terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A Epopeia de Gilgamesh e a Idade Heróica do Porto

PORTO: Catacumbas da Igreja de S. Francisco
«Onde está o homem que é capaz de subir até ao céu? Só os deuses vivem para sempre com o glorioso Shamash, mas quanto a nós, homens, os nossos dias estão contados, as nossas ocupações são um sopro de vento. (...) Ó Shamash, ouve-me; ouve-me, Shamash; que a minha voz seja ouvida. Aqui na cidade o homem morre de coração oprimido, o homem perece com o desespero no coração. Eu olhei por cima do muro e vejo os corpos que flutuam no rio, e será essa também a minha sorte. Por certo sei que é assim, pois nem o maior dentre os homens pode alcançar os céus, nem o maior pode abarcar a terra. Por isto quero penetrar nesse país: porque não inscrevi o meu nome em tijolos como o meu destino decretou, quero ir ao país onde se corta o cedro. Estabelecerei o meu nome no lugar onde estão escritos os nomes de homens famosos; e onde estiver escrito o nome de qualquer homem, aí eu erguerei um monumento aos deuses. (...) Por Enkidu; eu amava-o ternamente, juntos suportámos toda a espécie de provações; por sua causa vim, porque a sorte comum dos homens o tomou. Por ele chorei de dia e de noite, não queria abandonar o seu corpo para ser enterrado, pensei que o meu amigo voltaria graças ao meu pranto. Desde que se foi, a minha vida nada é; por isso é que viajei até aqui à procura de Utnapishtim, meu pai; porque os homens dizem que ele entrou na assembleia dos deuses e encontrou a vida eterna. Tenho o desejo de o interrogar acerca dos vivos e dos mortos. (...) (Gilgamesh, para onde vai a tua pressa? Nunca encontrarás essa vida (eterna) que procuras. Quando os deuses criaram o homem, atribuíram-lhe a morte; mas a vida, essa ficou para eles.) Por causa do meu irmão eu temo a morte, por causa do meu irmão vagueio pelo deserto. A sua sorte pesa sobre mim. Como posso eu ficar silencioso, como posso descansar? Ele tornou-se pó e também eu morrerei e me deitarei na terra para sempre.» (Gilgamesh)

Graças aos estudos pioneiros de H. Munro Chadwick, sabemos que as chamadas Idades Heróicas, que surgiram em diferentes épocas e em diferentes locais, não são meros fenómenos literários, mas sim fenómenos históricos que permitem articular o conceito de idade heróica em função da estrutura social, da organização política, das concepções religiosas e das formas de expressão artística. Conhecemos relativamente bem quatro idades heróicas, três indo-europeias e a outra da Suméria: a idade heróica grega que floresceu na Grécia continental no final do segundo milénio a.C.; a idade heróica da Índia que se verificou cem anos mais tarde que a grega; a idade heróica teutónica que dominou grande parte do Norte da Europa do século IV ao século VI da nossa era; e a idade heróica da Suméria que alcançou o seu apogeu no primeiro quarto do terceiro milénio a.C. A cada uma destas idades heróicas corresponde, no plano estético, uma forma de narrativa épica, que era recitada ou cantada pelos bardos ligados à corte. Chadwick caracterizou as idades heróicas grega, indiana e teutónica (germânica) como períodos bárbaros que partilham alguns traços comuns. Quanto à organização política, os reinos minúsculos constituem as unidades políticas fundamentais da Idade Heróica: cada reino é governado por um rei ou príncipe que obteve e conserva o poder graças às suas façanhas heróicas. O seu poder apoia-se no comitatus, o grupo de leais nobres armados dispostos a cumprir sem discussão as suas ordens, por mais temerárias e perigosas que sejam as empresas. Alguns reis dispõem de um conselho, que convocam segundo o seu arbítrio e que apenas tem função consultiva e capacidade confirmatória. Os reis destes pequenos reinos mantêm entre si relações constantes, umas amigáveis e íntimas, outras de hostilidade. Eles formam uma espécie de casta aristocrática mundial. Apesar dos heróis serem concebidos como tendo origem divina, não existem vestígios de um culto dos heróis: o culto predominante é o culto de divindades antropomórficas que, em larga medida, eram reconhecidas nos vários reinos, embora cada um deles tivesse as suas divindades locais e os seus próprios cultos. As deidades formam comunidades organizadas que, sob a direcção de um deus poderoso, vivem num lugar escolhido. Além deste culto central, há vestígios de cultos animistas: a Idade Heróica caracteriza-se pela crença de que depois da morte a alma vai viver para um lugar distante da Terra. Considerado como a pátria universal das sombras, este lugar está reservado a todos os habitantes da Terra, independentemente do reino a que pertencem. Na Idade Heróica, surgem as narrativas épicas, de forma poética, que reflectem e iluminam o espírito e a sensibilidade da época: as classes dirigentes, movidas pelo desejo de fama e glória, incitam os bardos e os menestréis ligados à corte a improvisar poemas narrativos (lais) que celebravam as aventuras e os feitos heróicos dos reis. Estes poemas épicos eram recitados nos banquetes e festins da corte, sendo provavelmente acompanhados de harpa ou de lira. As epopeias escritas durante a Idade Heróica - e magnificamente analisadas por Georges Dumézil, pelo menos as indo-europeias, com especial destaque das nórdicas (Irlanda, Escandinávia, Islândia) - apresentam semelhanças de forma e de conteúdo: todos os poemas épicos dizem respeito a indivíduos, a heróis individuais, cujas acções e façanhas são narradas pelo poeta, sem levar em conta o destino ou a glória da comunidade. O poeta introduz motivos imaginários na sua narrativa, tais como os sonhos agoirentos, a presença dos deuses ou a força exagerada dos heróis, e, em termos estilísticos, recorre abundantemente a epítetos convencionais, repetições, fórmulas recorrentes e descrições pormenorizadas, dedicando um grande espaço a falas e, no caso de Homero, a monólogos interiores. Recordo aqui o célebre monólogo interior de Ulisses no canto XX da Odisseia, a obra que inspirou o Ulisses de James Joyce (1922): «- Sê paciente, coração! Tu sofreste ousadias maiores, naquele dia, em que o Ciclope, no seu furor indomável, me devorou os valentes companheiros. E tu suportaste, então, até que a minha astúcia te salvou do seu antro, onde pensava morrer». Ou a parte inicial do longo monólogo interior de Heitor no canto XXII da Ilíada: «Ai de mim, se me refugio nas portas e nas muralhas, Polidamante será o primeiro a lançar-me em rosto o opróbrio, ele que me mandou conduzir os Troianos para a cidade no começo daquela noite funesta em que o divino Aquiles entrou em acção. Eu, porém, não acedi; bem melhor teria sido, por certo». De todas estas epopeias da Idade Heróica aquela que mais marcou o Ocidente foi, sem dúvida, a Ilíada de Homero, a tragédia de Heitor, segundo James Redfield, embora a mais antiga seja Gilgamesh: «O que nos fascina na Ilíada é que ela é um começo. É provável que tenham existido poetas épicos antes de Homero. Mas não os conhecemos e não os conheceremos jamais. As areias do Egipto devolvem-nos a pouco e pouco as comédias de Menandro, autor do século IV. Eventualmente, podem restituir-nos uma tragédia inteira de Eurípides. Jamais nos restituirão uma epopeia anterior à Ilíada. Uma epopeia posterior? Isso pelo menos não é impossível. As nossas bibliotecas enriquecem-se com outras epopeias, estas orientais, tais como a de Gilgamesh, herói mesopotâmico, que, também ela, é uma reflexão sobre a condição humana em relação ao mundo divino. Mas Gilgamesh só nos foi restituído após a descoberta de fragmentos nos tells, colinas da Mesopotâmia (hoje Iraque), no século XIX. Por isso, esta epopeia não pôde ter sobre a nossa cultura a fabulosa influência de A Ilíada, nem a de A Odisseia» (Pierre Vidal-Naquet).  Mas mesmo que tivesse sido a primeira epopeia descoberta, Gilgamesh - o herói da Suméria - não poderia rivalizar com o encanto dos poemas homéricos, não só porque lhe falta na sua versão suméria originária a tentativa de integração dos episódios narrados nos diversos contos, desligados uns dos outros, num único poema extenso, tentativa levada a cabo pelos poetas babilónios na sua Epopeia de Gilgamesh, mas também porque os seus heróis são quase destituídos de individualidade e os episódios são narrados num estilo parado e convencional, muito distante do movimento plástico e expressivo dos poemas homéricos. Desconhecendo a métrica e o verso uniforme, o poeta sumério obtinha os seus efeitos rítmicos através de variações em modelos de repetição. No entanto, apesar destas diferenças, os poemas épicos da Suméria, dedicados aos três heróis, Gilgamesh, Enmerkar e Lugalbanda, pensaram a condição humana por oposição à condição divina, no seu traço incontornável que distingue os homens dos deuses, os mortais dos imortais: a mortalidade.

