PORTO: Catacumbas da Igreja de S. Francisco |
«Onde está o homem que é capaz de subir até ao céu? Só os deuses vivem para sempre com o glorioso Shamash, mas quanto a nós, homens, os nossos dias estão contados, as nossas ocupações são um sopro de vento. (...) Ó Shamash, ouve-me; ouve-me, Shamash; que a minha voz seja ouvida. Aqui na cidade o homem morre de coração oprimido, o homem perece com o desespero no coração. Eu olhei por cima do muro e vejo os corpos que flutuam no rio, e será essa também a minha sorte. Por certo sei que é assim, pois nem o maior dentre os homens pode alcançar os céus, nem o maior pode abarcar a terra. Por isto quero penetrar nesse país: porque não inscrevi o meu nome em tijolos como o meu destino decretou, quero ir ao país onde se corta o cedro. Estabelecerei o meu nome no lugar onde estão escritos os nomes de homens famosos; e onde estiver escrito o nome de qualquer homem, aí eu erguerei um monumento aos deuses. (...) Por Enkidu; eu amava-o ternamente, juntos suportámos toda a espécie de provações; por sua causa vim, porque a sorte comum dos homens o tomou. Por ele chorei de dia e de noite, não queria abandonar o seu corpo para ser enterrado, pensei que o meu amigo voltaria graças ao meu pranto. Desde que se foi, a minha vida nada é; por isso é que viajei até aqui à procura de Utnapishtim, meu pai; porque os homens dizem que ele entrou na assembleia dos deuses e encontrou a vida eterna. Tenho o desejo de o interrogar acerca dos vivos e dos mortos. (...) (Gilgamesh, para onde vai a tua pressa? Nunca encontrarás essa vida (eterna) que procuras. Quando os deuses criaram o homem, atribuíram-lhe a morte; mas a vida, essa ficou para eles.) Por causa do meu irmão eu temo a morte, por causa do meu irmão vagueio pelo deserto. A sua sorte pesa sobre mim. Como posso eu ficar silencioso, como posso descansar? Ele tornou-se pó e também eu morrerei e me deitarei na terra para sempre.» (Gilgamesh)
Graças aos estudos pioneiros de H. Munro Chadwick, sabemos que as chamadas Idades Heróicas, que surgiram em diferentes épocas e em diferentes locais, não são meros fenómenos literários, mas sim fenómenos históricos que permitem articular o conceito de idade heróica em função da estrutura social, da organização política, das concepções religiosas e das formas de expressão artística. Conhecemos relativamente bem quatro idades heróicas, três indo-europeias e a outra da Suméria: a idade heróica grega que floresceu na Grécia continental no final do segundo milénio a.C.; a idade heróica da Índia que se verificou cem anos mais tarde que a grega; a idade heróica teutónica que dominou grande parte do Norte da Europa do século IV ao século VI da nossa era; e a idade heróica da Suméria que alcançou o seu apogeu no primeiro quarto do terceiro milénio a.C. A cada uma destas idades heróicas corresponde, no plano estético, uma forma de narrativa épica, que era recitada ou cantada pelos bardos ligados à corte. Chadwick caracterizou as idades heróicas grega, indiana e teutónica (germânica) como períodos bárbaros que partilham alguns traços comuns. Quanto à organização política, os reinos minúsculos constituem as unidades políticas fundamentais da Idade Heróica: cada reino é governado por um rei ou príncipe que obteve e conserva o poder graças às suas façanhas heróicas. O seu poder apoia-se no comitatus, o grupo de leais nobres armados dispostos a cumprir sem discussão as suas ordens, por mais temerárias e perigosas que sejam as empresas. Alguns reis dispõem de um conselho, que convocam segundo o seu arbítrio e que apenas tem função consultiva e capacidade confirmatória. Os reis destes pequenos reinos mantêm entre si relações constantes, umas amigáveis e íntimas, outras de hostilidade. Eles formam uma espécie de casta aristocrática mundial. Apesar dos heróis serem concebidos como tendo origem divina, não existem vestígios de um culto dos heróis: o culto predominante é o culto de divindades antropomórficas que, em larga medida, eram reconhecidas nos vários reinos, embora cada um deles tivesse as suas divindades locais e os seus próprios cultos. As deidades formam comunidades organizadas que, sob a direcção de um deus poderoso, vivem num lugar escolhido. Além deste culto central, há vestígios de cultos animistas: a Idade Heróica caracteriza-se pela crença de que depois da morte