde bebé: esse é um problema estrutural do país que bloqueia a mudança qualitativa e o salto. A imagem de Portugal no mundo sempre foi negativa e, neste momento, vai implicar a bancarrota!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Corruptos a denunciar corruptos, medíocres a denunciar medíocres, burros a denunciar burros, malvados a denunciar malvados, incompetentes a denunciar incompetentes, - merecem todos o mesmo destino: a eliminação total.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Schopenhauer é fascinante e maravilhoso! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O FCPorto venceu o Naval por 3-0. :)

Já não vou confrontar Schopenhauer com Horkheimer: fiquei cansado! :)

Unknown disse...

Hoje n tenho mt tempo, vim so deixar isto

http://www.ionline.pt/conteudo/45794-todos-pela-liberdade-blogues-mobilizam-se-e-lancam-peticao


:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ao conceito de redenção sem redentor de Schopenhauer opõe Nitzsche o conceito de redenção dos redentores. Porém, a sua crítica da visão moral do mundo - levada ao seu extremo de afirmação da vida dos grandes homens e dos senhores - torna-se alvo da crítica cristã: o Deus das vítimas que sofrem sob o pecado luta pela sua salvação! E exige que os carrascos mudem de projecto de vida!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Penso ter captado a chave que permite fazer uma outra leitura da filosofia e reformular a teoria crítica para um tempo indigente e cognitivamente atrofiado!

Nietzsche...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Enfim, impõe-se um regresso a Kant, Hegel e Marx e a todos os que se alimentaram neles: o Reino do Mal... Plessner disse: «Por natureza não há homem. O homem só devém homem através da sua relação com Deus». Se pensarmos esta noção à luz da grande filosofia - a única verdadeira filosofia -, vamos detectar os erros cometidos nos últimos tempos. O pior é a indigência cognitiva do nosso tempo: o animal metabolicamente reduzido despediu do pensamento e este último tem dificuldade em fazer-se entender neste presente todo-poderoso e desvinculado da herança! Tarefa complicada a de fazer filosofia para criaturas que já não são humanas! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É preciso demolir a tendência dominante da filosofia anglosaxónica: a burocracia do anti-pensamento ou do pensamento esvaziado de conteúdo e de coragem. Os amigos da pseudo-argumentação são zombies que querem conversar sem dizer nada sobre o mundo: perdem-se e afundam-se na conversa pela conversa, como se o mundo quisesse continuar a sustentar estes párias que desviam a atenção da vida e do mundo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ou damos um novo alento à tradição ocidental ou estamos condenados à aniquilação: os sinais de aniquilação já são evidentes e é preciso começar a lê-los na sua verdade!

Daniel Alabarce disse...

Caro J Francisco Saraiva de Sousa,

realmente é difícil expor algumas coisas aos leigos, mas é possível dialogar por meio da própria dor a que todos estão sujeitos... principalmente no que diz respeito a este gênio Schopenhauer!

Eu confesso que pago um pau pro Schopenhauer e me pego a pensar em silêncio (pra que o Nietzsche não ouça e, ouvindo, fique muito puto, rs)se a afirmação da vontade em Nietzsche, como vontade de potência realmente procede...

De repente (ma non troppo), a ascese negativa me soou um tanto mais coesa... bom, de qualquer forma, prefiro não tomar ações precipitadas em relação ao sexo...
valham-me os deuses, hahaha!

E por falar em negativo, fico a pensar também na dialética negativa...
Essa chave sempre está alavancada em minha dubitatio...

Ah, sim, e muito me interessa o assunto da morte, já faz algum tempo que acompanho esse blog e sempre me deleito em ler bom conteúdo!

Um abraço!

Anónimo disse...

Brilhante... Realmente me surpreendeu o conteúdo do seu blog. Inspirador!