Hoje (29 de Setembro de 2008) "Prós e Contras" regressou à Casa do Artista, com um novo visual, para debater a "nova lei do divórcio", que está a produzir uma "fractura ideológica", mais aparente do que real, na sociedade portuguesa. O primeiro diploma desta nova lei tinha sido alvo do veto político do Presidente da República e o presente diploma procura salvaguardar algumas das reservas apresentadas. O debate colocou frente-a-frente os que concordam e os que discordam com a nova lei do divórcio, com o objectivo de esclarecer o que muda (ou vai mudar) com a nova lei. Porém, na apresentação do tema, insinua-se ardilosa e/ou ironicamente que o que muda (ou vai mudar) é simplesmente o "fim da culpa", portanto, a possibilidade de um casal ter acesso garantido e automático a um "divórcio sem culpa". Na prática, com a eliminação da noção jurídica de culpa, um dos membros do casal pode romper a qualquer momento a relação e o compromisso assumidos livremente com o seu cônjuge quando decidiram casar-se. Daqui resulta a eliminação automática dos divórcios litigiosos: as pessoas são livres para casarem e livres para se separarem. Aparentemente, este fenómeno deveria facilitar a vida dos juízes, embora os outros assuntos fiquem pendentes e entregues à morosidade dos tribunais. Numa conferência parlamentar, decorrida na Assembleia da República (26 de Setembro), o Primeiro-Ministro, José Sócrates, classificou a nova lei do divórcio como uma lei "progressista", sem "experimentalismos sociais", sublinhando, como aspectos essenciais do diploma, a eliminação da "noção de culpa" como fundamento dos "divórcios litigiosos" ou "separações sem acordo", e a substituição da expressão "poder paternal" por "responsabilidades parentais", bem como o estabelecimento de "crime de desobediência" para o incumprimento de responsabilidades por parte de um dos elementos do casal. Para o Primeiro-Ministro, a nova lei do divórcio é “uma lei que se insere no conjunto de leis progressistas que o PS tem apresentado para a igualdade de género e a modernidade social". Aqui "igualdade de género" significa "igualdade" de oportunidades; caso contrário, estaríamos diante de uma noção queer de género que nega o que não pode ser negado: a diferença sexual.
Assisti a este debate sem preconceitos favoráveis em relação a nenhuma das partes, até porque não aprecio muito a expressão "divórcio sem culpa". Por isso, escutei atentamente os prós e os contras e, apesar de lamentar a falta de clarificação conceptual, cheguei ao fim a aceitar a nova lei do divórcio, com muitas e muitas reservas. Quando o Presidente da República vetou o primeiro diploma, algumas pessoas recorreram aos meios de comunicação social para dizerem que existia uma fractura ideológica entre o Presidente Cavaco Silva e a Assembleia da República no que diz respeito à concepção de família: o Presidente defendia supostamente a chamada família tradicional e os defensores do diploma uma concepção mais de acordo com o espírito dos chamados tempos modernos que, como sabemos, são dominados pela fuga às responsabilidades e aos deveres e por formas plurais de promiscuidade sexual. Se a noção de pluralismos familiares avançada por um dos presentes no palco a favor da nova lei abrange estas formas de irresponsabilidade sexual e familiar, bem como o hedonismo materialista que lhes é subjacente, então precisamos estar preocupados com a igualdade sexual, a regulação da sexualidade e o futuro da família, porque estes padrões normativos estão presentes em todos os tipos de sociedades estudados por George P. Murdock ou por Lévi-Strauss. Como "grupo social que se caracteriza pela residência em comum, pela cooperação económica e pela reprodução", a família constitui uma "instituição" universal e fundamental de todas as sociedades estudadas interculturalmente e ao longo do tempo histórico. A família não é, pois, uma mera construção social, mas uma realidade biológica primordial que se manifesta desde logo nos vínculos que se estabelecem entre a mãe e o seus filhos, de resto o vínculo primordial. Qualquer medida ou fenómeno social que procure desestabilizar a família neste sentido biológico é má e deve ser combatida, não só porque ameaça a estabilidade social, mas também porque coloca em perigo a sua função educativa, onde se incluem os cuidados parentais, e a sua função psico-afectiva, aquela que o PS identifica com o espaço dos afectos. A família é, portanto, uma realidade multidimensional e, como tal, não deve ser reduzida a uma das suas dimensões em detrimento das outras. A lei parece não pôr em questão este carácter multifacetado da família que diz proteger melhor do que as anteriores leis, nomeadamente quando realça a noção de responsabilidades parentais; o seu único fim é eliminar os divórcios litigiosos, facilitando o rompimento da unidade conjugal, o egoísmo do casal, sem deixar os outros aspectos desregulamentados. Conforme disse o deputado do PS, a nova lei pretende iluminar e ajudar a criar