A narrativa de Gilgamesh - a mais bela das obras da literatura babilónica - que vou resumir foi exumada nas colinas do Iraque, no século XIX, e examinada por George Smith: a «obra» que os antigos babilónios chamavam o Ciclo de Gilgamesh compunha-se de doze cantos, cada um com cerca de trezentos versos. Cada canto estava inscrito numa placa separada na biblioteca de Assurbanipal, formando a narrativa do Dilúvio a maior parte da undécima placa. As inscrições foram realizadas no período da antiga Babilónia (séculos XVII e XVIII a.C.), e traduções de partes do poema em hurriano, hitita e indo-europeu foram descobertas em placas datadas da segunda metade do segundo milénio a.C.. A Epopeia de Gilgamesh era, portanto, estudada, traduzida e imitada na antiguidade em todo o Próximo Oriente, cabendo aos poetas babilónios a tarefa de plagiar, modificar e adaptar os breves e episódicos contos sumérios com o propósito de fazerem uma grande epopeia. O poema épico começa por uma breve introdução, aliás uma invenção dos babilónios: Gilgamesh, rei de Uruk (Erech), é um herói inquieto, que oprime os seus súbditos. Cansados da tirania do seu rei, os habitantes de Uruk queixam-se aos deuses, que mandam a deusa Aruru pôr fim a esta situação insuportável. Aruru modela em argila o poderoso Enkidu, destinado a domar o carácter de Gilgamesh e a disciplinar-lhe o espírito. Sendo mais animal do que humano, Enkidu vive entre os animais selvagens da planície. Para o humanizar, uma prostituta de Uruk encarrega-se de despertar e satisfazer o seu instinto sexual. Deste modo, através da experiência sexual, Enkidu perde o seu aspecto físico e a sua força bruta, ao mesmo tempo que adquire desenvolvimento mental e espiritual. A sua inteligência afasta os animais da sua companhia, e a prostituta ensina-lhe as maneiras civilizadas de comer, beber e vestir-se. Depois de ter sido humanizado, Enkidu está pronto para refrear a arrogância de Gilgamesh, que já tinha sido avisado em sonhos da sua vinda. Para lhe provar que ninguém pode ser seu rival em Uruk, Gilgamesh organiza uma orgia nocturna e convida Enkidu a participar. A libertinagem de Gilgamesh revolta-o de tal modo que Enkidu tenta impedi-lo de entrar na casa onde essa orgia devia ter lugar. Gilgamesh e Enkidu lutam um contra o outro, com o segundo a levar vantagem sobre o seu rival. De repente, por alguma razão desconhecida, talvez por causa do súbito despertar de uma atracção homossexual!, a cólera de Gilgamesh desaparece: os dois rivais beijam-se e abraçam-se, e o combate dá lugar a uma longa e leal, constante e fecunda, amizade entre os dois heróis. Porém, a vida sensual e alegre da cidade debilita Enkidu. Preocupado com a saúde do seu amigo, Gilgamesh sugere-lhe uma expedição à longínqua floresta dos cedros, para matar o seu terrível guardião, Huwawa, cortar os cedros e expurgar da terra tudo o que ela tem de mau. Enkidu adverte-o do perigo mortal da aventura, mas Gilgamesh zomba dos seus receios, dizendo-lhe que prefere adquirir fama e glória duradouras a viver uma vida longa mas sem valor. Consulta os anciãos de Uruk e, depois de obter a aprovação de Shamash, o deus do Sol e o patrono dos viajantes, manda forjar as armas adequadas para ele e para o seu amigo. Quando os artífices lhes entregam as armas feitas para mãos de gigantes, eles partem para a expedição e, depois de uma longa e esgotante viagem, alcançam a floresta dos cedros, onde matam Huwawa e cortam as árvores. Mas quando regressam a Uruk, Ishtar, a deusa do amor e da luxúria, apaixona-se por Gilgamesh. Gilgamesh sabe que Ishtar teve numerosos amantes e que é infiel e, por isso, ridiculariza as suas promessas de muito grandes favores, no caso dele satisfazer os seus desejos. Ofendida por ter sido rejeitada, Ishtar procura convencer Anu, o deus do Céu, a enviar o Touro Celeste contra Uruk, a fim de matar Gilgamesh e destruir a cidade. Anu recusa, pelo menos inicialmente, mas quando Ishtar o ameaça de trazer os mortos do Inferno, cede: o Touro Celeste desce à terra, devasta a cidade de Uruk e massacra centenas de guerreiros. Gilgamesh e Enkidu conjugam furiosamente os seus esforços para lutar contra o monstro. Depois de terem conseguido matar o Touro Celeste, os dois heróis atingem o cume da glória na cidade dos homens: a cidade de Uruk ressoa com o canto de exaltação dos seus feitos heróicos. Mas os deuses põem subitamente fim à sua felicidade, ao condenar Enkidu a morrer num prazo curto, pelo facto de ter participado na morte de Huwawa e do Touro Celeste. Ao cabo de uma doença de doze dias, sob o olhar atento e terno de Gilgamesh, esmagado pelo sentimento da sua impotência e pelo desgosto, Enkidu solta o seu último suspiro e morre. Um sentimento duplamente amargo apodera-se do espírito de Gilgamesh: Enkidu morreu e ele próprio terá mais cedo ou mais tarde o mesmo destino. A fama e a glória que tinha conquistado através dos seus feitos heróicos constituíam uma fraca consolação perante a sorte comum dos homens: Gilgamesh deseja alcançar a imortalidade, a imortalidade do corpo e, por isso, parte à procura do segredo da vida eterna. No passado, houve um homem que conseguiu alcançar a imortalidade: Utnapishtim, o sábio e piedoso monarca da antiga Shuruppak, uma das cinco cidades capitais de reinos que existiam antes do Dilúvio. Sabendo disso, Gilgamesh decide dirigir-se ao longínquo lugar onde vive agora Utnapishtim, na expectativa de que ele lhe revele o seu precioso segredo. Percorre um longo caminho, cheio de percalços e de encontros, que descreve a Utnapishtim nestes termos: «Foi para ver Utnapishtim, a quem chamamos o Longínquo, que eu fiz esta viagem. Por isso vagueio pelo mundo, atravessei muitas e difíceis cordilheiras, atravessei os mares, esgotei-me a viajar; doem-me as articulações e perdi a familiaridade com o suave sono. As minhas roupas estavam gastas antes de chegar à casa de Siduri. Matei o urso e a hiena, o leão e a pantera, o tigre, o veado e a cabra montês, toda a espécie de caça selvagem e os pequenos bichos das pastagens. Comi a sua carne e vesti as suas peles e foi assim que cheguei à porta da jovem mulher, a fazedora do vinho, que me trancou a sua porta de breu e de betume. Mas por ela tive notícias da viagem; e assim cheguei até Urshanabi, o barqueiro, e com ele atravessei as águas da morte. Oh, pai Utnapishtim, tu que entraste na assembleia dos deuses, desejo interrogar-te acerca dos vivos e dos mortos; como encontrarei a vida que procuro?» Mas a resposta de Utnapishtim decepcionou Gilgamesh: «Nada permanece. Será que construímos uma casa para ficar para sempre, será que selamos um contrato para que valha em todos os tempos? Só a crisálida da libélula é que solta a sua larva e vê o sol na sua glória. Desde os dias antigos que nada permanece. Que semelhantes são os mortos os que dormem - são como uma morte pintada! Que há entre o senhor e o servo quando ambos chegaram ao seu fim? Os Anunnaki, os juízes, vêm juntos, e com Mammetun, a mãe dos destinos, decretam os destinos dos homens. A vida e a morte distribuem, mas o dia da morte não revelam». O rei de Shuruppak conta-lhe a história do Dilúvio que os deuses outrora enviaram à Terra para exterminar a humanidade e todas as criaturas vivas: o guerreiro Enlil, despertado pelo clamor, disse aos deuses reunidos em conselho: «O tumulto da humanidade é intolerável e já não é possível dormir com esta confusão». Para não perecer como os outros homens, ele abrigou-se no grande navio que Ea, o deus da sabedoria, o tinha aconselhado a construir: «Destrói a tua casa, digo-te eu, e constrói um barco». A vida eterna fora-lhes oferecida - a ele e à sua mulher - pelos deuses depois do dilúvio: «Quanto a ti, Gilgamesh, quem reunirá os deuses para tua salvação, para que possas encontrar essa vida que procuras?» Não tendo passado na prova de resistência ao sono durante seis dias e sete noites, Gilgamesh decide regressar a Uruk com as mãos vazias. Mas a mulher de Utnapishtim convence-o a indicar a Gilgamesh onde poderá encontrar a planta da eterna juventude, que cresce no fundo do mar: Gilgamesh mergulha até ao fundo das águas do mar e colhe a planta. Entretanto, na viagem de regresso a Uruk, enquanto se banhava numa nascente, uma serpente rouba-lhe a planta, e Gilgamesh, vencido pelo cansaço e pela desilusão, volta para Uruk, onde a morte o irá abraçar. O destino que Enlil lhe tinha decretado cumpriu-se: «Ó Gilgamesh, era este o sentido do teu sonho. Foi-te dada a realeza, tal era o teu destino, a vida eterna não era o teu destino». E a narrativa termina com este elogio: «Gilgamesh, o filho de Ninsun, repousa no túmulo. No lugar das oferendas ele pesou a oferenda do pão, no lugar da libação ele derramou o vinho. Naqueles dias partiu o senhor Gilgamesh, o filho de Ninsun, o rei, o incomparável, sem igual entre os homens, que não desprezou Enlil, seu mestre. Ó Gilgamesh, senhor de Kullab, grande é a tua glória!»

O meu interesse pela Epopeia de Gilgamesh deve-se não só à busca fracassada da vida eterna empreendida pelo herói depois da morte de Enkidu e ao sentido da narrativa do Dilúvio que exterminou a humanidade decadente, mas sobretudo à minha busca da idade heróica do Porto. Estou perfeitamente convencido que a Cidade do Porto teve a sua idade heróica antes de ter dado nome a Portugal. Há uma narrativa da Odisseia que permite vislumbrar os aspectos fundamentais dessa idade heróica do Porto, ligando-a à navegação. E, num voo de vertigem mágica, até é possível associar os estranhos navegadores da Odisseia ao Porto. Dir-me-ão que se trata de uma história imaginária da cidade do Porto, mas o vosso argumento é demasiado medíocre para merecer a minha atenção. Eu sou como os poetas anónimos das grandes epopeias: gosto de introduzir motivos imaginários para evidenciar os motivos históricos, de modo a mostrar que o Porto tem uma história própria anterior à formação de Portugal. Para proteger o Porto da má fama que Portugal tem no mundo inteiro, torna-se necessário regressar às suas origens: a longa viagem de Gilgamesh à procura de Utnapishtim converte-se aqui numa viagem em busca das nossas origens remotas que justificam o nosso sentimento profundo de sermos estranhos em relação aos restantes "portugueses". Samuel Noah Kramer utilizou um caso histórico bem conhecido para tentar resolver o chamado problema da Suméria, a chegada dos Sumérios à Mesopotâmia: a Idade Heróica dos Germanos coincide com um período de migrações, tendo sido precedida pelo contacto multi-secular dos povos germânicos primitivos com o Império Romano em vias de desintegração. Os germanos sofreram durante vários séculos a sua influência cultural como reféns nos seus tribunais e mercenários nos seus exércitos. Durante os séculos V e VI da nossa era, os germanos aproveitaram o enfraquecimento do Império Romano para ocupar a maior parte do seu território: o apogeu da sua Idade Heróica foi alcançado durante estes dois séculos. Ora, os factores utilizados por Kramer para determinar a origem e o desenvolvimento da Idade Heróica da Suméria - migrações e contacto prolongado com uma civilização superior em via de desintegração - podem ser usados para determinar a origem e o desenvolvimento da Idade Heróica do Porto, até porque o Porto Romano se desintegrou pela acção das invasões bárbaras que sofreu ao longo de séculos. Ao apelar à autoridade de Kramer, pretendo reformular as perspectivas históricas de António de Sousa Machado e de Mendes Correia sobre as origens da cidade do Porto: os ilustres historiadores portuenses não souberam dar eco à concepção portuense do Porto como Cidade-Estado. Esta concepção e o sentimento de estranheza dos restantes "portugueses" são vestígios da Idade Heróica do Porto. Sabemos que a bela Foz do Rio Douro atraiu ao longo de séculos diversos povos invasores, em especial invasores nórdicos. A escassez de fontes escritas não permite reconstruir a história do Porto durante este período das invasões, pelo menos de modo detalhado, sobretudo quando são lidas à luz da formação de Portugal e das Cruzadas: o cristianismo - o Porto-Diocese! - não pode eclipsar a Idade Heróica do Porto, cujos heróis foram esmagados pelo peso da falsificação cristã. Terá tido o Porto a sua grande epopeiaSerá que não tivemos um Gilgamesh portuense, o herói inquieto que parte em busca da vida eterna? Será que não tivemos um Ulisses portuense que domina os adversários com a sua astúcia? Será que não tivemos um Aquiles portuense capaz de matar o adversário com a sua espada? Será que não tivemos um Heitor portuense cuja vida tenha sido uma tragédia? E os nossos heróis nórdicos? Manuel Pereira de Novais, ilustre historiador portuense do século XVII, afirmou que o Porto foi fundado por um Príncipe chamado Calais, filho de Boreas, rei da Trácia, no ano 2740 da criação do mundo, 32 anos antes da destruição de Tróia e 2216 anos antes do nascimento de Cristo, e António Cerqueira Pinto, ilustre historiador portuense do século XVIII, preferiu dar esse mérito a Noé, cujas galés entraram no Rio Douro. Fantasia histórica? Talvez, mas sem fantasia não há cidade! Creio que o Porto teve a sua grande epopeia, um conjunto complexo de sagas heróicas que foram dispersas para não incentivar o espírito de autonomia da cidade do Porto e dos seus habitantes. Mas o Porto não só teve uma epopeia, como também é, ele próprio, uma epopeia. Dado que Porto significa "abertura ao mundo", devemos -  enquanto portuenses - partir à descoberta dessa epopeia lá onde nasceram os povos que fizeram o Porto - celtas, romanos, suevos e visigodos - e dos quais somos descendentes. (O Porto não tem sangue sarraceno!) Com este movimento para trás, em busca do nosso passado originário, estamos a dar dois passos para a frente. Actualizando o passado conquistamos o futuro: o Porto foi, é e será para sempre uma Cidade-Estado, cuja grande epopeia deve ser arrancada ao esquecimento nacional. Chegou a hora de adormecer os santos e de acordar os heróis!

J Francisco Saraiva de Sousa 

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Lendo Homero...

Busto de Homero
«Estando a sós a trocar estes desagradáveis discursos, acompanhados de lágrimas copiosas, aproximou-se a alma de Aquiles, filho de Peleu, com a de Pátroclo, a do nobre Antíloco e a de Ajax, que era o mais distinto entre os Dánaos, depois do nobre filho de Peleu, por sua beleza e por sua estatura. A alma do veloz neto de Éaco reconheceu-me e, lamentando-se, disse-me estas aladas palavras:

- Filho de Laertes, da estirpe de Zeus, Ulisses fecundo em recursos, porque meditaste, infeliz, no teu espírito uma empresa maior do que as passadas! Como tiveste a ousadia de baixar ao Hades, onde os mortos habitam, privados do uso dos sentidos e como sombras de homens que morreram?

Assim falou; e eu repliquei-lhe: Ó Aquiles, filho de Peleu, o mais valente dos Argivos, eu vim por causa de Tirésias, em busca de um conselho para chegar à rochosa Ítaca. Na verdade, ainda não me aproximei da Acaia, nem pus os pés na minha terra, pois tenho andado sempre a padecer infortúnios. Mas tu, Aquiles, és o mais feliz dos homens do passado e do futuro, pois que, enquanto vivias, os Argivos honravam-te como aos deuses, e agora, estando aqui, tens pleno poder sobre os mortos; por isso, não deves afligir-te de ter morrido.

Assim falei; e ele disse-me logo em resposta:

- Preclaro Ulisses, não tentes consolar-me a respeito da morte! Eu preferia cultivar campos e trabalhar ao serviço doutrem, de um homem pobre e de poucos recursos, a dominar sobre todos os mortos. Fala-me do meu filho ilustre e diz-me se ele foi à guerra, para ser o primeiro na frente da batalha, ou não. Conta-me também se te constou que o nobre Peleu conserva ainda a sua realeza entre os numerosos Mirmídones ou se é menosprezado na Hélade e em Ftia, por causa da velhice lhe ter enfraquecido as mãos e os pés. Oxalá eu estivesse sob os raios do Sol para o auxiliar, tal como, um dia, na vasta Tróia, onde, em combate a favor dos Argivos, trucidei um exército valente! Se eu, sendo o mesmo, voltasse, ainda que fosse por pouco tempo, a casa do meu pai, eles temeriam o meu valor e as minhas invencíveis mãos, todos quantos o violentam e privam da sua realeza.