a alma vai viver para um lugar distante da Terra. Considerado como a pátria universal das sombras, este lugar está reservado a todos os habitantes da Terra, independentemente do reino a que pertencem. Na Idade Heróica, surgem as narrativas épicas, de forma poética, que reflectem e iluminam o espírito e a sensibilidade da época: as classes dirigentes, movidas pelo desejo de fama e glória, incitam os bardos e os menestréis ligados à corte a improvisar poemas narrativos (lais) que celebravam as aventuras e os feitos heróicos dos reis. Estes poemas épicos eram recitados nos banquetes e festins da corte, sendo provavelmente acompanhados de harpa ou de lira. As epopeias escritas durante a Idade Heróica - e magnificamente analisadas por Georges Dumézil, pelo menos as indo-europeias, com especial destaque das nórdicas (Irlanda, Escandinávia, Islândia) - apresentam semelhanças de forma e de conteúdo: todos os poemas épicos dizem respeito a indivíduos, a heróis individuais, cujas acções e façanhas são narradas pelo poeta, sem levar em conta o destino ou a glória da comunidade. O poeta introduz motivos imaginários na sua narrativa, tais como os sonhos agoirentos, a presença dos deuses ou a força exagerada dos heróis, e, em termos estilísticos, recorre abundantemente a epítetos convencionais, repetições, fórmulas recorrentes e descrições pormenorizadas, dedicando um grande espaço a falas e, no caso de Homero, a monólogos interiores. Recordo aqui o célebre monólogo interior de Ulisses no canto XX da Odisseia, a obra que inspirou o Ulisses de James Joyce (1922): «- Sê paciente, coração! Tu sofreste ousadias maiores, naquele dia, em que o Ciclope, no seu furor indomável, me devorou os valentes companheiros. E tu suportaste, então, até que a minha astúcia te salvou do seu antro, onde pensava morrer». Ou a parte inicial do longo monólogo interior de Heitor no canto XXII da Ilíada: «Ai de mim, se me refugio nas portas e nas muralhas, Polidamante será o primeiro a lançar-me em rosto o opróbrio, ele que me mandou conduzir os Troianos para a cidade no começo daquela noite funesta em que o divino Aquiles entrou em acção. Eu, porém, não acedi; bem melhor teria sido, por certo». De todas estas epopeias da Idade Heróica aquela que mais marcou o Ocidente foi, sem dúvida, a Ilíada de Homero, a tragédia de Heitor, segundo James Redfield, embora a mais antiga seja Gilgamesh: «O que nos fascina na Ilíada é que ela é um começo. É provável que tenham existido poetas épicos antes de Homero. Mas não os conhecemos e não os conheceremos jamais. As areias do Egipto devolvem-nos a pouco e pouco as comédias de Menandro, autor do século IV. Eventualmente, podem restituir-nos uma tragédia inteira de Eurípides. Jamais nos restituirão uma epopeia anterior à Ilíada. Uma epopeia posterior? Isso pelo menos não é impossível. As nossas bibliotecas enriquecem-se com outras epopeias, estas orientais, tais como a de Gilgamesh, herói mesopotâmico, que, também ela, é uma reflexão sobre a condição humana em relação ao mundo divino. Mas Gilgamesh só nos foi restituído após a descoberta de fragmentos nos tells, colinas da Mesopotâmia (hoje Iraque), no século XIX. Por isso, esta epopeia não pôde ter sobre a nossa cultura a fabulosa influência de A Ilíada, nem a de A Odisseia» (Pierre Vidal-Naquet). Mas mesmo que tivesse sido a primeira epopeia descoberta, Gilgamesh - o herói da Suméria - não poderia rivalizar com o encanto dos poemas homéricos, não só porque lhe falta na sua versão suméria originária a tentativa de integração dos episódios narrados nos diversos contos, desligados uns dos outros, num único poema extenso, tentativa levada a cabo pelos poetas babilónios na sua Epopeia de Gilgamesh, mas também porque os seus heróis são quase destituídos de individualidade e os episódios são narrados num estilo parado e convencional, muito distante do movimento plástico e expressivo dos poemas homéricos. Desconhecendo a métrica e o verso uniforme, o poeta sumério obtinha os seus efeitos rítmicos através de variações em modelos de repetição. No entanto, apesar destas diferenças, os poemas épicos da Suméria, dedicados aos três heróis, Gilgamesh, Enmerkar e Lugalbanda, pensaram a condição humana por oposição à condição divina, no seu traço incontornável que distingue os homens dos deuses, os mortais dos imortais: a mortalidade.