uma nova mentalidade: o Direito pode e deve antecipar novas atitudes das pessoas face a determinados assuntos, contrariando algumas práticas frequentes mas pouco saudáveis. A fractura diz mais respeito ao suplemento moral das ideologias jurídicas em disputa: o conceito de família dos que são contra é patrimonial, enquanto o dos que são a favor é mais afectivo. Grosso modo, a primeira perspectiva corresponde à família tradicional, na qual o casal é apenas uma parte do sistema familiar, e a segunda, ao casal, casado ou não, dos nossos dias. Ambos esquecem que até mesmo as relações puras de Giddens, baseadas na intimidade, estão sujeitas a negociações permanentes e desgastantes entre os membros dos casais. Cabe ao Estado garantir e promover a estabilidade das relações familiares, de modo a tornar (idealmente) o divórcio uma prática cada vez mais remota. Facilitar o divórcio sem adoptar outras medidas de protecção da família é sempre uma medida imprevisível. O terrorismo íntimo, a forma mais nefasta de violência doméstica, está presente em qualquer tipo de relação: os pares de namorados novos tendem a ter relações terroristas, pela simples razão de um dos parceiros ser traidor, isto é, não manter o compromisso de fidelidade conjugal. O telemóvel e a Internet facilitam estas infidelidades on-line e/ou off-line que devoram relações a um ritmo alucinante. Anthony Giddens dedicou alguns estudos à família na era da globalização e as transformações que descreve podem ser agrupadas sob uma única designação: homossexualização da vida familiar e social. Aquilo que Giddens descreve enfaticamente como a família tradicional é uma espécie de papão sociológico, porque, na era da globalização, ainda é esta a família que ajuda a manter a sociedade e a proteger os seus membros de um destino miserável. A noção de que o casal, casado ou não, se tornou o centro da existência da família deriva da prática gay que, sem protecção legal e num clima de perseguição social, consiste em formar "uniões" baseadas na ligação emocional e na intimidade. No universo gay, a ligação emocional começa por ser o meio de estabelecer a relação e, depois, é a principal razão para ela ser mantida. Se "acasalamento" e "desacasalamento" fornecem uma descrição mais precisa da vida pessoal do que "casamento e família", como afirma Giddens, então este padrão de ligações sucessivas, a monogamia serial, já era uma prática gay muito antes de começar a ser adoptada pelos «casais» heterossexuais: os laços de matrimónio gay sempre foram baseados no amor e na atracção sexual e não no casamento visto como um "estado da natureza", isto é, um destino. Segundo Giddens, "para nós (homens da era da globalização), a pergunta mais importante já não é: «Você é casado?». Agora, é melhor perguntar: «Tem uma relação?»". A noção de relação substitui a noção de casamento: aquilo que sempre foi uma prática gay está a converter-se numa prática de ligação heterossexual, talvez devido à libertação das mulheres que, na realidade, se tornou sinónimo de mudar facilmente de parceiro sexual, portanto, de libertinagem sexual. Porém, muitos homens gay não estão satisfeitos com o seu tipo de relação e lutam pelo reconhecimento legal dos casamentos homossexuais, alegando razões que se prendem ao aspecto económico e patrimonial da chamada família tradicional, incluindo o direito à adopção. Isto significa que a relação encarada unicamente do ponto de vista emocional, como ligação afectiva assente no amor, na intimidade e no compromisso constantemente renegociado, não satisfaz a própria afectividade. Se a lei não zelar de algum modo pela estabilidade da relação, esta tende a converter-se em ligação sexual sem compromissos: a relação dura o tempo que durar a atracção sexual. O padrão de acasalamento e desacasalamento revela assim o seu verdadeiro rosto: promiscuidade sexual que não satisfaz emocionalmente ninguém, dado ser um padrão destrutivo. As relações sexuais entregues à animalidade do homem adoptam o padrão do consumismo voraz de sexo diversificado e, num tal contexto degradante e de decadência moral, não há lugar para os filhos que, devido a razões económicas, começam a ser vistos como descartáveis, isto é, não desejáveis: as responsabilidades parentais tendem a evaporar-se. Apesar de serem fenómenos muito modernos, as relações puras, que já não são desejadas por muitos casais gay, os seus modelos originários, não são social e culturalmente desejáveis, porque, nas épocas em que a compulsão sexual se tornou um objectivo em si mesmo, a cultura degradou-se e acabou por perecer. Em vez de serem um sinal de modernidade, constituem um sinal de decadência, irresponsavelmente abraçado por uma certa esquerda sem ideias e sem projectos. Numa sociedade metabolicamente reduzida que cultiva o sexo pelo sexo, o mundo não se renova: a mortalidade dos "eternos jovens" é adiada e a natalidade torna-se um obstáculo à reprodução cíclica do desejo sexual permanente. J Francisco Saraiva de Sousa