Assim falou; e eu repliquei-lhe: Não me constou nada a respeito do nobre Peleu; mas, acerca do teu filho Neoptólemo, vou declarar-te toda a verdade, tal como tu me pedes. Eu próprio fui quem o levou na nau bojuda de Esciro para entre os Aqueus de belas grevas. Aí, quando deliberávamos em conselho, junto da cidade de Tróia, ele falava sempre antes de todos; e os seus discursos eram inferiores apenas aos do divino Nestor e aos meus. E, quando na planície dos Troianos combatíamos com o bronze, nunca ficava entre a multidão ou na turba dos guerreiros, mas adiantava-se muito para as primeiras linhas, sem ceder a ninguém em valor. Muitos guerreiros matou nas refregas terríveis! Eu não poderia dizer ou nomear a quantos Troianos ele tirou a vida, em defesa dos Argivos. Direi apenas que matou a um herói como Eurípilo, filho de Télefo, com o qual morreram muitos Mísios, por causa dos presentes feitos a uma mulher. Excepto o ilustre Mémnone, ainda não vi homem mais belo do que ele.

Quando eu e os mais valentes dos Argivos entrámos no cavalo que Epeu fabricou (a mim fora-me confiado tanto abrir como fechar a porta da cilada), os chefes e conselheiros dos Dánaos limpavam as lágrimas e tremiam em todos os seus membros; mas nunca os meus olhos viram que a cor esplêndida de Neoptólemo se tornasse pálida ou que enxugasse as lágrimas do rosto. Pelo contrário, ele pedia-me com insistência que o deixasse sair do cavalo e empunhava a sua espada e a lança énea, meditando males contra os Troianos. E, depois que destruímos a alta cidade de Príamo, embarcou na sua nau com uma bela recompensa, que lhe tinha cabido em parte, e sem o ter alcançado o bronze agudo nem ser ferido em combate corpo a corpo, como muitas vezes na guerra sucede, em que Ares se enfurece contra todos indistintamente.

Assim falei; e a alma do veloz neto de Éaco afastou-se, a grandes passos, pelo Prado do Asfódelo, contente por lhe ter dito que o seu filho era um guerreiro distinto. (...)». (Homero, Odisseia, XI)

A vulnerabilidade da literatura portuguesa deve-se, em grande medida, ao facto dos portugueses nunca terem cultivado as obras clássicas dos gregos. No universo da língua portuguesa, não descobrimos nenhuma obra que possa ser equiparável ao Fausto de Johann W. Goethe, à Morte de Empédocles de Hölderlin, aos Sonetos a Orfeu de Rainer Maria Rilke ou ao Ulisses de James Joyce: o Fausto, Tragédia Subjectiva, de Fernando Pessoa revela apenas a sua indigência cognitiva que nos cobre de vergonha. A epopeia de Camões é pálida e, infelizmente, o Prometheu Libertado de Guerra Junqueiro nunca passou de esboço do poema. E onde está a versão portuguesa da Antígona de Sófocles? Quando estudava Filosofia, cheguei a assistir a duas ou a três palestras de Maria Helena da Rocha Pereira, cuja antologia da Cultura Grega, Hélade, ainda continua a ser uma obra inovadora em Portugal. Mas os seus estudos sobre cultura grega, embora interessantes, estão aquém - em termos de apropriação crítica do pensamento grego - daqueles que lhe dedicaram os especialistas ingleses, alemães e franceses: a lacuna grega não foi completamente preenchida na cultura portuguesa pela obra de Helena da Rocha Pereira. A grandeza da literatura inglesa, alemã e francesa deve-se à idealização precoce da antiga Hélade levada a cabo pelos pensadores e pelos poetas dos respectivos países. Portugal permaneceu estupidamente à margem da tarefa de apropriação critica do legado grego, e, ainda hoje, não temos edições completas das obras dos autores gregos. É certo que elas foram praticamente todas traduzidas, mas estão dispersas em traduções que exigem ser corrigidas sempre que deixam escapar a subtileza do pensamento ou mesmo a riqueza psicológica. Assim, por exemplo, lendo as traduções portuguesas dos diálogos platónicos, não conseguimos apreender a sua concepção do pensamento, pelo menos tal como a definiu Hannah Arendt: as traduções omitem que Sócrates, no seu diálogo com Cálicles, no Górgias, avança com uma noção-chave: «eu, que sou um». A sua omissão não permite descobrir que, «embora eu seja um, não sou simplesmente um, tenho um ser próprio e entro em relação com esse ser próprio enquanto meu próprio eu. Este si mesmo de cada um de nós não é de modo algum uma ilusão; faz-se ouvir falando-me - falo comigo próprio, não me limito a estar consciente de mim próprio - e, nesse sentido, embora seja um, sou dois em um e pode haver harmonia ou desarmonia no meu ser próprio. Quando discordo de outras pessoas, posso afastar-me delas; mas não posso afastar-me de mim próprio, e o melhor será, portanto, tentar pôr-me de acordo comigo antes de entrar em linha de consideração com os outros». De um modo geral, as traduções portuguesas tendem a transferir para as obras alheias a pobreza psicológica e cognitiva dos seus tradutores. A constatação frequente desta transferência levou-me a pensar que os portugueses são seres psicologicamente pobres, aquilo a que tenho chamado a mente primitiva dos portugueses, um traço provavelmente determinado por genes arcaicos inscritos no genoma lusitano. Curiosamente, o núcleo duro de colaboradores da revista Presença, em especial José Régio, avaliava a qualidade das obras literárias portuguesas em função da sua riqueza ou pobreza psicológicas. Ora, uma tal avaliação é mais psicológica do que estética, e, segundo penso, tem a sua razão de ser no facto de podermos constatar na vida diária a pobreza psicológica dos nossos interlocutores portugueses. Como é evidente, não estou a inserir Helena da Rocha Pereira no quadro da pobreza psicológica: os seus estudos sobre cultura grega estão aí para testemunhar a sua luta heróica contra a indigência mental e cognitiva dos portugueses. Mas os portugueses, além de serem seres psicologicamente pobres, são também seres malevolamente ingratos: o esforço de Helena da Rocha Pereira não teve eco nas suas mentes vazias. Os portugueses condenam ao exílio interior todos aqueles que, entre eles, ousam pensar: o pensamento germinal dos outros agride-os de tal modo que se apressam a apagar todos os seus vestígios geniais. Helena da Rocha Pereira ainda não morreu, mas já foi enterrada em vida. As diversas mortes de Florbela Espanca são tentativas desesperadas de escapar à condenação-julgamento do público português, sendo o seu grande temor ser morta depois de ter morrido. É o carácter dilacerante desta experiência de ser um exilado na sua própria terra que leva os poetas e os pensadores portugueses a fazer dela o tema fundamental das suas obras. Porém, para se libertar da prisão que é Portugal, este tema deve abrir-se ao mundo exterior, além das fronteiras portuguesas. Ora, a leitura de Homero permite refrescar este tema obsessivo da poesia-pensamento português. Chegou a altura de regressar ao lar, o tema imortalizado por Homero e presente no Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett e nos Simples de Guerra Junqueiro! (Não sei se repararam que a fala de Aquiles, onde ele diz que preferia permanecer vivo como escravo de um homem pobre a ser rei dos mortos, questiona o núcleo duro da Ilíada: as duas obras apresentam concepções do mundo distintas. É sempre gratificante pensar que foi um mesmo poeta - Homero - que articulou estas duas concepções do mundo e da vida.)

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A Angústia de George Steiner

Porto: Ponte D. Luís I
«É-nos impossível pensar com clareza acerca das crises da cultura ocidental, acerca das origens e formas dos movimentos totalitários na Europa Central e na repetição da guerra à escala do mundo, sem termos bem presente no espírito que a Europa, após 1918, se achava ferida nos seus centros vitais. Reservas decisivas de inteligência, de têmpera nervosa, de talento político, tinham sido aniquiladas. A ideia satírica de Brecht e de Georges Grosz, segundo a qual tinham sido assassinadas as crianças que não chegaram a nascer, tem um sentido biológico concreto. Perdeu-se todo um conjunto de potencialidades físicas e mentais, de variantes e novas formas híbridas, excessivamente rico para o podermos avaliar, em termos da preservação e da evolução posterior da humanidade ocidental e das suas instituições. Já numa acepção biológica, é verdade que estamos perante uma cultura diminuída ou uma "pós-cultura"». (George Steiner)

Trata-se de um pensamento profundo, não na pena de Steiner que o usa para sobre-humanizar os judeus, mas na pena de Georg Trakl. Steiner pensa-o no quadro da extensão e das ramificações do elemento genético na história social, deixando adivinhar o esboço de uma genética histórica. Porém, aquilo que ele deveras lamenta é o facto dos campos de extermínio terem assassinado as crianças judias que não chegaram a nascer: as reservas de inteligência de que fala dizem respeito às crianças que não chegaram a nascer, porque os seus pais foram eliminados nos campos de extermínio. Assim, à luz deste elemento genético, manipulado para exaltar a suposta superioridade mental dos judeus, o sentido biológico do holocausto implica a perda de potencialidades, em termos da evolução posterior da humanidade ocidental, e a eliminação de uma «parte significativa do melhor futuro da Europa». Devido a este sectarismo judaico, aquilo que é verdade na poesia de Georg Trakl torna-se falso na prosa de Steiner: a cultura diminuída mais não é do que a cultura privada dos seus elementos judeus. Steiner apropria-se, sem pudor, da ordem da cultura clássica, como se fosse uma criação judaica, para responsabilizar e culpabilizar os europeus não-judeus pela degradação da cultura ocidental. O elogio que Steiner faz da cultura americana é puro veneno: os judeus que fugiram da Europa foram para os USA, onde se apropriaram das universidades. Elogiar a cultura americana é, pois, elogiar a inteligência dos judeus. Mas, afinal, onde está a superioridade da cultura americana de massas? A cultura de massas é a figura viva da cultura diminuída, da cultura do decibel, cuja emergência implica a morte da cultura clássica. O elemento judeu aparece aqui associado ao suicídio da cultura ocidental: os Estados Unidos da América são hoje o coveiro da civilização ocidental. Curiosamente, à luz dos critérios estipulados por Steiner para avaliar a perda de potencialidades, em virtude do assassinato dos não-nascidos, somos forçados a concluir que a Europa não perdeu nada com o extermínio dos judeus. Porém, independentemente destas considerações racistas sempre presentes na sua obra, Steiner esquece uma verdade mais essencial, de certo modo implícita na articulação entre o tempo e a morte ou mesmo entre a linguagem e o silêncio: a morte de uns dá espaço de vida aos outros. A morte é fundamental para haver renovação das reservas de inteligência. Hoje, neste nosso tempo indigente e sombrio, o envelhecimento populacional europeu mostra até à exaustão que uma civilização que adia a morte, prolongando irracionalmente a vida, não tem futuro: a gerontocracia instalada na Europa procede como se os seus membros fossem os últimos europeus. Mas muito antes da invenção dos campos de extermínio e da gerontocracia europeia, os portugueses já tinham descoberto um procedimento de liquidar os não-nascidos e os próprios nascidos. Com efeito, em Portugal, reina o princípio de que quem chega primeiro domina tudo, vedando o acesso aos outros que, para sobreviver, são forçados a emigrar. As classes dirigentes portuguesas funcionam como uma monarquia hereditária: apropriam-se fraudulentamente de todos os recursos nacionais, condenando os outros à eterna escassez. O atraso estrutural de Portugal deve-se a este princípio da corrupção malvada: impedir a renovação das reservas de inteligência através do bloqueio da mobilidade social. Aqueles que chegam primeiro agarram-se aos postos de poder e, tal como os cães que abocanham furiosamente um osso, mostram os dentes a quem se aproxime deles. A imbecilidade das elites portuguesas é de tal modo evidente que, para conservar a sua posição de privilégio de mentira, assassinam em vida todos aqueles que lhes lembram a sua mediocridade constitucional. Sem mobilidade, as instituições portuguesas não se renovam e não se modernizam, e, por isso, em vez de libertar o futuro, bloqueiam-no. A ditadura da mediocridade pode ter efeitos mais letais do que os campos de extermínio: a morte em vida é talvez mais cruel do que a morte. Neste sentido, a história de Portugal pode ser definida como um holocausto permanente: o extermínio planeado das reservas de inteligência e, por consequência, da redução das possibilidades futuras. Não admira que, quando morre uma personalidade pública, os portugueses festejem a sua morte, mesmo que simulem um luto recreativo. A morte significa abertura ao futuro: a morte de uns é a vida de outros. E quando se procura contornar esta lei, o resultado é a estagnação. Como é evidente, não podemos avaliar a perda de pessoas que não chegaram a nascer, a não ser para condenar a geração maldita, em nome de uma realidade que ainda não é, como sucede na poesia de Georg Trakl. Steiner segue outra via: ontologiza a condição do judeu, partindo do pressuposto teológico de que a morte de um judeu implica um retrocesso civilizacional. Porém, a verdade é que a Europa não sofreu um retrocesso civilizacional depois da Segunda Guerra Mundial: a ontologia judaica é assim desmentida. O verdadeiro holocausto está a acontecer no nosso tempo: o elemento judeu do capitalismo (Sombart), tal como se desenvolveu nos países anglosaxónicos, ameaça mergulhar a humanidade no abismo. Ao não acreditar na benevolência do capitalismo, Steiner é forçado a reconhecer nele a presença do elemento judeu. Afinal, a obra de Steiner abre-nos inadvertidamente um horizonte não-diminuído: radicalizar todo o processo de secularização e banir todos os elementos do judaísmo-cristianismo que penetraram no seio da cultura ocidental. Ao abandonar a ideia de progresso Steiner baniu o judaísmo que permaneceu infiltrado - embora de uma forma secular - na cultura ocidental iluminista: o seu elogio do judaísmo converte-se finalmente no seu contrário, a condenação do próprio judaísmo. Negando o seu elemento judaico, a Europa pode recuperar a juventude da sua origem grega. Abdicamos alegremente do Paraíso, mas fazemos questão em reter o Inferno, o nosso escudo contra a barbárie!

