domingo, 6 de janeiro de 2008

Graffitis e Latrinalia

Realizámos em Lisboa, no Porto e em Coimbra, um estudo de campo de alguns Terminais Rodoviários, mais conhecidos como «pontos de encontro gay». As cerimónias de corte homossexual ou, mais precisamente, as abordagens sexuais que se realizam nos Terminais Rodoviários fechados obedecem aos mesmos padrões das cerimónias que se efectuam nas Estações Ferroviárias, nas Estações do Metro, nas Estações de Serviços, nos Parques ou mesmo nos Aeroportos. A atenção dos seus frequentadores está fundamentalmente concentrada nas movimentações que ocorrem nos sanitários públicos e, em menor grau, nas salas de espera e nos serviços de bar ou de café das imediações.
A maior parte dos encontros sexuais observados são breves e casuais e pode ocorrer no interior dos sanitários públicos, onde também pode ocorrer a actividade sexual. Além da troca de olhares prolongados e das perseguições, a aproximação e a conversa casual são comportamentos de corte muito frequentes nesses lugares públicos. Durante as viagens de autocarro, podem formar-se parelhas homossexuais, tendo em vista uma relação sem obrigações nem compromissos. Nas Paragens de Autocarros ocorrem frequentemente rituais de corte homossexuais. Também podem ocorrer dentro dos autocarros, começando pela troca de olhares e de outros sinais de disponibilidade sexual. Se houver acordo sexual implícito, os dois parceiros sexuais potenciais podem sair na próxima paragem, dando início, já na rua, à dança ritual. Alguns homossexuais aproveitam o aperto dos autocarros para se roçarem contra os «homens bons» ou mesmo para passar a mão pelas nádegas ou pela região genital desses mesmos homens, como se se tratasse de um movimento involuntário, devido às circunstâncias locais.
Como os sanitários públicos são frequentemente utilizados pelos homens homossexuais e bissexuais para procurar parceiros sexuais ocasionais, tendo em vista a concretização de um encontro sexual casual, além de observarmos esses comportamentos in situ numa perspectiva ecológica social e etológica, resolvemos registar por escrito e fotograficamente as inscrições que eles gravam nas paredes e nas portas dos sanitários, com o objectivo de submeter posteriormente esse material a análise estatística.
Com efeito, as paredes e portas de muitos dos sanitários, sobretudo das retretes, estão repletas de «graffiti», cujos mensagens não se distanciam muito daquelas que foram recuperadas nas ruínas de Pompeia (H.H. Tanzer, 1939).
Embora a recolha e o registo fotográfico desses graffiti tenham sido realizadas com o objectivo de submeter esse material à análise de conteúdo, tal como foi aplicada por Arnold Arluke et al. (1987), John A. Bates & Martin Michael (1980), M.E. Burner & J.P. Kelso (1980) e Lynn Bartholome & Philip Snyder (2004), iremos limitar a nossa amostra a 35 graffitis recolhidos num Terminal Rodoviário de Lisboa.
Das três categorias de graffiti — «tourist graffiti», «inner-city graffiti» que compreende a «language of ghetto youth» e os «gang graffiti», e os «latrinalia» ou «bathroom graffiti», estudados por Alan Dundes (1996), investigámos apenas a última categoria, aliás registados em fotografias.
O primeiro estudo dos «bathroom graffiti» foi realizado por Allen W. Read (1977) em 1935, que, usando o termo «folk epigraphy», procurou elaborar fundamentalmente um glossário das palavras e frases «incrivelmente obscenas» recolhidas nos «restrooms» dos USA e do Canadá. Em 1953, Alfred Kinsey et al. (1970) descobriram que os graffitis contrastam significativamente em função do género do sanitário. Os homens produzem mais graffitis do que as mulheres e um número bastante grande desses graffitis masculinos (86%) é de natureza sexual, ao contrário dos graffitis femininos (cerca de 25%). A sua intenção óbvia é fornecer estímulo erótico aos inscritores e às pessoas que possam observá-los posteriormente.
Dundes (1966) observou cinco categorias diferentes de inscrições sanitárias — advertências e solicitações (a), pedidos ou comandos (b), direcções (c), comentários (d) e introspecção pessoal (e), concluindo que as inscrições são muito pouco frequentes nos sanitários das mulheres, e, quando aparecem, raramente fazem referência a tópicos sexuais e eróticos. Kinsey constatou que havia três assuntos principais nessas inscrições sanitárias: genitália (feminina ou masculina), actividade sexual, oral ou anal (heterossexual ou homossexual) e vocabulário vernáculo que, por associação, é eroticamente importante para a maioria dos homens. Dos graffitis masculinos, 75% eram homossexuais e, dos graffitis femininos, apenas 11% eram lésbicos.
