quarta-feira, 21 de abril de 2010

Thomas Nagel e Josef Stalin

Com este post, dou início à destruição de um certo estilo anglo-saxónico de fazer filosofia. Começo pelo confronto entre Thomas Nagel e Josef Stalin, sabendo que o último é herdeiro de uma grande tradição filosófica, ao passo que o primeiro é um desenraizado - um Robinson Crusoé perdido num paraíso fiscal - que coloca questões filosóficas especulativas - isto é, bolsistas - desvinculadas das teorias filosóficas e da sua tradição. Thomas Nagel é herdeiro de si mesmo: a sua pretensa filosofia é uma robinsonada neoliberal, que muda de quadro de referência sempre que passa de uma temática filosófica para outra. Nagel sobrevoa um arquipélago de ilhas dispersas, sem ser capaz de as ligar entre si. A pseudo-filosofia de Nagel é masturbação linguística: o universo dos outros só existe na sua actividade vertiginosa como fantasia erótica, até porque Nagel não procura respostas, preferindo fazer ensaios argumentativos com a sua própria mão, que repete a um ritmo alucinado, frenético e compulsivo. Nagel é um viciado que, aprisionado no seu pequeno universo fetichista, qual ermita perdido no deserto, se alienou completamente do mundo e da cidade dos homens.
Nagel e Stalin partilham a opinião de que a grande questão de toda a filosofia, em especial da filosofia moderna, é «a da relação do pensamento com o ser» (Engels). Os filósofos dividem-se em dois grandes campos de batalha filosófica: uns afirmam o carácter primordial do espírito em relação à natureza, formando o campo do idealismo; outros consideram a natureza como o elemento primordial, pertencendo ao campo do materialismo ou daquilo a que Nagel chama realismo. Na questão fundamental da relação entre o pensamento e a realidade, Stalin e Nagel optam pelo partido do materialismo: «o mundo é independente das nossas mentes» (Nagel), ou, nas palavras de Lenine, «o ser real objectivo - a matéria - é independente da consciência das sensações, da experiência humana». É estranho o modo como Lenine - um leitor inteligente da Ciência da Lógica de Hegel e de O Capital de Karl Marx - anula e dissolve a pluralidade dos mundos num único mundo material: o homem não criou o cosmos, é certo, mas criou o seu próprio mundo social e cultural. A dialéctica não existe sem a subjectividade humana e a sua correspondente possibilidade de auto-alienação e reificação. A dialéctica marxista, que se inscreve no mundo criado pelos homens, «relativiza» o materialismo que Nagel e Stalin abraçam. Mas há uma diferença significativa entre eles: o materialismo de Stalin é racionalista, enquanto o realismo de Nagel é irracionalista - uma versão céptica do realismo - e inconsequente na articulação das diversas temáticas filosóficas: «a nossa compreensão do mundo é limitada não apenas quanto ao que podemos saber, mas também quanto ao que podemos conceber» (Nagel). Para Nagel, o mundo estende-se para além do alcance das nossas mentes: nenhum cientista duvida seriamente deste excesso de objecto que ainda escapa à compreensão do pensamento humano, mas toda a comunidade científica alimenta a esperança de que o mundo pode ser penetrado pelo conhecimento. Em oposição ao idealismo - a doutrina que «sustenta que o que existe é aquilo que podemos pensar ou conceber, ou aquilo que nós ou os nossos descendentes poderíamos chegar a pensar ou conceber» (mais uma generalização abusiva de Nagel), o realismo nageliano considera que o mundo é, em grande medida, inconcebível para as nossas mentes. Ora, esta é uma noção estranha de realismo - o realismo como forma de cepticismo, que não só defende um excesso de objecto que é independente da mente humana, como também limita a sua capacidade para o conhecer e para o conceber. Usando deste modo arbitrário os conceitos, Nagel pode ser realista no plano das relações entre pensamento e realidade, e, ao mesmo tempo, defender - contra o fisicalismo - alguma versão da teoria do aspecto dual quando procura explicar a relação entre cérebro e mente. Stalin é aristotélico, no sentido de reconhecer a existência de «diferentes formas e modalidades da matéria em movimento», sem por isso sentir a necessidade de mudar de quadro teórico de referência quando passa da análise de uma modalidade material para outra. Nagel muda constantemente de grelha teórica e combina arbitrariamente conceitos e problemáticas teóricas dispares, de modo a encobrir o seu idealismo e o seu dualismo envergonhados, sem se dar ao trabalho de confrontar de modo crítico as redes conceptuais que cria com a realidade exterior que é independente do seu mundo privado: o seu realismo concede uma tal independência à realidade - os mercados financeiros - que abdica da tentativa de a conhecer e de a conceber, fazendo do pensamento um prisioneiro cativo do seu próprio vazio interior. O uso e abuso da lógica formal por parte de Nagel revela o carácter formal e mágico do seu pensamento e o vazio cognitivo - destituído de conteúdos - que o habita: Nagel não tem nada a dizer sobre o mundo e sobre a sua transformação, preferindo codificar arbitrariamente um sistema filosófico para uso privado. Deixando o mundo entregue a si mesmo e à sua opacidade irracional, Nagel confia-o aos caprichos dos mercados financeiros. A lógica formal não substitui o conhecimento da realidade, nem sequer ajuda a revelar a realidade e a pensá-la. A lógica formal é pensamento identitário que se rende à imediaticidade do sistema social vigente: é, portanto, um fetiche linguístico, cuja lógica interna é presidida pela lógica social do sistema de dominação estabelecido. A superioridade intelectual de Leonardo Coimbra - o ilustre filósofo da Escola do Porto - em relação ao cousismo de Nagel reside precisamente na redescoberta do carácter social da razão: «Chegados à lógica formal quase podemos dizer que chegamos à técnica do acordo. Dois adversários aceitam premissas comuns e ei-los que, de silogismo em silogismo, vão fazer o acordo, onde primitivamente era a hostilidade surda ou a guerra latente». Lógica sem metafísica é o acordo pelo acordo - a escravidão voluntária - com o neoliberalismo e o capitalismo financeiro: os homens formalizados e funcionalizados na e pela técnica do acordo e do consenso alargado abdicam voluntariamente da luta pela construção de um mundo melhor.