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

George Steiner e o Colapso Civilizacional

George Steiner
«Sabemos hoje, enquanto Adam Smith e Macaulay o não sabiam, que o progresso material participa numa dialéctica de destruição concomitante e que devasta irreparavelmente os equilíbrios entre a sociedade e a natureza. Os progressos técnicos, soberbos em si próprios, têm contribuído activamente para a ruína dos sistemas vivos elementares e das condições ecológicas do mundo. O nosso sentido do movimento da história já não é linear, mas o de uma espiral. Somos hoje capazes de conceber uma utopia tecnocrática e higiénica funcionando num vazio de possibilidades futuras.» (George Steiner)

Já dediquei três seminários a Steiner, um centrado sobre as presenças reais, outro sobre a crise da palavra e ainda outro sobre filosofia da linguagem e comunicação. O seu interesse cabalístico pela linguagem fascina-me, mas o que me preocupa neste momento é a sua filosofia da cultura lida como filosofia da história. A primeira obra de Steiner que li atentamente foi No Castelo do Barba Azul: Algumas notas para a redefinição da cultura. Embora me tenha cativado, a obra não me trouxe mais-valia cognitiva: reencontrei nela os temas abordados pelos meus mestres da Escola de Frankfurt, sobrecarregados pelas cores cinzentas da experiência do holocausto. A encenação da história da civilização ocidental como uma criação de judeus cansou-me e continua a cansar-me. Steiner justifica-se citando Kafka: «Man schlägt den Juden und erschlägt den Menschen», ou, em tradução portuguesa livre, «aquele que fere um judeu mata o homem». Não admira que Steiner, orgulhoso de fazer parte do "povo eleito", o único povo de homens (sic), veja o Holocausto como uma Segunda Queda: o genocídio «não foi um mero fenómeno económico-social e secular. Actualizou um impulso tendendo para o suicídio da civilização ocidental. Foi uma tentativa de nivelar o futuro - ou, mais precisamente, de tornar a história comensurável com a crueldade natural, o torpor intelectual e os apetites materiais de uma humanidade que não se transcende a si própria. Se nos servirmos de uma metáfora teológica, e não temos por que nos desculpar por isso num ensaio sobre a cultura, poderemos dizer que o holocausto assinala uma Segunda Queda. Podemos interpretá-lo como um abandono voluntário do jardim e uma tentativa pragmática de queimar o jardim atrás de nós. Sem o que a sua memória continuaria a infectar a saúde da barbárie com os seus sonhos debilitantes ou os seus remorsos /Com a tentativa falhada de matar Deus e a tentativa quase conseguida de matar aqueles que O tinham "inventado", a civilização entrou, justamente conforme a previsão de Nietzsche, "na noite cada vez mais noite"». Steiner resume aqui o núcleo duro da sua filosofia da história: toda a história do Ocidente anterior ao holocausto é, praticamente, encarada como a sua preparação proto-fascista. A sua consumação no holocausto implica o colapso ou o suicídio da civilização ocidental, como se os alemães e os judeus fossem os únicos "ocidentais". Ora, esta filosofia da história de Steiner é, na sua essência, uma teologia (judaica) da história, que ousa usar o holocausto como o acontecimento que marca o advento da pós-cultura, como se depois de Auschwitz já não fosse possível escrever poesia (Adorno): Steiner apropria-se da civilização ocidental, reduzindo-a a uma antiquíssima conspiração contra os judeus e o "seu" Deus, e fazendo dela - no seu melhor momento - uma construção ou produção de e para judeus. Adorno escreveu que, na psicanálise de Freud, só os exageros são verdadeiros, mas, nesta concepção teológica da história que concentra toda a humanidade possível nos judeus, os exageros de Steiner são falsos. Todo o pensamento de Steiner é envenenado por um judaísmo racista que, para se apropriar da herança ocidental, responsabiliza os filósofos não-judeus e os cristãos pelo holocausto. (Apesar da sua erudição, Steiner esquece que o Inferno não é uma ideia cristã!) O judaísmo doentio de Steiner - bem como a sua insensibilidade pelo sofrimento das vítimas não-judias do nazismo! - faz o meu sistema imunitário produzir anti-corpos a um ritmo acelerado, para eliminar todas as "vacas sagradas" deste mundo. A minha primeira impressão continua a ser a minha impressão de hoje: o pensamento de Steiner é pensamento envenenado, no sentido que Nietzsche deu a este termo. Enquanto não depurarmos o seu pensamento, libertando-o das molduras judaicas que anseiam pela quimera de uma unidade perdida, com a ajuda de outros judeus esclarecidos, o melhor será esquecê-lo, até porque tudo aquilo que de importante disse já tinha sido formulado pelos grandes filósofos dos séculos XIX e XX, uns judeus, outros não-judeus. O que nos une, a nós que somos ocidentais de gema, não é o judaísmo, mas a filosofia e a política que emergiram nas Cidades-Estados da Grécia Antiga. Depois de nos termos libertado do jugo da religião, já adquirimos uma imunidade suficientemente poderosa para liquidar qualquer tentativa regressiva de colonização judaica. Estamos cansados do muro das lamentações dos judeus, do seu bezerro de ouro e da sua usura (Marx)! Há mundo para além dos judeus e, para haver mundo, os judeus não são necessários: a Steiner falta-lhe humildade e, por consequência, humanidade. Ninguém é mais humano do que outro homem. Ninguém conquista mais humanidade negando-a ao outro homem. Não é com a sua concepção do judeu sobre-humanizado - ou divinizado? - que Steiner cativa um público não-judeu de homens inteligentes e humanos, libertos das teias de aranha religiosas.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Franz Kafka e Georg Lukács

Franz Kafka (1883-1924)
«O medo do socialismo faz do homem, situado no seio do regime capitalista, um ser em perdição; no próprio Dostoiévski, devido às suas ligações confessionais e místicas com o pan-eslavismo, esta tendência mantém-se, no entanto, oculta (pelo menos em parte), e, em larga medida, somente aparente. Evidentemente a evolução, esboçada por Dostoiévski, não podia manter-se a este nível inicial. Substituindo a crítica da inumanidade pela da incultura capitalista, Nietzsche sistematiza numa concepção do mundo a atitude prática peculiar à personagem de Dostoiévski. Não nos cabe demonstrar aqui como esta identificação entre o capitalismo e o socialismo, este medo do "nivelamento por baixo" na "idade da técnica", esta recusa do progresso e da democracia se desenvolveram até chegar à demagogia social do nazismo; aliás, descrevi este processo detalhadamente na minha Destruição da Razão. Mostrei igualmente, nesta obra, que, após a queda de Hitler, esta mesma tendência se prolonga sob outras formas. A aversão ao socialismo torna-se uma verdadeira ideologia de cruzada e, ao mesmo tempo que se proclama, como palavra de ordem, a defesa da democracia, receia-se cada vez mais um "nivelamento por baixo", que ameaçaria o reino das pretensas "elites". Tudo isto na atmosfera da era atómica, com o sentimento de que o mundo corre para a sua perda e um pânico interior cada vez maior, que leva muitas vezes a aceitar, e mesmo a atiçar, a guerra fria». (Georg Lukács)

Os comentaristas da Televisão Portuguesa desconhecem ou, pelo menos, dizem desconhecer a origem social da ideologia neoliberal. Será que nunca leram uma obra de Walter Lippmann? Ora, aqui neste texto citado em epígrafe, Georg Lukács define correctamente o neoliberalismo como outra forma de nazismo que traduz no nosso tempo indigente, o da incultura capitalista generalizada, o medo do socialismo. A "Dona Merkel", como a denominou ontem Silva Lopes no debate Prós e Contras, dedicado à Grécia, protagoniza hoje na Europa essa ideologia de cruzada que prolonga de outra forma o nazismo: o neoliberalismo que quer desmantelar todo o Estado Social Europeu. O renascimento do imperialismo alemão, não pela via da guerra, mas pela via financeira, torna A Destruição da Razão uma obra demasiado actual. Embora não concorde com a estética de Lukács, sobretudo com a sua teoria do reflexo estético, reconheço que ele foi um dos vencedores a longo prazo do debate sobre o expressionismo promovido pela revista Das Wort em 1937-38: a sua crítica da vanguarda na literatura não pode ser inteiramente descartada, porque o tempo - o nosso tempo - lhe deu razão nas suas linhas histórico-literárias gerais. O debate sobre o expressionismo merece ser revisitado. Hoje não nos podemos colocar ao lado da defesa do vanguardismo por Ernst Bloch contra a defesa do realismo por Lukács, ou vice-versa: o debate precisa ser dialectizado, as posições precisam ser mediatizadas, de modo a descobrirmos nas suas malhas e nas suas encruzilhadas as origens distantes da crise do capitalismo de hoje. A crítica lukacsiana da vanguarda literária é a crítica da nossa situação social e cultural presente, agravada paradoxalmente pelo nivelamento por baixo que nos lançou na barbárie cultural total: a ignorância activa - o horror pelo conhecimento de Lacan! - foi diplomada. O desenvolvimento desta hipótese implica não só a crítica radical do capitalismo, como também a auto-crítica do pensamento de esquerda, uma arte em que Lukács era versado. Georg Lukács foi um dos filósofos mais brilhantes de todo o século XX: os seus inimigos burgueses e pequeno-burgueses, reaccionários ou revolucionários, seduzidos pela categoria existencial da angústia, recuperada para a filosofia por Kierkegaard e por Heidegger, para já não falar dos outros existencialistas, nunca quiseram compreender que a sua crítica da vanguarda literária pode e deve ser reconstruída a partir da fetichização da subjectividade: «(...) dissolução do homem e dissolução do mundo pertencem ambas ao mesmo sistema, engrandecem-se e reforçam-se mutuamente. Na base encontramos sempre a mesma concepção do homem: um ser desprovido de qualquer unidade objectiva, simples sequência incoerente de fragmentos instantâneos, extraídos de experiências vividas que são, por definição, tão impenetráveis para o indivíduo que as vive como para os outros homens» (Lukács). Dos seus múltiplos ensaios escolho aquele que parece ser o mais controverso mas também o mais fascinante, pelo menos para mim: Franz Kafka ou Thomas Mann? Apesar de apreciar os romances realistas de Mann, eu prefiro ler Kafka, mas esta minha preferência não me impede de reconhecer o momento de verdade da crítica que Lukács lhe dirige. Lukács era demasiado selectivo para referir um autor que não admirasse de algum modo: o mérito de Kafka nunca esteve em questão. Porém, a qualidade artística de Kafka não o coloca acima da crítica, sobretudo quando submete o homem ao poder de uma força transcendente que o esmaga: «Foi Kafka quem traduziu com mais rigor e da maneira mais sugestiva o sentimento do mundo que resulta de tal atitude (a atitude da impotência do homem para mudar o seu destino). Quando, em O Processo, o herói principal, Joseph K, é conduzido ao suplício, o autor diz de forma bastante evocadora: "Pensava nessas moscas que, agitando as pequenas patas quebradas, tentam escapar ao visco". Esta impressão de total incapacidade, esta paralisia perante a força incompreensível e inelutável das circunstâncias, é o motivo fundamental de todos os seus livros. O que se conta em O Castelo é muito diferente daquilo que se lê em O Processo - e mesmo completamente oposto -, no entanto, o sentimento (ou melhor: a concepção do mundo) da mosca caída na armadilha, que se debate em vão, atravessa toda a obra de Kafka. Esta impressão de impotência elevada ao nível de concepção do mundo, que em Kafka se transformou na angústia imanente ao próprio devir do mundo, o próprio abandono do homem em face dum temor inexplicável, impenetrável, inelutável, faz da sua obra como que o símbolo de toda a arte moderna. Todas as tendências que, noutros artistas, assumiam uma forma literária e filosófica, reúnem-se aqui no temor pânico, elementar, platónico, perante a realidade efectiva, eternamente estranha e hostil ao homem, e isto a um grau de espanto, de confusão, de estupor, que não tem paralelo em toda a história da literatura. A experiência fundamental da angústia, tal como a viveu Kafka, resume bem toda a decadência moderna da arte» (Lukács, A Concepção do Mundo subjacente na Vanguarda Literária). Em vez de reconstruir livremente a defesa do realismo por Lukács, em articulação com a sua crítica da vanguarda literária, prefiro dar a palavra a Lukács, numerando os parágrafos seleccionados:

1. «O caso de Kafka é mais complexo. Ele é, entre os escritores de vanguarda, um dos poucos que operam uma selecção dos detalhes, que apenas retêm aqueles que põem em relevo o essencial e que, por consequência, não sejam, sob esse aspecto, naturalistas. Do ponto de vista puramente formal, a sua maneira de tratar os detalhes é análoga, por consequência, nos seus princípios, à dos realistas. Para descobrir a oposição, é preciso considerar a estrutura interna da própria obra, essa realidade essencial e efectiva, que condiciona, em última análise, a escolha e a ordenação dos detalhes. Esta realidade é, para Kafka, a afirmação duma transformação inelutável - o Nada - e, por consequência, um recurso necessário à alegorização, que rompe a unidade da criação artística. (...) Do ponto de vista formal, Kafka está mais próximo do mundo terreno do que Hoffmann; na obra do primeiro, com efeito, o elemento fantasmagórico liga-se interiormente às formas que toma a vida quotidiana sob o regime capitalista; a própria vida torna-se fantasmagoria, sem que, no entanto, intervenha qualquer fantasma à maneira hoffmanniana. Mas é isso precisamente que quebra a unidade efectiva do mundo, que transforma - de modo essencial - na própria substância da realidade objectiva aquilo que não é mais, na verdade, do que uma visão subjectiva. A angústia, o pânico em face dum mundo totalmente reificado - o mundo do capitalismo no período imperialista (com o pressentimento das suas variantes fascistas) - ultrapassa o indivíduo que o sente; torna-se substância, mas só pode ser pseudo-substância subjectiva, indevidamente hipostasiada, e é por isso que a imagem da careta se transforma em imagem careteante. Consequentemente, por muito que Kafka se distinga, nos seus processos descritivos, da maior parte dos escritores da vanguarda, o seu princípio mais essencial de representação é, no entanto, o mesmo: o mundo concebido como a alegoria dum Nada transcendente. Com os sucessores de Kafka, esta diferença esfuma-se até desaparecer, e volta-se a uma forma "normal" de vanguardismo niilista (em Beckett, por exemplo, que une os temas de Kafka aos de Joyce, ou em Bien en Vue, de Rehn, em que as bases naturalistas ressaltam mais claramente ainda)» (Lukács).

2. «Franz Kafka é o exemplo clássico do homem que se imobiliza, com um pânico cego da realidade efectiva. A sua situação excepcional na literatura de hoje deve-se a ter sabido exprimir, de maneira directa e simples, esse sentimento em relação à vida; procuraríamos em vão, na sua obra, os requintes formais, as técnicas amaneiradas, pelas quais outros escritores pretendem traduzir a mesma estrutura de base. É mesmo esta estrutura, na sua simples imediaticidade, que determina a sua própria maneira de escrever. Por este aspecto da sua arte, pode parecer que Kafka pertence ao grupo dos grandes realistas. E esta filiação será ainda mais evidente - do ponto de vista subjectivo -, se se pensar que poucos escritores souberam, com igual poder, apreender o que o mundo tem de primitivo e de elementar, e o assombro sentido diante daquilo que nunca foi. (Nada me angustia mais do que aquilo que nunca foi e que podia ter sido!) Num tempo como o nosso, em que a rotina da experiência e do cliché reina sobre a maior parte dos que escrevem e dos que lêem, esta veemente impetuosidade produz necessariamente muito forte impressão. E o que aumenta ainda mais a intensidade desta arte é o facto de que, na obra de Kafka, não somente o sentimento descritivo é duma sinceridade sem afectação, muito rara na literatura dos nossos dias, como ainda o mundo do artista cria e conserva uma simplicidade e uma evidência que estão de acordo com esse sentimento. É nisto que reside a mais profunda originalidade de Kafka. Kierkegaard escreveu algures: "Quanto mais um homem é original, mais a sua angústia é profunda". É com tal originalidade perfeitamente autêntica, que Kafka representa esta angústia e, por isso mesmo, a estrutura objectiva que lhe apontam como causa exterior e que deve justificá-la. Se Kafka é um artista incomparável, não é de modo nenhum porque tenha descoberto novos meios de expressão, mas antes porque dá ao mundo objectivo, tal como o concebe, e às personagens que situa em face desse mundo, uma evidência ao mesmo tempo sugestiva e exasperante: "O que choca, diz Adorno, não é tanto a monstruosidade desse mundo mas a sua evidência". /O mundo infernal do capitalismo actual, esse poder demoníaco que paralisa toda a actividade verdadeiramente humana, eis o que fornece à obra de Kafka os seus verdadeiros materiais. O autor exprime-os com simplicidade e franqueza, mas mesmo essas qualidades são, como em todos os artistas, produto de tendências complexas, que mutuamente se recortam e se opõem. Desta complexidade, retenhamos apenas um único factor. No tempo em que Kafka escrevia, a realidade social que alimentava a sua angústia estava ainda muito longe, no plano objectivo, de atingir o seu completo desenvolvimento. Aquilo que ele descreve, por consequência, como um inferno, não é ainda o mundo, concreta e realmente infernal, que será mais tarde o fascismo; mas, à luz da sua angústia "profética", a velha monarquia habsburguesa toma um aspecto fantasmagórico. A indeterminação própria da angústia encontra o seu conteúdo mais adequado, no plano da arte, na cor local de Praga, com a sua atmosfera indefinível, que parece subtraí-la à história e ao tempo. Kafka aproveita, portanto, de duas maneiras a situação histórica em que está situado; por um lado, as suas particularidades concretas, porque enraízam imediatamente no velho império austríaco, recebem um hic et nunc sensível e a aparência duma existência social; por outro lado, a indeterminação daquilo que constitui, em última análise, a objectividade própria ao universo kafkiano exprime-se, pela pena do autor, com uma autêntica ingenuidade, a ingenuidade do puro pressentimento, do verdadeiro não-saber; e deste modo assume, na sua obra, o valor duma "condição humana", que se pretende "eterna", de maneira mais orgânica do que o farão os reflexos duma realidade social infernal e angustiante através das obras de escritores posteriores que, eliminando antecipada e muito artificialmente as determinações sociais concretas que se lhes apresentarão, serão forçados (para descrever precisamente o destino intemporal da existência humana em geral) a dissimular essa realidade sob os requintes duma procura formal. Daqui resulta, na obra de Kafka, uma surpreendente intensidade de efeitos imediatos, um muito mais forte poder de sugestão, que não conseguem suprimir, porém, o aspecto alegórico do hic et nunc. Porque mesmo os detalhes mais maravilhosamente sugestivos, referem-se sempre a uma realidade que os transcende, àquilo que constitui a própria essência do período imperialista, intuitivamente pressentida e estilizada em ser intemporal.  Não se trata, pois, como nos autores realistas, de factos centrais, de nós de bifurcação, de pontos cruciais para os conflitos que se desenrolam no presente, mas - em última análise - de simples cifras que se referem a um inapreensível além. Mais evidente, por consequência, é o seu poder imediatamente provocador, mais profundo é também o abismo, mais premente a ruptura alegórica entre o ser e o significado» (Lukács).

3. Georg Lukács coloca um desafio aos intelectuais para salvar a humanidade, tomando dois nomes sonantes da literatura ocidental como representantes dos dois grupos de escritores burgueses: a escolha entre Franz Kafka ou Thomas Mann? «Uma decadência artisticamente interessante ou um realismo crítico verdadeiro como a vida?» «O elemento decisivo é a resolução humana. O simples facto de fazer, no sentido tchekoviano, uma "interrogação racional", implica já, implica mesmo em primeiro lugar, uma direcção determinada. E se é realmente necessário escolher, escolher frutuosamente, a escolha que se impõe ao homem dos nossos dias é esta: aproximar-se da angústia ou afastar-se dela, eternizá-la ou ultrapassá-la, reduzi-la a um sentimento igual aos outros, na série infinitamente variada dos sentimentos que, juntos, contribuem para a constituição da vida interior ou fazer dela a determinante essencial da "condição humana". Todas estas questões, bem entendido, apenas dizem respeito secundariamente aos temas e às formas literárias, referem-se, em primeiro lugar, à própria atitude do homem em relação à vida, a atitude que o escritor tem por tarefa exprimir, quando compõe a sua obra. E sabemos já que, nesta atitude, o elemento decisivo é saber se o homem se desvia da realidade social, do devir histórico presente, para se votar a vãs abstracções - o que leva imediatamente à segregação da angústia no seio da consciência - ou se liga a esta realidade, a este devir, de maneira concreta, para combater inimigos concretos e promover aquilo que julga favorável. É claro que, antes de escolher uma destas duas atitudes, é necessário ter resolvido, em primeiro lugar, uma questão prévia: o homem concebe-se a si próprio como uma vítima desarmada de poderes transcendentes, incognoscíveis ou invencíveis, ou antes como membro activo de uma comunidade humana, no seio da qual lhe cabe desempenhar o seu papel, mais ou menos eficaz, mas que, à sua maneira, influencia sempre o destino da humanidade?» (Lukács). Conhecemos a decisão tomada por Lukács: escolheu Thomas Mann em detrimento de Franz Kafka. A sua opção foi severamente criticada no seu tempo, não só pelos escritores burgueses como também pelos escritores marxistas, mas hoje, quando a arte se converteu numa instituição mercantil, se quisermos tomar a nossa própria posição, não podemos negligenciar a sua crítica da vanguarda literária. A história efectiva deu-lhe razão, em grande medida, sem no entanto ter desmentido as estruturas fundamentais da condição humana. (Reparem que não concordo com a opção política de Lukács, nem sequer preciso descartar Kafka: afinal, sou herdeiro de toda essa tradição, para o bem e para o mal.)

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Walter Benjamin e Bertolt Brecht: o Teatro Épico

Bertolt Brecht (1898-1956)
Numa carta dirigida de Londres a Walter Benjamin, datada de Março de 1936, Theodor W. Adorno aconselha o seu amigo a levar a cabo na sua obra «a liquidação total dos temas brechtianos», não tanto os temas da dialéctica em estado de detenção, do empobrecimento da experiência e da preferência pela narração oral, mas sobretudo as infiltrações de método do "marxismo vulgar", em especial o realismo e o carácter popular da arte, traços que Brecht defendeu na famosa polémica em torno do debate sobre o expressionismo promovido pela revista Das Wort em 1937-38, no qual participaram Georg Lukács e Ernst Bloch: «Popular significa: compreensível para as grandes massas, adoptando e enriquecendo a sua forma de expressão, aceitando o seu ponto de vista, consolidando-o e corrigindo-o, representando o sector progressista do povo de tal modo que ele possa assumir o comando, ligando-se às tradições e continuando-as, transmitindo ao sector do povo que luta pelo poder as conquistas do sector que neste momento detém o poder. (...) Ser realista significa: revelar o complexo de causalidade social, desmascarar as opiniões dominantes como opiniões daqueles que dominam, escrever do ponto de vista da classe que dispõe das soluções mais amplas para os problemas mais urgentes com que a sociedade humana se debate, acentuar o factor evolução, ser concreto e abrir possibilidades de abstracção» (Brecht, Formalismo e Realismo). Benjamin que dependia financeiramente dos trabalhos publicados na revista que o Instituto de Pesquisa Social (Frankfurt) lhe pagava, foi colocado no meio do campo de ódio cerrado que Adorno e Horkheimer nutriam por Brecht, aliás um ódio recíproco, com o último a acusar Horkheimer de ser um "milionário" que comprou a cátedra na Universidade de Columbia para cobrir a actividade revolucionária no seu Instituto. Apesar da precariedade da sua existência faminta, Benjamin nunca deixou de admirar Brecht, não só o homem como também a obra, tendo-lhe dedicado diversos estudos, dos quais destaco os seguintes: O Que é o Teatro Épico?: Um estudo sobre Brecht (primeira versão), O Que é o Teatro Épico? (segunda versão publicada em 1939), Estudos sobre a Teoria do Teatro Épico, Comentário a Brecht (publicado em 1930), Um Drama de Família no Teatro Épico (publicado em 1932), O país em que não se permite nomear o proletariado (publicado em 1938), Comentários aos poemas de Brecht (alguns publicados em 1939), A Novela de Quatro Quartos de Brecht, O Autor como Produtor e Conversações com Brecht. Como é que Benjamin definiu a novidade revolucionária do teatro épico de Brecht? Benjamin repete muitos parágrafos de um ensaio para outro. Por isso, optei por citar um extracto do Autor como Produtor, onde ele resume a sua perspectiva sobre Brecht, sabendo eu que toda a citação de um texto «implica interromper o seu contexto». Também o teatro épico usa o procedimento da interrupção para suspender a acção, de modo a favorecer o distanciamento do público em relação a ela e do actor em relação ao seu papel. Eis o texto de Benjamin:

«Continuam a escrever-se tragédias e óperas que dispõem aparentemente de um aparelho cénico consagrado pela experiência, quando, na realidade, estas obras não fazem mais do que fornecer um aparelho cénico caduco. "A falta de esclarecimento acerca da sua situação, que reina entre músicos, escritores e críticos", diz Brecht, "tem consequências tremendas que não são suficientemente tidas em conta. Pensando possuir um aparelho que na realidade os possui, que já deixou de ser, como ainda julgam, um meio para os produtores, para se tornar um meio contra os produtores". E uma das razões principais por que este teatro de maquinarias complicadas, de enorme aparato de figurantes, de efeitos refinados, se tornou um meio contra os produtores foi o facto de os tentar aliciar para a luta de uma concorrência sem sentido, na qual o cinema e a rádio o enredaram. Este teatro - quer se trate do teatro "sério", quer do teatro de entretenimento: ambos são complementares, ambos se completam um ao outro - é o teatro de uma camada social saturada, para a qual tudo aquilo em que põe a mão se torna excitante. A sua causa é uma causa perdida. Não se passa o mesmo com um teatro que, em vez de entrar em concorrência com aqueles recentes instrumentos de publicação, os tenta aplicar e aprender com eles; numa palavra, um teatro que procura entrar em confronto produtivo com esses instrumentos. O teatro épico empenhou-se neste confronto. Comparado com o grau de desenvolvimento actual do cinema e da rádio, é este o teatro do nosso tempo.

«Com vista a tornar esse confronto produtivo, Brecht voltou-se para os elementos primitivos do teatro. Contentou-se, de certo modo, com um estrado. Renunciou a acções de grande complexidade. E assim conseguiu transformar a relação funcional entre o palco e o público, o texto e a representação, o encenador e o actor. Mais do que desenvolver acções, o teatro épico deve, segundo Brecht, apresentar situações. Chega a essas situações, como iremos ver, fazendo interromper as acções. Lembro aqui as canções, cuja função principal é interromper a acção. Deste modo - recorrendo ao princípio da interrupção -, o teatro épico retoma, como se vê, um processo que nos últimos anos se nos tornou familiar através do cinema e da rádio, da imprensa e da fotografia. Refiro-me ao processo da montagem: o elemento introduzido na montagem interrompe o contexto em que está inserido. Mas permitam-me chamar brevemente a vossa atenção para o facto de este processo ter aqui uma justificação especial, se não mesmo a sua verdadeira justificação.

«A interrupção da acção, devido à qual Brecht designou de épico o seu teatro, impede constantemente uma ilusão do público. Uma tal ilusão é, evidentemente, inútil para um teatro que pretende tratar os elementos do real no sentido de uma série de experiências. Mas é no fim e não no princípio desta experiência que se encontram as situações. Situações que, sob esta ou aquela forma, são sempre as nossas situações. Não se procura aproximá-las do espectador, mas sim distanciá-las dele. Ele reconhece-as como as verdadeiras situações, não com presunção, como no teatro do naturalismo, mas com espanto. O teatro épico não reproduz, pois, situações, antes as descobre. A descoberta das situações processa-se através da interrupção do fio da acção. No entanto, a interrupção não tem uma função de excitação, mas sim organizadora. Faz parar a acção em curso, e com isso obriga o ouvinte a tomar posição perante o acontecimento, o actor a tomar posição perante o seu papel. Vou mostrar-vos, com um exemplo, como a descoberta e a elaboração do elemento gestual por Brecht não é mais do que uma nova transformação dos métodos da montagem, decisivos na rádio e no cinema, que ele reconverte fazendo de um procedimento muitas vezes apenas utilizado, porque está na moda, um acontecimento humano. Imagine-se uma cena de família: a mulher está em vias de pegar numa estatueta de bronze para a atirar à filha; o pai, a abrir a janela para chamar por socorro. Neste momento entra um estranho. A acção foi interrompida; o que aparece em vez dela é a situação com que depara o olhar do estranho: caras transtornadas, a janela aberta, móveis destruídos. Mas há um olhar perante o qual as cenas mais banais da vida de hoje se apresentam de uma forma não muito diferente. É o olhar do dramaturgo no teatro épico.

«À obra dramática total ele contrapõe o laboratório dramático. Retoma de uma maneira nova o velho grande trunfo do teatro: fazer sobressair e pôr à prova o que se está a passar diante dos nossos olhos. No centro das suas experiências está o ser humano, o homem de hoje: portanto, um ser humano limitado, neutralizado num meio hostil. Mas, como não dispomos de outro homem, temos interesse em conhecê-lo. É submetido a provas, a juízos de valor. O que daqui resulta é o seguinte: os acontecimentos não são transformáveis no seu clímax, através da virtude e da decisão, mas apenas no seu desenrolar estritamente habitual, através da razão e da prática. Construir, a partir dos mais ínfimos elementos dos modos de comportamento, o que na dramaturgia aristotélica se designa por "acção" - é este o sentido do teatro épico. Os seus meios são, pois, mais modestos do que os do teatro tradicional; e também os seus objectivos. Pretende, não tanto encher o público com sentimentos, mesmo que sejam os da revolta, mas antes distanciá-lo de uma maneira duradoura, através da reflexão, das situações em que vive. Diga-se, apenas de passagem, que não há melhor ponto de partida para a reflexão do que o riso. E que a vibração do diafragma costuma ser um melhor estimulante do pensamento do que as vibrações da alma. O teatro épico só é exuberante nas ocasiões de riso que oferece» (Walter Benjamin).

O texto de Benjamin é de tal modo «claro» que dispensa o comentário. No entanto, para terminar, não posso deixar de referir a figura de pensamento usada por Benjamin para definir o teatro épico, precisamente aquela que me seduz: o teatro épico de Brecht é um teatro não-aristotélico, no mesmo sentido em que a geometria de Riemann é uma geometria não-euclidiana. Com efeito, Brecht contrapõem-no, ao caracterizá-lo como épico, ao teatro dramático de Aristóteles, suprimindo nele a purificação aristotélica, a libertação das paixões por meio da compenetração com a emotiva sorte (sina) do herói, cujo élan arrasta o público consigo, do mesmo modo que Riemann tinha suprimido na sua geometria o postulado das paralelas. Avançando de modo parecido às imagens de uma película cinematográfica, o teatro épico assume como forma fundamental o "shock", a experiência do choque mediante a qual as diferentes situações da peça se encontram umas com as outras. A partir daqui é possível retomar todos os temas brechtianos pensados por Benjamin. (No nosso tempo indigente, já nem teatro temos. Aqui na cidade do Porto - e não só! - o teatro tende a produzir no palco uma cena de nudismo. Enfim, teatro-pornografia barata, um mero prolongamento da vida diária consumida em múltiplos encontros sexuais casuais!)

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Walter Benjamin e o Inconsciente Colonial

Walter Benjamin
«(Em Munique), sob a orientação do americanista Walter Lehmann, (Benjamin) já havia iniciado os seus estudos sobre a cultura mexicana e a religião dos maias e dos astecas no semestre de Verão - estudos estreitamente ligados aos seus interesses mitológicos. Nessas conferências, que eram assistidas por poucas pessoas e por raríssimos estudantes universitários regulares, Benjamin travou conhecimento com a memorável figura de (Frei) Bernardino de Sahagún, a quem devemos tanto a preservação das tradições maias e astecas (...). Algum tempo depois, em Berlim, vi o grande dicionário asteca-espanhol de Molino - trata-se do Vocabulario de la Lengua Mexicana de Alonso de Molina, 1571, 1880! - sobre a escrivaninha de Benjamin: ele tinha-o comprado para aprender a língua asteca, mas nunca realizou o seu projecto.» (Gershom Scholem)

Graças à biografia intelectual de Walter Benjamin de Bernd Witte, sabemos que, durante a sua estadia em Munique em 1916, Benjamin frequentou diversos seminários, entre os quais o seminário sobre a linguagem e a cultura do México Antigo de Walter Lehmann. O entusiasmo de Benjamin pelas culturas pré-colombianas contagiou Scholem, o qual se sentiu impelido a frequentar o curso de Lehmann quando foi para Munique em 1919, tendo lido e recitado diversos hinos religiosos. Numa carta dirigida a Benjamin, datada de 13 de Abril de 1933, Scholem compara os acontecimentos na Alemanha com a expulsão dos judeus de Espanha em 1492, que foi também o ano do início da conquista e da colonização da América por Cristóvão Colombo. Infelizmente, Benjamin não chegou a aprender a língua dos astecas, a língua nahuatl, e do seu entusiasmo pré-colombiano restam apenas dois fragmentos: Embaixada Mexicana e Trabalhos no Subsolo da Rua de Sentido Único. Ei-los citados na íntegra:


  • Embaixada Mexicana. "Je ne passe jamais devant un fétiche de bois, un Bouddha doré, une idole mexicaine sans me dire: C'est peut-être le vrai dieu (Nunca passo diante de um fetiche de madeira, um buda dourado, um ídolo mexicano sem pensar comigo: esse é talvez o verdadeiro deus)" (Charles Baudelaire). «Sonhei uma vez que fazia parte de uma expedição científica ao México. Depois de termos atravessado uma floresta virgem de altas árvores, fomos dar a um sistema de grutas à superfície da montanha, onde, desde os tempos dos primeiros missionários, continuava a viver uma ordem religiosa cujos irmãos prosseguiam a sua obra de evangelização dos nativos. Numa das grutas centrais, imensa e fechada numa alta abóbada gótica, celebrava-se missa segundo o rito mais antigo. Entrámos e ainda assistimos à parte mais importante: um sacerdote ergueu um fetiche mexicano diante de um busto de Deus-Pai em madeira, que se via a grande altura, numa cavidade da parede. E a cabeça de Deus moveu-se três vezes da direita para a esquerda, em sinal de negação» (Benjamin).
  • Trabalhos no Subsolo. «Vi em sonhos um terreno deserto. Era a Praça do Mercado de Weimar. Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir» (Benjamin).