Todos os graffitis recolhidos num Terminal Rodoviário de Lisboa são sexuais, provavelmente feitos por homens homossexuais, com excepção de apenas um que pode ser irónico. As nossas tentativas de recolher graffitis femininos fracassaram, pela simples razão de não termos observado nenhum, mesmo contando com a ajuda das mulheres heterossexuais e das lésbicas. Com esta escassez de inscrições femininas, não podemos estabelecer diferenças de género, a menos que se interprete essa ausência como uma diferença de género: as mulheres portuguesas são pouco dadas a fazer inscrições sanitárias e, se as fazem, as empregadas de limpeza apressam-se a apagá-las, o que já se verifica até mesmo nos sanitários masculinos localizados em lugares comerciais ou mesmo em algumas Estações de Serviço.
Tal como Kinsey, pensamos que os graffitis visam estabelecer comunicação com outros utentes dos sanitários e esta suspeita é reforçada pelo facto do Terminal estudado ser considerado um «lugar de engate homossexual», envolvendo o serviço de prostitutos masculinos. Este facto mostra claramente que os graffitis feitos nas paredes ou portas do sanitário masculino do Terminal são fundamentalmente interactivos.
Assim, podemos distinguir duas grandes categorias: graffitis heterossexuais (2,86%), que aparentam ser meros «insultos», e graffitis homossexuais (97,14%), mais ligados às actividades sexuais, oral ou anal, livres ou «profissionais», meras declarações de preferências sexuais ou mesmo comentários-respostas às mensagens de outros graffitis.
Isolámos cinco categorias de graffitis: actividades sexuais (1), respostas (2), homossexualidade (3), heterossexualidade (4), e prostituição masculina (5), das quais as duas primeiras categorias compreendem subcategorias. As percentagens são as seguintes: A categoria das actividades sexuais (54,28%) compreende quatro subcategorias: coito anal (25,71%), sexo oral (5,71%), ambos os actos referidos são desejados (8,57%) e actividade não especificada (14,29). A categoria das respostas deixadas por outros utentes em reacção aos anúncios inscritos (25,72%) inclui três subcategorias: aceitação (11,43%), Ironia ou insulto (11,43%) e a mesma preferência sexual (2,86%). As três restantes categorias são a homossexualidade (8,57%), a heterossexualidade (2,88%) e a prostituição (8,57%).
Estes resultados sugerem que naqueles sanitários públicos considerados como «zonas de frequência gay» os homens homossexuais inscrevem mais anúncios do que os homens heterossexuais e este facto torna-se ainda mais evidente nas Estações de Serviços, nas quais os camionistas e os homens homossexuais chegam a deixar inscritos os números dos telemóveis para marcar os encontros sexuais. Também neste aspecto comportamental os homens gay revelam ser mais promíscuos que os homens heterossexuais, fazendo sexo com múltiplos parceiros sexuais estranhos, por vezes de forma consecutiva, sem usar o preservativo nestes encontros casuais, que frequentemente se convertem em sessões de sexo grupal (orgias sexuais).
Porém, nesta amostra, as inscrições heterossexuais são mais agressivas do que as inscrições gay. Os nossos resultados são muito similares àqueles obtidos por B. Witter et al. (2005), Kurzban & Weeden (2005), Koziel & Pawlowski (2003) e Pawlowski & Koziel (2002), quando estudaram os anúncios íntimos publicados em jornais ou revistas, dos quais também realizámos um estudo estatístico. Os homens heterossexuais eram mais propensos a garantir e a procurar sinceridade numa relação, bem como a preferir parceiras atractivas e belas, enquanto os homens homossexuais eram mais propensos a incluir referências sexuais relativas a si próprios, nomeadamente as dimensões dos seus pénis, ou mesmo em exigir determinadas características sexuais dos seus potenciais parceiros sexuais.
Um estudo brasileiro da autoria de R.P. Teixeira & E. Otta (1998) analisou as diferenças de género em graffitis de banheiro, focando os aspectos da sexualidade humana, colectados nos banheiros de "cursinhos" pré-vestibulares e de uma universidade, localizados em São Paulo, SP, Brasil. Embora não tenham encontrado diferenças de género significativas em termos de frequência de graffitis sexuais, a utilização do Modelo de Regressão Logística mostrou quais as categorias de graffitis sexuais que diferenciavam os homens das mulheres. Nos "cursinhos", as categorias diferenciadoras foram analidade e xigamento, temas preferidos pelos homens. Na universidade, as categorias diferenciadoras foram xingamento e elogio sexual: os homens produziram maior número de xingamentos, e as mulheres realizaram mais elogios. O xingamento foi, portanto, uma categoria diferenciadora de géneros nos dois ambientes. Isto significa que os homens mostraram ser mais agressivos que as mulheres ao produzirem graffitis sexuais. Este facto sugere haver alguma relação entre agressividade e sexualidade, pelo menos entre os homens. Este estudo brasileiro é muito importante porque compreende uma amostra de graffitis feitos por mulheres, possibilitando a detecção de diferenças de género na produção de graffitis, as quais possibilitam uma melhor compreensão das duas sexualidades de género.
J Francisco Saraiva de Sousa

