domingo, 2 de maio de 2010

Plano Inclinado e Jean-Jacques Rousseau

Ontem (1 de Maio), no programa Plano Inclinado da SicNotícias - debate moderado por Mário Crespo, Guilherme Valente defendeu uma ideia monstruosa e extremamente perigosa: responsabilizou Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) pela destruição da escola, como se a sua filosofia da educação tivesse promovido aquilo a que chama o eduquês. Uma tal afirmação não só revela desconhecimento do pensamento de Rousseau e da articulação adequada das suas obras, como também enfraquece a crítica radical do actual sistema de ensino e da pedagogia administrativa que o molda: Guilherme Valente desautoriza-se a si mesmo e à sua causa quando afirma um tal disparate. Embora não tenha elaborado esta tese monstruosa, torna-se evidente que Guilherme Valente interpreta de modo errado o Emílio de Rousseau: ele deve ter lido esta obra como um convite a imitar a espontaneidade sensitiva da criança, em vez de uma reflexão racional do preceptor que dirige a espontaneidade da criança. Rousseau não faz o louvor do sentimento irreflectido, mas expõe uma «ciência pedagógica» que reconhece a necessidade da mediação, pelo menos durante um determinado momento do crescimento humano.
O que está aqui em causa não é a crítica justa do eduquês, mas sim o alinhamento político de certas figuras que lhe dão voz: Guilherme Valente diz ser "democrata" - sim, entre aspas, como se isso fosse suficiente para garantir a validade incondicional da seu projecto educativo alternativo. A herança revolucionária de Rousseau, viva ainda hoje, é a sua concepção democrática da pessoa humana: a sua humanidade democrática confere sentido à máxima liberal de Montesquieu, segundo a qual não devemos «abater ou aviltar a natureza humana». Ora, ao condenar a visão da infância de Rousseau, Guilherme Valente parece optar por um sistema repressivo de educação tout court: a educação como castração da espontaneidade da criança. À noção eduquesa de que "a criança não pode ser reprimida", Guilherme Valente opõe a noção autoritária de que "a criança pode e deve ser reprimida": a autoridade do professor que reclama é, afinal, o poder de repressão, tal como era exercido no tempo do fascismo. De facto, Guilherme Valente acerta quando escolhe Rousseau como seu próprio adversário e não como a força matricial do eduquês: o professor que rouba a liberdade do aluno é a figura encarnada da própria dominação. Guilherme Valente confunde o papel desempenhado pela escola na reprodução do actual sistema social com a própria pedagogia: o currículo oculto é um conceito crítico estranho ao pensamento pedagógico de Guilherme Valente. A crítica do actual sistema de ensino não pode ser desvinculada da crítica da sociedade estabelecida sem correr o risco de se converter naquilo que é efectivamente: a apologia da repressão, a nostalgia do fascismo.
A filosofia política de Rousseau é uma filosofia da liberdade. A doutrina do contrato social de Rousseau é completamente distinta da teoria de Hobbes: a unidade autêntica e verdadeira dos homens não é alcançada mediante a coacção, mas deve fundar-se na liberdade. Para Rousseau, a liberdade não exclui a submissão, que não é a submissão de uma vontade particular ou de uma pessoa individual aos caprichos de outras vontades particulares, mas sim o cancelamento da mera vontade individual enquanto tal: a vontade já não exige por si mesma, mas persiste e quer no âmbito da vontade geral. A partir deste tipo de contrato social fundado na liberdade, Rousseau estabelece uma conexão entre os conceitos autênticos de liberdade e de lei: a liberdade autêntica exige a vinculação a uma lei rigorosa e inviolável, que cada indivíduo estabelece sobre si mesmo, de modo a contribuir para a construção de uma forma de comunidade que proteja cada um dos seus membros com toda a força reunida e unificada da associação estatal. Assim, ao unir-se com os outros indivíduos, o indivíduo descobre que nessa união obedece tão-somente a si mesmo, porque a vinculação à vontade geral constitui a personalidade autónoma. A ética e a política de Kant e de Fichte recuperam este entusiasmo de Rousseau pela força e pela dignidade da lei.