A narrativa de Gilgamesh - a mais bela das obras da literatura babilónica - que vou resumir foi exumada nas colinas do Iraque, no século XIX, e examinada por George Smith: a «obra» que os antigos babilónios chamavam o Ciclo de Gilgamesh compunha-se de doze cantos, cada um com cerca de trezentos versos. Cada canto estava inscrito numa placa separada na biblioteca de Assurbanipal, formando a narrativa do Dilúvio a maior parte da undécima placa. As inscrições foram realizadas no período da antiga Babilónia (séculos XVII e XVIII a.C.), e traduções de partes do poema em hurriano, hitita e indo-europeu foram descobertas em placas datadas da segunda metade do segundo milénio a.C.. A Epopeia de Gilgamesh era, portanto, estudada, traduzida e imitada na antiguidade em todo o Próximo Oriente, cabendo aos poetas babilónios a tarefa de plagiar, modificar e adaptar os breves e episódicos contos sumérios com o propósito de fazerem uma grande epopeia. O poema épico começa por uma breve introdução, aliás uma invenção dos babilónios: Gilgamesh, rei de Uruk (Erech), é um herói inquieto, que oprime os seus súbditos. Cansados da tirania do seu rei, os habitantes de Uruk queixam-se aos deuses, que mandam a deusa Aruru pôr fim a esta situação insuportável. Aruru modela em argila o poderoso Enkidu, destinado a domar o carácter de Gilgamesh e a disciplinar-lhe o espírito. Sendo mais animal do que humano, Enkidu vive entre os animais selvagens da planície. Para o humanizar, uma prostituta de Uruk encarrega-se de despertar e satisfazer o seu instinto sexual. Deste modo, através da experiência sexual, Enkidu perde o seu aspecto físico e a sua força bruta, ao mesmo tempo que adquire desenvolvimento mental e espiritual. A sua inteligência afasta os animais da sua companhia, e a prostituta ensina-lhe as maneiras civilizadas de comer, beber e vestir-se. Depois de ter sido humanizado, Enkidu está pronto para refrear a arrogância de Gilgamesh, que já tinha sido avisado em sonhos da sua vinda. Para lhe provar que ninguém pode ser seu rival em Uruk, Gilgamesh organiza uma orgia nocturna e convida Enkidu a participar. A libertinagem de Gilgamesh revolta-o de tal modo que Enkidu tenta impedi-lo de entrar na casa onde essa orgia devia ter lugar. Gilgamesh e Enkidu lutam um contra o outro, com o segundo a levar vantagem sobre o seu rival. De repente, por alguma razão desconhecida, talvez por causa do súbito despertar de uma atracção homossexual!, a cólera de Gilgamesh desaparece: os dois rivais beijam-se e abraçam-se, e o combate dá lugar a uma longa e leal, constante e fecunda, amizade entre os dois heróis. Porém, a vida sensual e alegre da cidade debilita Enkidu. Preocupado com a saúde do seu amigo, Gilgamesh sugere-lhe uma expedição à longínqua floresta dos cedros, para matar o seu terrível guardião, Huwawa, cortar os cedros e expurgar da terra tudo o que ela tem de mau. Enkidu adverte-o do perigo mortal da aventura, mas Gilgamesh zomba dos seus