13 comentários:

E. A. disse...

Muito interessante.
Desconhecia que as Paragens de Autocarro eram lugares de amor... a sexualidade masculina é pragmática. :)

O estudo dos grafitti de Pompeia está disponível on-line?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá A.P.

Não. É um estudo muito antigo e excepcional. Vou ver se tiro a indicação de um livro que apresenta uma amostra. (Dou-lhe por email.) Giro: muito semelhantes aos que recolhi. Nada mudou em termos de "sedução" e imaginário erótico. Os palavrões são "doces". :))

E. A. disse...

Sim, n me surpreende que sejam parecidos: nas comédias de Aristófanes, as mais sexuais como a "Lisístrata", por exemplo, não se coibem de chamar as coisas pelos nomes e até nós, modernos, ficamos envergonhados. :))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A poesia e a literatura clássicas são inultrapassáveis. Pura arte! Ando a reler Petrónio. Alfonso Cuatrecasas tem um estudo curioso sobre o "erotismo no império romano" (editora rosa dos tempos), onde pode descobrir algums graffitis de Pompeia.
Dois exemplos: "Chupa-me a piroca, chupa-me a piroca que já estou acabando" ou "Aqui fui comida". :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tenho um estudo americano que trata dos graffitis filosóficos e existenciais recolhidos no WC de um bar. Qualquer dia divulgo os resultados. Muito interessante as pessoas entregarem-se a meditações filosóficas e existenciais enquanto (supostamente) realizam as suas necessidades mais animais. :)

E. A. disse...

Engraçado :))) "piroca"... mas sabe que as palavras utilizadas, pelo menos as gregas nas comédias, era sempre "*oder" e "*aralho"... n havias eufemismos do género "piroca" ou "pilinha", etc.

Quanto aos grafitti das casas-de-banho... as frases "existenciais" são sempre frases feitas, penso que seja mais uma transmissão de "conhecimentos", dado ser um local público... Mas claro é a minha opinião, desconheço o alcance do estudo que refere. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, também existem esses termos que no latim até soam bem. "Piroca" é termo mais usado no Brasil: é uma tradução brasileira. O nosso mais fiel ao original é "...alho" ou "pau". "Verpa", "mentula", "vasculum", "membrum", "lumbus" ou "penis" são termos usados pelos romanos. :)

Manuel Rocha disse...

Francisco:

O que se estuda nos dias que correm nunca deixa de me surpreender !!

Por isso o texto resulta num sério-irónico pouco vulgar.

Ainda assim nada que se compare à riqueza dos seus diálogos com a Aveugle...::))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel Rocha
Acho este tema muito interessante pelo facto de possibilitar estudar o imaginário erótico. Os graffiti de Pompeia deram início a este tipo de estudos. Constituem uma fonte viva, ou melhor, uma lembrança daquelas pessoas que foram felizes em Pompeia e o seu amor continua a ser o nosso, dada a nossa condição de mortais. Até os nomes e datas ficaram gravados. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E procurei eliminar os dados epidemiológicos, para não roubar esse "encanto", embora sejam preocupantes.

E. A. disse...

Francisco, n nos roube a Epifania com a epidemia. :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok. Não vou roubar nada à epifania. Petrónio tem um texto muito giro. Vou ver se compro tradução portuguesa para o partilhar. :))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem-vinda amiga Helena
Divulgue as Jornadas desse grande Homem do Norte. :))