Romper com a herança revolucionária de Rousseau é romper com a democracia radical: Guilherme Valente deseja - mesmo que não tenha consciência disso - um regresso à pré-modernidade. A sua vacilação entre a modernidade e a pós-modernidade revela a sua nostalgia pelo passado autoritário, sobretudo quando rejeita, num gesto primário de estupidez mecânica, toda a herança iluminista: o pensamento pedagógico de Guilherme Valente é avesso a todo o universo democrático. Medina Carreira colocou sobre a mesa a questão pertinente de saber como podemos mudar os rumos da educação em Portugal se todo o sistema de ensino está dominado pelo eduquês: conferir autoridade a professores eduqueses - isto é, "burros", na terminologia campestre de Medina Carreira -, não altera qualitativamente o sistema educativo. Guilherme Valente parece apostar nos alunos que queiram ser transformados em joguetes dos desígnios ocultos dos sequazes da reflexão pedagógica, que, na sua óptica, visa "intencionalmente" destruir a escola. O eduquês e o valentismo partilham a mesma visão da dominação: a relação entre professor e aluno é vista, nos dois casos, como uma relação de subordinação, a dominação do aluno sobre o professor (eduquês) ou a dominação do professor sobre o aluno (valentismo). A politização da escola é fatal: o modelo da governação transposto para a escola conduz à sua destruição. E foi isto que Rousseau condenou na sua linguagem paradoxal e, nas obras pedagógicas, autobiográfica: «a educação não só introduz diferença entre espíritos cultos e aqueles que não o são, mas também aumenta a que existe entre os primeiros em proporção da cultura, pois, quando um gigante e um anão caminham na mesma estrada, cada passo que um e outro derem propiciará uma vantagem ao gigante» (Rousseau). A desigualdade natural entre os homens é aumentada e agravada pela desigualdade de instituição - instituída pelo primeiro homem que, cercando um terreno, se atreveu a dizer "Isto é meu": Rousseau não defende a desigualdade social entre os homens, a começar pela desigualdade entre os espíritos promovida por um sistema de educação público que não transmite conhecimentos e instrumentos conceptuais e técnicos aos alunos mais desfavorecidos. A escola não deve enterrar os alunos ou mesmo os professores entre os vivos, erguendo entre eles muros de trevas impenetráveis aos seus olhares, e enlaçando-os de «tantas maneiras que, no meio dessa liberdade simulada, não possam dizer uma palavra, nem dar um passo, nem mover um dedo» sem que a vigilância malévola o saiba e o queira. O pensamento de Rousseau não está fechado, como o demonstra a diversidade de leituras existentes. Porém, a partir do momento em que a via da educação - preconizada por Kant e Cassirer - fracassou totalmente depois do 25 de Abril, resta-nos a via da revolução preconizada por Engels - o leitor atento de Rousseau: os homens escravizados e submetidos à violência do despotismo escolar estabelecido - os homens privados de conhecimentos efectivos e de futuro - devem recorrer à violência para se libertarem e para derrubarem os tiranos eduqueses. A via revolucionária - alargada a todas as esferas da sociedade portuguesa - é a única que pode garantir resultados positivos quase imediatos, sem comprometer e adiar o futuro por mais três ou quatro gerações. (Guilherme Valente é proprietário de uma Editora - Gradiva, cujos livros publicados não ajudam a melhorar a qualidade da cultura científica portuguesa: a divulgação científica é contrária ao verdadeiro espírito científico, fomentando nos seus consumido-res/leitores a ilusão de que sabem aquilo que não sabem.)
Anexo: Carlos Fiolhais publicou hoje (3 de Maio) um post sobre os comentários que foram realizados na Internet a propósito da intervenção de Guilherme Valente no debate "Plano Inclinado": veja aqui e aproveite para ler a entrevista de Guilherme Valente. Eu concordo plenamente com a crítica do eduquês, tal como tem sido praticada por Carlos Fiolhais, Nuno Crato ou Guilherme Valente, entre outros. Porém, repudio completamente a fundamentação do eduquês no pensamento pedagógico de Rousseau esboçada por Guilherme Valente, e penso que, nesse debate, Nuno Crato não foi explicitamente receptivo à desconstrução da modernidade. O eduquês é mais do que o nivelamento por baixo: o eduquês é a barbárie cultural consumada que elimina o conhecimento, a cultura do mérito e os seus portadores. Ou dito de forma mais radical: o eduquês é terrorismo anticultural. O "bom selvagem" de Rousseau - aliás uma noção extremamente complexa que ainda não foi bem compreendida - não é um terrorista. De modo provocante, prefiro ver nele o homem livre que rejeita a reflexão pedagógica do eduquês: o homem bom que diz não à colonização civilizacional e à maldade que produz na história. O pensamento conservador não suporta Rousseau - o republicano revolucionário que desejou derrubar a monarquia francesa, porque culpa o homem essencial pelo mal radical, em vez de culpar a sociedade e a história pelas quais o mal vem ao mundo. Rousseau soube reconciliar o enunciado - «o homem é naturalmente bom» - e o enunciado - «tudo degenera entre as mãos dos homens», culpando a sociedade - o homem-em-relação - pelo mal que se produz na história: o problema da teodiceia é assim resolvido sem imputar a origem do mal à natureza humana, a Deus ou ao homem pecador. A Direita não suporta a liberdade de um tal pensamento humanista: o seu desejo terrorista é condenar a natureza humana ao pecado, à degradação e à corrupção.
J Francisco Saraiva de Sousa