receios, dizendo-lhe que prefere adquirir fama e glória duradouras a viver uma vida longa mas sem valor. Consulta os anciãos de Uruk e, depois de obter a aprovação de Shamash, o deus do Sol e o patrono dos viajantes, manda forjar as armas adequadas para ele e para o seu amigo. Quando os artífices lhes entregam as armas feitas para mãos de gigantes, eles partem para a expedição e, depois de uma longa e esgotante viagem, alcançam a floresta dos cedros, onde matam Huwawa e cortam as árvores. Mas quando regressam a Uruk, Ishtar, a deusa do amor e da luxúria, apaixona-se por Gilgamesh. Gilgamesh sabe que Ishtar teve numerosos amantes e que é infiel e, por isso, ridiculariza as suas promessas de muito grandes favores, no caso dele satisfazer os seus desejos. Ofendida por ter sido rejeitada, Ishtar procura convencer Anu, o deus do Céu, a enviar o Touro Celeste contra Uruk, a fim de matar Gilgamesh e destruir a cidade. Anu recusa, pelo menos inicialmente, mas quando Ishtar o ameaça de trazer os mortos do Inferno, cede: o Touro Celeste desce à terra, devasta a cidade de Uruk e massacra centenas de guerreiros. Gilgamesh e Enkidu conjugam furiosamente os seus esforços para lutar contra o monstro. Depois de terem conseguido matar o Touro Celeste, os dois heróis atingem o cume da glória na cidade dos homens: a cidade de Uruk ressoa com o canto de exaltação dos seus feitos heróicos. Mas os deuses põem subitamente fim à sua felicidade, ao condenar Enkidu a morrer num prazo curto, pelo facto de ter participado na morte de Huwawa e do Touro Celeste. Ao cabo de uma doença de doze dias, sob o olhar atento e terno de Gilgamesh, esmagado pelo sentimento da sua impotência e pelo desgosto, Enkidu solta o seu último suspiro e morre. Um sentimento duplamente amargo apodera-se do espírito de Gilgamesh: Enkidu morreu e ele próprio terá mais cedo ou mais tarde o mesmo destino. A fama e a glória que tinha conquistado através dos seus feitos heróicos constituíam uma fraca consolação perante a sorte comum dos homens: Gilgamesh deseja alcançar a imortalidade, a imortalidade do corpo e, por isso, parte à procura do segredo da vida eterna. No passado, houve um homem que conseguiu alcançar a imortalidade: Utnapishtim, o sábio e piedoso monarca da antiga Shuruppak, uma das cinco cidades capitais de reinos que existiam antes do Dilúvio. Sabendo disso, Gilgamesh decide dirigir-se ao longínquo lugar onde vive agora Utnapishtim, na expectativa de que ele lhe revele o seu precioso segredo. Percorre um longo caminho, cheio de percalços e de encontros, que descreve a Utnapishtim nestes termos: «Foi para ver Utnapishtim, a quem chamamos o Longínquo, que eu fiz esta viagem. Por isso vagueio pelo mundo, atravessei muitas e difíceis cordilheiras, atravessei os mares, esgotei-me a viajar; doem-me as articulações e perdi a familiaridade com o suave sono. As minhas roupas estavam gastas antes de chegar à casa de Siduri. Matei o urso e a hiena, o leão e a pantera, o tigre, o