Benjamin descreve dois sonhos: as imagens do México Antigo tomam assim a forma de sonhos. As narrativas coloniais - até mesmo o belíssimo Códice Florentino de Bernardino de Sahagún - nunca despertaram verdadeiramente o interesse de Benjamin: a sua escrita imagística identifica desde logo o seu apego pelas topografias míticas que organizavam o espaço em terrenos elevados e subterrâneos, em ligação com o mundo do sonho, tão do agrado do surrealismo, como se constata nestas duas imagens oníricas do México. A interpretação destes dois sonhos não é fácil: ela exige o conhecimento da estrutura que localiza geograficamente o Passagen-Werk (O Livro das Passagens), dando-lhe uma ordem espacial. Tomando à letra a ideia de Benjamin de representar "a esfera da vida graficamente num mapa", Susan Buck-Morss mapeou a esfera da vida de Benjamin, de modo a incorporar os quatro pontos cardeais: «A Oeste está Paris, origem da sociedade burguesa no sentido político-revolucionário; a Leste, Moscovo marca o (seu) fim no mesmo sentido. Ao Sul, Nápoles localiza as origens mediterrânicas, a infância mitificada da civilização ocidental; ao Norte, Berlim assinala a infância mitificada do próprio autor». Paris, Moscovo, Nápoles e Berlim são as quatro cidades visitadas por Benjamin durante os anos vinte e trinta que permitem decifrar os traços de uma geografia política. Segundo Susan Buck-Morss, o projecto das Passagens está conceptualmente situado no centro destes dois eixos leste-oeste e norte-sul: o primeiro eixo indica o avanço da história empírica em termos do seu potencial social e tecnológico, e o segundo define retrospectivamente a história como ruínas de um passado irrealizado. Daqui resulta que as Passagens de Benjamin mais não são do que uma construção espaço-temporal da modernidade porosa - a porosidade de Nápoles! - ao desejo inconsciente e ao mito, aos sonhos do passado e do futuro. Porém, à geografia política da vida e da obra de Benjamin falta-lhe a perspectiva da internacionalização desses espaços - passagens, galerias, boulevards de Haussmann, cidades e Europa - e da sua estruturação pelo colonialismo e pelo imperialismo. Benjamin nasceu na Alemanha Imperial, recém-unificada, na qual o nacionalismo e o colonialismo se reforçavam reciprocamente no imaginário dominante da época: propaganda colonial alemã servia-se das exposições de colecções coloniais nos museus de Dresden e Berlim e de espectáculos de montagem de aldeias africanas para legitimar a sua ambição imperial. É provável que tanto Benjamin como Adorno tenham visitado os museus etnológicos e assistido aos espectáculos. Adorno referiu-lhe essa falta quando criticou o seu memorando de 1935, Paris, Capital do Século XIX, alegando que Paris era não só uma capital histórica mas também - e sobretudo - a capital geográfica de um espaço internacionalizado pelo imperialismo. Apesar do seu interesse pela fantasmagoria das Exposições Mundiais - as precursoras da indústria cultural, e pela categoria marxista de mercadoria, Benjamin recusou envolver Baudelaire na dimensão internacional do capitalismo apontada por Adorno, cuja teoria económica já tinha sido elaborada por Lenine, Rosa Luxemburgo e Rudolf Hilferding. Benjamin viveu de 1933 até 1940 em Paris, o seu segundo lar, tendo recolhido durante este período o material necessário para produzir a história das Passagens. A ascensão do nazismo forçou-o em 1940 a abandonar a cidade de Paris para tentar sair da Europa rumo à América, onde estavam os seus colegas da Escola de Frankfurt. O ano de 1940 modifica brutalmente a sua contextualização geográfica, levando-o numa experiência malograda para além da sua velha Europa, que o III Reich ameaçava destruir. (Convém ler a peça de teatro de Bertolt Brecht, Terror e Miséria do Terceiro Reich, tão admirada por Benjamin!) No entanto, os seminários de Walter Lehmann já tinham aberto essa possibilidade, conforme testemunham os dois fragmentos mexicanos da Rua de Sentido Único, o primeiro dos quais estabelece uma ligação entre o México e Baudelaire. É difícil determinar o carácter histórico ou literário dessa ligação: os últimos anos de Baudelaire (1862-67) foram vividos no contexto dos projectos imperiais de Napoleão Bonaparte para o México e do breve reinado do imperador Maximiliano I, cuja execução em 1867 foi pintada três vezes por Manet. Além disso, o interesse de Benjamin pela estética de Jugendstil mostra que estava ciente da intersecção entre o colonialismo alemão, o desenvolvimento institucional precoce da etnologia alemã e a arte: o primitivismo como forma cultural sempre fascinou Benjamin. De uma forma ou de outra, histórica ou literária, Benjamin regista a relação imperial, o imperialismo referido por Adorno, sem no entanto reflectir explicitamente sobre ela.

No fragmento Trabalhos no Subsolo, Benjamin desenterra oniricamente uma igreja mexicana - o santuário mexicano pré-animista - sob a Praça do Mercado de Weimar e acorda rindo da piada. Que relação pode haver entre a Praça do Mercado de Weimar e o santuário mexicano? No memorando de 1935, Paris, Capital do Século XIX, Benjamin permite vislumbrar a resposta numa frase referente a Grandville: «As exposições universais exaltam o universo da mercadoria. As fantasias de Grandville impõem o carácter de mercadoria ao universo. Modernizam-no. O anel de Saturno converte-se numa varanda de ferro forjado para onde vêm de noite tomar ar os habitantes do astro: a moda prescreve o ritual de acordo com o qual o fetiche deseja ser adorado. Grandville alarga a pretensão da moda aos objectos de uso quotidiano, ao próprio cosmos. Seguindo-a até ao seu extremo descobre a sua natureza. Esta está em contradição com aquilo que é orgânico. Liga o corpo vivo com o mundo inorgânico. Percebe no que está vivo os direitos do cadáver. O seu nervo vital é o fetichismo atraído pelo sex appeal do inorgânico. O culto da mercadoria coloca-o ao seu serviço». (O ensaio de Susan Sontag dedicado a Benjamin tem como título Sob o Signo de Saturno!) A teoria do fetichismo da mercadoria de Marx permite dar a resposta: a Praça do Mercado de Weimar e o santuário mexicano são locais de ritual fetichista, portanto locais de troca e de adoração. Em A Herança deste Tempo, Ernst Bloch considerou a Rua de Sentido Único como uma obra típica da "maneira de pensar surrealista". Mas será que Benjamin - além de tomar o México como representação da relação colonial - o usou também para representar um novo primitivismo surrealista? De facto, no ensaio O Surrealismo, O Último Instantâneo da Inteligência Europeia, Benjamin defende que a verdadeira piada (chiste) é surrealista. Porém, a piada mexicana contida na pseudo-palavra mexicana Anaquivitzli é deveras surpreendente, como já vamos ver. Benjamin presta uma homenagem ao surrealismo quando afirma que os surrealistas foram os únicos a terem compreendido o significado actual do Manifesto do Partido Comunista, mas nem por isso deixa de criticar a sua concepção não-dialéctica da natureza da embriaguez: os surrealistas que recusam acordar do sonho não podem ver a piada. Ora, para Benjamin, a história começa com o despertar, cujo limiar é demarcado na forma do riso: Benjamin acorda do sonho a rir, tanto da imagem do santuário mexicano pré-animista (primeira piada) como da sua contemporaneidade e da sua coexistência com a Praça do Mercado de Weimar (piada sobre a piada). A piada mexicana está situada aqui e não lá - algures no México - e, em vez de ser concebida como um mero resíduo de um passado cultural, como parece sugerir a temporalidade implícita no pré-animismo, o sistema anterior à cisão iluminista entre sujeito e objecto, ela lança uma sombra sobre o mercado que está subterraneamente aqui e agora. Benjamin regista o colonialismo, tanto na sua dimensão espacial como nesse estranho objecto colonial que é a igreja mexicana, mas não o toma como objecto de reflexão, recuando perante a ideia de uma presença colonial a espelhar o carácter fetichista dos mercados europeus: quer dizer que Benjamin desperta, ri da piada e regista o colonial sem o pensar. Mas há outra possibilidade implícita na epígrafe de Baudelaire usada no fragmento Embaixada Mexicana: o fracasso da colonização espiritual da Nova Espanha, ou seja, o esmagamento do cristianismo pelo próprio sistema religioso que tentou destruir. Neste sentido, o Códice Florentino de Sahagún é uma obra paradoxal: ciente de que o Igreja Católica não tinha destruído a maquinaria da idolatria asteca, Sahagún documenta a história da cultura destruída pela conquista espanhola, com o objectivo de ajudar os missionários a reconhecer os sinais da idolatria praticada diante dos seus olhos e a destruí-los. Porém, ao assumir a forma da rememoração, o conhecimento das práticas religiosas destruídas pela conquista guarda a sua lembrança, abrindo assim o horizonte da subversão nativa: aquilo que era dado como quebrado e rachado pode emergir à luz do Sol e dificultar a conquista espiritual do México Colonial, isto é, da Nova Espanha. A epígrafe de Baudelaire sugere que o gesto do sacerdote, ao erguer o fetiche e ao apresentá-lo à imagem de Deus de madeira como a sua verdade, a sua representação ou a sua alternativa, mais não é do que uma piada sobre a igreja mexicana: o fetiche mexicano pode ser o verdadeiro Deus. A descrição deste outro sonho - Embaixada Mexicana - não inclui o momento do despertar pelo riso: Benjamin que fazia parte de uma expedição científica ao México confronta o leitor com a celebração de uma missa segundo o rito mais antigo, no decurso da qual um sacerdote ergueu um fetiche mexicano diante da imagem de Deus de madeira, cuja cabeça se moveu três vezes, em sinal de negação. Apesar deste fragmento onírico integrar muitas figuras e tropos das narrativas coloniais, tais como viagem, confrontação, ansiedade colonial e mimetismo, e da direcção da viagem-expedição continuar a ser a mesma, Benjamin inverte os sinais da avaliação do colonialismo: a colonização é reencenada de modo a fazer vir a missão e a mensagem das vítimas e não dos portadores da colonização. Como se sabe, a Rua de Sentido Único inspira-se no romance surrealista Le Paysan de Paris de Louis Aragon: a grande diferença entre ambas as obras é que Benjamin procura descobrir a constelação do despertar, em vez de permanecer no mundo dos sonhos, como sucede com Aragon. Ora, a descoberta da constelação do despertar é claramente ensaiada nos dois fragmentos oníricos do México. Em qualquer um destes fragmentos do México, Benjamin está demasiado desperto, embora no fragmento Embaixada Mexicana o limiar do seu despertar não tenha sido demarcado na forma do riso, como sucede nos Trabalhos no Subsolo. O despertar permite dissolver a mitologia no espaço da história através do trabalho do riso. Deste modo, é possível permanecer ligado a uma experiência da história, a única experiência que seduzia Benjamin, e, ao mesmo tempo, tentar redimi-la. As duas imagens oníricas do México inscrevem-se na intersecção da etnologia, da estética e da psicanálise, intersecção constitutiva do expressionismo - pensemos na pintura de Kirchner! - e do surrealismo. A descoberta freudiana do inconsciente abriu à reflexão um novo domínio de experiência: o inconsciente foi narrativizado, povoado e suprido de dramas pela literatura e pela antropologia, pela arte e pela filosofia, de modo a dar-lhe uma estrutura e a explicá-lo. Dotado de um inconsciente, o eu dividido dos europeus - estou a pensar na teoria do eu dividido de R. D. Laing e no seu conceito de segurança ontológica! - começou a ser explicado por ele, nos termos da ansiedade da história colonial: os terrenos elevados e subterrâneos, as montanhas e as grutas de Benjamin mais não são do que ilustrações coloniais do e para o inconsciente. Com efeito, as imagens do México registam histórias do colonialismo, e inscrevem-se na estrutura temporal da modernidade que narra e narrativiza a história à luz da ideia iluminista do progresso. (Marx cunhou o conceito de desenvolvimento desigual e Lenine pensou-o para explicar o atraso estrutural da Rússia, mas sempre no âmbito da história acumulativa, isto é, da história narrada à luz da ideia de progresso, com a qual Benjamin rompe!) Ora, esta ideia de progresso tal como Kant a tematizou impõe à escala global da história universal a não-contemporaneidade dos tempos geograficamente diversos e desiguais mas cronologicamente simultâneos. O santuário e a igreja do México Antigo situam-se num outro tempo, o passado do mito, que, não sendo (nosso) contemporâneo, não é presente. Porém, a piada sobre a piada da igreja colonial mexicana torna-a (nossa) contemporânea, fazendo dela a piada sobre a Praça do Mercado de Weimar, que, tal como as outras praças comerciais da Europa Iluminista, está submetida no presente ao culto fetichista da mercadoria e do mito do novo, cujas raízes mergulham fundo algures na acumulação primitiva do capital (Marx) e na exploração colonial. Ao não levar em conta a sugestão de Adorno, Benjamin desperta sem, no entanto, entrar no espaço da história que lhe daria acesso à geografia política global adequada para explicar o lugar da cidade de Paris de Baudelaire no âmbito do sistema colonial mundial: o colonialismo permaneceu inconsciente na obra de Benjamin. Mas convém ter em conta que Benjamin viveu em tempos sombrios, os terríveis e negros tempos do advento do nazismo na Europa, segundo a feliz expressão de Hannah Arendt, do qual escapou suicidando-se quando tentou em vão fugir para a América. (É uma ideia perigosa para o futuro do Ocidente esquecer que há mundo fora da Europa!)