12 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bam, evitei entrar nas questões técnicas da leitura de Rousseau, embora tenha levado tudo isso em conta. Educação ou revolução? Até podemos tentar uma conciliação, encarando a educação verdadeira como condição necessária para a mudança qualitativa. Mas esta via da educação falhou e, sem alterar todo o paradigma social, não podemos repor a educação: os analfabetos funcionais não podem ensinar nada às gerações novas. Portugal sofre analfabetismo total: a solução deve ser rápida e radical.

O tal Valente não capta a noção de infância de Rousseau que identifica com o selvagem bárbaro e cruel. Enfim, não conhece Rousseau... e não está preparado para pensar a mudança. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Dizem por aí que o SIS anda a investigar os blogues portistas: devo ter sido investigado, embora não tenha falado do jogo de hoje. Porém, como sou transparente = não-corrupto, acho que o benfica mereceu ser apedrejado.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sou espero que façam hoje controle anti-dopping, porque não tem sido feito, quando na verdade os jogadores parecem jogar sob o efeito de drogas... Para mim, benfica é basura... lixo lisboeta.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Enfim, o campeonato está tão corrompido que até os serviços secretos dão a sua ajuda ao benfica corrupto e fascista: pidescos fascistas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A porcaria do benfica nem com a ajuda do árbitro consegue vencer: o FCPorto derrotou e humilhou o fascista com três golos superiores. Este campeonato devia ser impugnado: o benfica venceu na secretaria da liga e talvez com ajuda dos tunéis - esta é segura - e de drogas. O benfica não tem vergonha - honra e mérito: é a vergonha nacional-fascista.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A maior parte dos jornalistas comentadores mentem e distorcem sistematicamente aquilo que os treinadores dizem e a objectividade dos jogos: tal é a doença benfiquista que Jorge Jesus parece não querer sofrer.

A mentira é campeã em Portugal??? A mentira enterra o país no fracasso e na ilusão - completamente falido e sem dignidade.

Queriam festejar na Cidade Invicta? Ganhem juízo: nós não suportamos a corrupção e a mentira encarnadas. O povo do Norte está cada vez mais unido: sonha com a autodeterminação e a independência. Não temos orgulho fazer parte de um país sacana e mentiroso e corrupto e muito feio.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, e é mentira quando dizem que Jesualdo Ferreira não tem o apoio dos portistas, porque tem todo o apoio e confiança dos adeptos do Porto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Agora os comentadores querem punir os adeptos do Porto e mandar na nossa cidade, e esquecem que os nossos autocarros incendiados em Lisboa pelos diabos encarnados ainda não foram alvo de apuramento.

Também querem manchar a honra da polícia portuense! Querem escravizar-nos - tadinhos são mesmo saloios e agressivos - pessoas malvadas. :((

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vou contar uma coisa: os iluministas - entre os quais Rousseau - nunca questionaram a escola como o lugar onde os professores iniciam os alunos no conhecimento: a autoridade do professor não foi questionada, nem sequer pelos teóricos críticos. Maio de 68 apanhou-os desprevenidos: Adorno ficou chocado com as reacções rebeldes dos seus estudantes universitários - exibidas na sala de aula. 68: uma data a reter, uma mudança que nos levou ao caos presente. Eu fui educado no eduquês e sempre detestei o sistema que tudo fez para me domesticar, mas sem sucesso porque sou atomicamente rebelde. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É muito difícil resistir à beleza de Rousseau e às suas transformações do eu, em busca da liberdade perdida, isto é, da reconciliação. Sendo a sociedade contrária à natureza, Rousseau opõe-se enquanto eu à sociedade - à mentira universal: o eu assume a pesada tarefa de recusar uma sociedade que é a negação da natureza. É preciso ser muito seguro de si para compreender esta solidão guerreira: ela é bela e corajosa. É rebelde... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Abdicar de Rousseau é abdicar da nossa alma azul-ocidental. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não percebo como se pode dizer que Rousseau elimina o papel da docência na educação, alegando a natureza racional universal que se move a si mesma. Leram as obras de Rousseau? Se não fosse a minha natureza rebelde, o actual sistema de ensino tinha conseguido eliminar-me... O próprio Rousseau não resolveu todos os problemas que colocou... Viva a liberdade recuperada!