veado e a cabra montês, toda a espécie de caça selvagem e os pequenos bichos das pastagens. Comi a sua carne e vesti as suas peles e foi assim que cheguei à porta da jovem mulher, a fazedora do vinho, que me trancou a sua porta de breu e de betume. Mas por ela tive notícias da viagem; e assim cheguei até Urshanabi, o barqueiro, e com ele atravessei as águas da morte. Oh, pai Utnapishtim, tu que entraste na assembleia dos deuses, desejo interrogar-te acerca dos vivos e dos mortos; como encontrarei a vida que procuro?» Mas a resposta de Utnapishtim decepcionou Gilgamesh: «Nada permanece. Será que construímos uma casa para ficar para sempre, será que selamos um contrato para que valha em todos os tempos? Só a crisálida da libélula é que solta a sua larva e vê o sol na sua glória. Desde os dias antigos que nada permanece. Que semelhantes são os mortos os que dormem - são como uma morte pintada! Que há entre o senhor e o servo quando ambos chegaram ao seu fim? Os Anunnaki, os juízes, vêm juntos, e com Mammetun, a mãe dos destinos, decretam os destinos dos homens. A vida e a morte distribuem, mas o dia da morte não revelam». O rei de Shuruppak conta-lhe a história do Dilúvio que os deuses outrora enviaram à Terra para exterminar a humanidade e todas as criaturas vivas: o guerreiro Enlil, despertado pelo clamor, disse aos deuses reunidos em conselho: «O tumulto da humanidade é intolerável e já não é possível dormir com esta confusão». Para não perecer como os outros homens, ele abrigou-se no grande navio que Ea, o deus da sabedoria, o tinha aconselhado a construir: «Destrói a tua casa, digo-te eu, e constrói um barco». A vida eterna fora-lhes oferecida - a ele e à sua mulher - pelos deuses depois do dilúvio: «Quanto a ti, Gilgamesh, quem reunirá os deuses para tua salvação, para que possas encontrar essa vida que procuras?» Não tendo passado na prova de resistência ao sono durante seis dias e sete noites, Gilgamesh decide regressar a Uruk com as mãos vazias. Mas a mulher de Utnapishtim convence-o a indicar a Gilgamesh onde poderá encontrar a planta da eterna juventude, que cresce no fundo do mar: Gilgamesh mergulha até ao fundo das águas do mar e colhe a planta. Entretanto, na viagem de regresso a Uruk, enquanto se banhava numa nascente, uma serpente rouba-lhe a planta, e Gilgamesh, vencido pelo cansaço e pela desilusão, volta para Uruk, onde a morte o irá abraçar. O destino que Enlil lhe tinha decretado cumpriu-se: «Ó Gilgamesh, era este o sentido do teu sonho. Foi-te dada a realeza, tal era o teu destino, a vida eterna não era o teu destino». E a narrativa termina com este elogio: «Gilgamesh, o filho de Ninsun, repousa no túmulo. No lugar das oferendas ele pesou a oferenda do pão, no lugar da libação ele derramou o vinho. Naqueles dias partiu o senhor Gilgamesh, o filho de Ninsun, o rei, o incomparável, sem igual entre os homens, que não desprezou Enlil, seu mestre. Ó Gilgamesh, senhor de Kullab, grande é a tua glória!»