Utilizei a expressão inconsciente colonial para referir aquilo que no pensamento de Benjamin permaneceu impensado, apesar de Adorno lhe ter sugerido a necessidade de pensar o colonialismo e o imperialismo, para elucidar a dimensão internacional do capitalismo subjacente à concepção das passagens e das lojas de antiguidades como mercados mundiais para o temporal. Utilizando o título de uma obra de Jürgen Habermas, a filosofia de Benjamin pode ser vista como um "discurso filosófico da modernidade", sobretudo da modernidade cultural, cujas linhas gerais foram traçadas por Susan Buck-Morss a partir do Passagen-Werk. A noção de história esboçada em Sobre o Conceito de História - as célebres teses sobre filosofia da história - é sobejamente conhecida para regressar novamente a ela. Em vez disso, prefiro indicar os Fragmentos sobre Filosofia da História e Política, onde Benjamin define o capitalismo como religião, destacando a obra de Max Weber como sendo pioneira na tarefa de elucidar a estrutura religiosa do capitalismo: «O capitalismo é uma religião de mero culto, sem dogma». (Max Weber definiu a teologia como racionalização do dogma!) Esta definição de capitalismo deve ter chocado os marxistas ortodoxos - ou vulgares! - que acusavam Benjamin de ser menos marxista do que eles. No entanto, ela encontra-se formulada de diversos modos na própria obra de Marx. N. Bukharin foi talvez um dos primeiros marxistas a desmistificar a polémica em torno do espírito do capitalismo, isto é, da psicologia dos empreendedores, lembrando que os trabalhos de W. Sombart, Max Weber e Hermann Levy não acrescentavam nada de novo àquilo que tinha sido dito por Marx nas suas obras, nomeadamente n'O Capital, onde podemos ler estas palavras: «O protestantismo desempenha um papel considerável na génese do capitalismo, mesmo que seja somente pela transformação dos feriados tradicionais em dias úteis (de trabalho)». Conforme nos lembra Bukharin, Marx indicou em diversas ocasiões que «a mentalidade puritana, económica e ao mesmo tempo trabalhadora, obstinada, prosaica do protestantismo, alheio à pompa e ao brilho do catolicismo, era a mentalidade da burguesia no seu período de crescimento. Esta teoria valeu-lhe numerosas zombarias. Ora, agora, os sábios burgueses mais eminentes retomam-na, mas evidentemente sem a atribuir a Marx. Sombart mostra que a acumulação dos traços mais diferentes (sede de ouro, amor ao risco, espírito inventivo, aliados à arte de saber contar, a razão fria e a moderação judiciosa) deu como resultado aquilo que se denomina "mentalidade capitalista". Esta mentalidade, naturalmente, não se formou por si mesma; ela constituiu-se parcialmente com a modificação das relações sociais: ao mesmo tempo que o corpo do capitalismo se fortificava, o seu espírito desenvolvia-se; todos os traços fundamentais da psicologia económica modificavam-se: na época pré-capitalista, a ideia económica fundamental do nobre era a da "conveniência", daquilo que "fica bem para a sua posição" (o dinheiro é feito para ser gasto, escrevia S. Tomás de Aquino); a economia era gerida de maneira irracional, sem contabilidade exacta, a tradição e a rotina dominavam; a vida desenrolava-se num ritmo lento (os dias feriados formavam quase a metade do ano); a iniciativa e a energia faltavam; a mentalidade capitalista, que sucedeu à mentalidade senhorial feudal, está ao contrário fundada sobre a iniciativa, a energia, a rapidez, a renúncia à rotina, a contabilidade racional e a reflexão, a sede de acumulação, etc. A transformação completa das relações de produção foi acompanhada de uma transformação completa da mentalidade». Os Fragmentos de Benjamin previam um diálogo produtivo com os pensamentos de Max Weber e de Ernst Troeltsch, no sentido de elucidar a estrutura religiosa do capitalismo. A reconstituição desse diálogo apenas mencionado por Benjamin está fora dos nossos objectivos neste estudo: o que importa destacar aqui é o aprofundamento da tese de Weber e o seu alargamento a todas as correntes ortodoxas cristãs: «O capitalismo desenvolveu-se no Ocidente de forma parasitária sobre o cristianismo - o que não se demonstra apenas com o exemplo do Calvinismo, mas também com o das outras orientações ortodoxas cristãs. De tal modo que por fim a história do cristianismo se tornou essencialmente a do seu parasita, o capitalismo». Esta concepção do capitalismo como parasita do cristianismo leva Benjamin a aprofundar a tese de Weber, dando razão a Jaime Cortesão quando, na sua teoria da mística dos descobrimentos portugueses, apresenta o franciscanismo e as ordens mendicantes como preparação espiritual e geográfica - já no decorrer do século XIII - para o espírito laico, precisamente o espírito do capitalismo de Weber e Sombart: «O cristianismo na época da Reforma não favoreceu a emergência do capitalismo - transformou-se em capitalismo». (Jaime Cortesão pensa aquilo que permaneceu impensado - o inconsciente colonial - na obra de Benjamin: a colonização portuguesa e europeia do mundo recém-descoberto pelos navegadores!) Ora, quais são os traços que permitem identificar esta transformação do cristianismo em capitalismo? Benjamin destaca três traços da estrutura religiosa do capitalismo reconhecíveis já no presente, embora haja um quarto ou mesmo um quinto traços. Estes traços religiosos do capitalismo, o parasita do cristianismo, estão interligados entre si e, de certo modo, decorrem uns dos outros. Em primeiro lugar, «o capitalismo é uma pura religião de culto, talvez a mais extrema que alguma vez existiu. Nele, tudo tem apenas significado numa relação directa com o culto, não conhece uma dogmática específica, não tem uma teologia. É deste ponto de vista que o utilitarismo adquire a sua tonalidade religiosa». Benjamin define o capitalismo como uma religião de culto, sem dogma e sem teologia, apesar de Marx ter falado da teologia de mercado, o que não cria dificuldades à tese de Benjamin. Em segundo lugar, ao «carácter concreto do culto liga-se outra característica do capitalismo: a duração permanente desse culto. O capitalismo é a celebração de um culto sans rêve et sans merci. Nele não existem "dias de semana", não há um dia que não seja festivo no sentido terrível da ostentação de toda a pompa sagrada, da mais extrema intensidade da veneração». Em terceiro lugar, «o capitalismo é provavelmente o primeiro caso de um culto que não redime, mas deixa um sentimento de culpa. Neste aspecto, este sistema religioso acompanha a queda de um movimento colossal. Uma imensa consciência de culpa, incapaz de redenção, apodera-se deste culto, e nele a culpa, em vez de ser redimida, é universalizada, gravada na consciência, até que o próprio Deus é apanhado nesta rede de culpa, para que, finalmente, ele próprio se interesse pela sua expiação. Não se pode, assim, esperar que esta aconteça no âmbito do próprio culto (capitalista), nem também de uma reforma desta religião, que teria de se agarrar a qualquer coisa de sólido nela, nem tão-pouco na recusa dela. Da essência deste movimento religioso que é o capitalismo faz parte a sua capacidade de ir até ao fim, até à culpabilização final do próprio Deus, alcançando o estado de desespero no mundo a que ainda se aspira. É este o lado historicamente inaudito do capitalismo, o facto da religião já não ser uma reforma do ser, mas a sua aniquilação. É a expansão do desespero até ao ponto em que ele se transforma em estado religioso universal do qual se espera que venha a salvação. É o fim da transcendência de Deus. Mas Ele não está morto (como pensava erradamente Nietzsche!), foi absorvido pelo destino humano. Esta travessia do planeta dos seres humanos pela casa do desespero na solidão absoluta da sua órbita é o ethos que Nietzsche determinou. Este homem é o sobre-homem, o primeiro que a religião capitalista começa a realizar em consciência». Em quarto lugar, o Deus do culto capitalista «tem de ser dissimulado, e só pode ser invocado no zénite da sua culpabilização. O culto é celebrado perante uma divindade não amadurecida, e cada ideia que dela se faça, cada pensamento, ofende o mistério do seu amadurecimento». Estes traços religiosos do capitalismo - a religião do culto permanente, incapaz de redenção, que universaliza a culpa e leva a humanidade de todo o globo terrestre ao estado de desespero infinito, condenando o ser à aniquilação - permite a Benjamin esboçar uma reinterpretação de toda a filosofia dos tempos modernos, sobretudo das concepções de Freud, cujo recalcado é o capital que cobra juros ao inferno do inconsciente, e de Nietzsche, cuja figura do sobre-homem - o vulgo super-homem! - é aquele que chegou sem voltar atrás, sem arrependimento, portanto o homem histórico que fez explodir o céu através da potenciação do que de mais humano há no humano. Ora, este espírito que nos fala a partir das notas de banco ou, como sucede hoje, do cartão de crédito, permite levar mais longe a concepção do capitalismo como aniquilação do ser, digna de preocupação acrescida: a religião capitalista promove uma doença mental própria da época capitalista, bastando referir as situações sem saída (em termos mentais) e a pobreza (em termos materiais), com as primeiras a induzir a culpa e o medo colectivo. Como é evidente, não vou explicitar esta grande narrativa da modernidade, a da cultura do capitalismo que prende e aprisiona todos na rede da culpa universal, tanto os colonizadores como os colonizados, tanto os ricos como os pobres, tanto os jovens como os velhos, tanto os homens como as mulheres, tanto os adultos como as crianças: a minha preocupação incide sobre a natureza do salto apocalíptico. O capitalismo não pode melhorar-se e reformar-se a si mesmo, nem sequer pode ser recusado: a sua palavra de ordem não é a salvação mas a aniquilação do ser. Ora, sabendo que a História «é o choque entre a tradição e a organização política» e que a Política é «a realização da essência do humano não elevada a uma potência superior», só há uma saída para esta situação sem saída - a expansão do desespero - em que o capitalismo nos lança: a sua destruição. A salvação conquista-se destruindo o capitalismo que conseguiu finalmente atingir o seu estado religioso universal - a culpa universal - no nosso tempo indigente. (O neoliberalismo é, na sua essência, religião de mercado, não uma religião da salvação mas uma religião do pecado. E as suas políticas monetaristas devem ser vistas como a consumação fatal e letal do fetichismo do dinheiro, um tema esquecido pelos marxistas. A crítica que os conservadores e os neoliberais fizeram ao marxismo, até mesmo antes do final da II Guerra Mundial, deve ser-lhes devolvida, porque afinal o capitalismo, o parasita do cristianismo, é uma religião que ameaça aniquilar o ser, lançando-nos a todos no desespero e no abismo.)

Bibliografia Colonial:
  1. Sousa, J Francisco Saraiva de (2012). Choque de Dois Mundos: Montezuma II e Cortez.
  2. Sousa, J Francisco Saraiva de (2012). António Fernandes e o Império do Monomotapa.
  3. Sousa, J Francisco Saraiva de (2012). A Religião Maia.
  4. Sousa, J Francisco Saraiva de (2012). Introdução à Religião Banto.
  5. Sousa, J Francisco Saraiva de (2012). Modo de Produção Asiático e Estagnação do Ocidente. (Trata da Religião Inca.)
  6. Sousa, J Francisco Saraiva de (2009). Os Bantos e a Homossexualidade.
  7. Sousa, J Francisco Saraiva de (2010). A Homossexualidade em Moçambique.
  8. Sousa, J Francisco Saraiva de (2010). A Homossexualidade em Angola.
  9. Darch, Colin & Hedges, David (1999). "Não temos a possibilidade de herdar nada de Portugal": As raízes do exclusivismo e vanguardismo político em Moçambique, 1969-1977. (A loucura delirante em pensamento! Há mais artigos aqui, um dos quais cria o mito de um Samora Machel, político e filósofo. Dois "marxistas" que não leram Marx e que responsabilizam os outros pelas suas próprias culpas. De certo modo, seduzidos pelo imperialismo soviético, forjaram um estranho racismo numérico, como se os seus povos ultra-desenvolvidos (sic) depois da descolonização tivessem alcançado o reino da abundância e da liberdade. A sua miopia intelectual é de tal modo devastadora que os impede de comparar o mundo africano antes e depois da descolonização. Lá onde ontem - no passado colonial - o arranque industrial estava conquistado há hoje o esquecimento: o modo de produção regrediu. A libertação prometida foi uma terrível fraude: a ditadura de partido único que conduziu Moçambique e Angola à guerra civil. Destruição e mais destruição: eis as antigas colónias portuguesas em ruínas. Depois de barbaramente expropriada, a herança material portuguesa foi praticamente destruída, restando apenas a herança cultural. A via do desenvolvimento não se conquista com a mistificação de um passado de resistência contra os colonizadores. Marx sabia que o que estava em causa era o capitalismo no seu movimento de globalização, à luz do qual o colonialismo pode ser compreendido. Os portugueses nunca tiveram uma varinha mágica capaz de fazer cair do céu pão para todos: a integração social e cultural dos nativos era uma obra civilizacional que exigia tempo e colaboração para se concretizar. Lendo estes "marxistas" africanos, fico com a impressão de que o sentido da resistência de que falam reside na resistência à civilização. Alguns até já usam a velha ideologia burguesa dos direitos humanos para mendigar pão, como se o Ocidente fosse uma civilização mágica. Ora, o Ocidente desenvolveu-se no e pelo trabalho, numa luta constante contra o pensamento mágico. Os mesmos erros de análise são cometidos aqui: Como se pode defender a construção de uma sociedade comunista ou livre através de propaganda geradora de ódio racial? Que conceito de sociologia é esse que faz dela um discurso terrorista? Como se pode libertar os africanos do estigma racial lembrando-lhes constantemente que não são "brancos"? Que tipo de país se pretende construir com esse conceito envenenado de racismo numérico?)

J Francisco Saraiva de Sousa