O meu interesse pela Epopeia de Gilgamesh deve-se não só à busca fracassada da vida eterna empreendida pelo herói depois da morte de Enkidu e ao sentido da narrativa do Dilúvio que exterminou a humanidade decadente, mas sobretudo à minha busca da idade heróica do Porto. Estou perfeitamente convencido que a Cidade do Porto teve a sua idade heróica antes de ter dado nome a Portugal. Há uma narrativa da Odisseia que permite vislumbrar os aspectos fundamentais dessa idade heróica do Porto, ligando-a à navegação. E, num voo de vertigem mágica, até é possível associar os estranhos navegadores da Odisseia ao Porto. Dir-me-ão que se trata de uma história imaginária da cidade do Porto, mas o vosso argumento é demasiado medíocre para merecer a minha atenção. Eu sou como os poetas anónimos das grandes epopeias: gosto de introduzir motivos imaginários para evidenciar os motivos históricos, de modo a mostrar que o Porto tem uma história própria anterior à formação de Portugal. Para proteger o Porto da má fama que Portugal tem no mundo inteiro, torna-se necessário regressar às suas origens: a longa viagem de Gilgamesh à procura de Utnapishtim converte-se aqui numa viagem em busca das nossas origens remotas que justificam o nosso sentimento profundo de sermos estranhos em relação aos restantes "portugueses". Samuel Noah Kramer utilizou um caso histórico bem conhecido para tentar resolver o chamado problema da Suméria, a chegada dos Sumérios à Mesopotâmia: a Idade Heróica dos Germanos coincide com um período de migrações, tendo sido precedida pelo contacto multi-secular dos povos germânicos primitivos com o Império Romano em vias de desintegração. Os germanos sofreram durante vários séculos a sua influência cultural como reféns nos seus tribunais e mercenários nos seus exércitos. Durante os séculos V e VI da nossa era, os germanos aproveitaram o enfraquecimento do Império Romano para ocupar a maior parte do seu território: o apogeu da sua Idade Heróica foi alcançado durante estes dois séculos. Ora, os factores utilizados por Kramer para determinar a origem e o desenvolvimento da Idade Heróica da Suméria - migrações e contacto prolongado com uma civilização superior em via de desintegração - podem ser usados para determinar a origem e o desenvolvimento da Idade Heróica do Porto, até porque o Porto Romano se desintegrou pela acção das invasões bárbaras que sofreu ao longo de séculos. Ao apelar à autoridade de Kramer, pretendo reformular as perspectivas históricas de António de Sousa Machado e de Mendes Correia sobre as origens da cidade do Porto: os ilustres historiadores portuenses não souberam dar eco à concepção portuense do Porto como Cidade-Estado. Esta concepção e o sentimento de estranheza dos restantes "portugueses" são vestígios da Idade Heróica do Porto. Sabemos que a bela Foz do Rio Douro atraiu ao longo de séculos diversos povos invasores, em especial invasores nórdicos. A escassez de fontes escritas não permite reconstruir a história do Porto durante este período das invasões, pelo menos de modo detalhado, sobretudo quando são lidas à luz da formação de Portugal e das Cruzadas: o cristianismo - o Porto-Diocese! - não pode eclipsar a Idade Heróica do Porto, cujos heróis foram esmagados pelo peso da falsificação cristã. Terá tido o Porto a sua grande epopeia? Será que não tivemos um Gilgamesh portuense, o herói inquieto que parte em busca da vida eterna? Será que não tivemos um Ulisses portuense que domina os adversários com a sua astúcia? Será que não tivemos um Aquiles portuense capaz de matar o adversário com a sua espada? Será que não tivemos um Heitor portuense cuja vida tenha sido uma tragédia? E os nossos heróis nórdicos? Manuel Pereira de Novais, ilustre historiador portuense do século XVII, afirmou que o Porto foi fundado por um Príncipe chamado Calais, filho de Boreas, rei da Trácia, no ano 2740 da criação do mundo, 32 anos antes da destruição de Tróia e 2216 anos antes do nascimento de Cristo, e António Cerqueira Pinto, ilustre historiador portuense do século XVIII, preferiu dar esse mérito a Noé, cujas galés entraram no Rio Douro. Fantasia histórica? Talvez, mas sem fantasia não há cidade! Creio que o Porto teve a sua grande epopeia, um conjunto complexo de sagas heróicas que foram dispersas para não incentivar o espírito de autonomia da cidade do Porto e dos seus habitantes. Mas o Porto não só teve uma epopeia, como também é, ele próprio, uma epopeia. Dado que Porto significa "abertura ao mundo", devemos - enquanto portuenses - partir à descoberta dessa epopeia lá onde nasceram os povos que fizeram o Porto - celtas, romanos, suevos e visigodos - e dos quais somos descendentes. (O Porto não tem sangue sarraceno!) Com este movimento para trás, em busca do nosso passado originário, estamos a dar dois passos para a frente. Actualizando o passado conquistamos o futuro: o Porto foi, é e será para sempre uma Cidade-Estado, cuja grande epopeia deve ser arrancada ao esquecimento nacional. Chegou a hora de adormecer os santos e de acordar os heróis!
J Francisco Saraiva de Sousa