Stalin é, pelo contrário, um homem que quer dominar o mundo natural, humano e social: o seu materialismo é tecnologicamente consequente. Opondo-se ao idealismo, em especial ao idealismo hegeliano, o materialismo filosófico do líder soviético não só afirma o mundo material como a única realidade existente, vendo o espírito como produto mais elaborado da matéria que pensa - o cérebro, como também considera que o mundo e as leis por que se rege são perfeitamente cognoscíveis. Stalin rejeita claramente o cepticismo de Kant. Como se sabe, para Kant, só podemos conhecer as coisas do modo como se apresentam a nós - o mundo dos fenómenos - e não do modo como são em-si: o mundo das coisas-em-si permanece, para sempre e totalmente, fora do alcance do nosso pensamento. Criticando esta perspectiva kantiana, segundo a qual não podemos conhecer o mundo das coisas-em-si, Stalin defende que no mundo «nada existe que seja incognoscível, mas apenas existem coisas que ainda não foram conhecidas mas que serão reveladas e dadas a conhecer pelos esforços da ciência e da experiência». A dialéctica da aparência e da realidade coloca-se de modo diferente na abordagem da natureza e na abordagem do mundo social humano, na medida em que este último é produzido pela acção dos homens. Stalin enquanto herdeiro da tradição dialéctica e de Vico está ciente desta discrepância, mas procura contorná-la recorrendo a Engels, para mostrar que a autenticidade - a verdade objectiva - dos nossos conhecimentos dos fenómenos naturais pode ser comprovada sempre que os produzimos com a ajuda das suas condições e os colocamos ao serviço dos nossos fins. Produzir experimentalmente os fenómenos naturais é acabar com o carácter inatingível da coisa-em-si de Kant: o pensamento de Stalin é já um pensamento cibernético. O materialismo filosófico de Stalin assusta-me pelo seu primitivismo pré-marxista, mas, quando comparado com o realismo irracionalista de Nagel, merece algum crédito pela sua coragem e pela credibilidade da fonte a que recorre: Engels. O que assusta no materialismo filosófico de Stalin é o primado que concede às teses materialistas sobre as teses dialécticas. Os princípios do marxismo que estabelece na sua obra Sobre o Materialismo Dialéctico e Histórico são paráfrases das proposições formuladas por Engels na Dialéctica da Natureza. Nesta obra, Engels alarga o âmbito da dialéctica a toda a natureza, definindo-a como «a ciência das leis gerais do movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento». A formulação do marxismo como uma concepção do mundo científica converte a dialéctica numa mera teoria do conhecimento de carácter abstracto e positivista: o logos da dialéctica deixa de ser a libertação no sentido histórico de Marx e passa a ser a apologia ideológica do sistema vigente - o socialismo de Estado - que, como segunda natureza, adquire a dignidade das leis naturais objectivas que o conduzem à vitória final sobre as forças adversárias. Stalin divide o marxismo em materialismo dialéctico e materialismo histórico, encarando o último como uma extensão e uma aplicação dos princípios do materialismo dialéctico ao «estudo da sociedade e da sua história». Com esta distinção, Stalin rompe claramente com Marx. Para Marx, a distinção entre materialismo dialéctico e materialismo histórico não faz sentido, porque o processo dialéctico é processo histórico: a separação artificial entre eles operada pelo marxismo soviético implica a reificação da história - a sua contenção e a sua conversão em segunda natureza.
O jogo das diferenças e das semelhanças entre Stalin e Nagel dissolve-se quando descobrimos que ambos naturalizam a realidade, o mundo, sem levar em conta a sua textura social e histórica: Stalin e Nagel são apologistas perigosos do status quo. Stalin reifica a história, Nagel ignora-a. A Queda do Muro de Berlim refutou a interpretação estalinista do marxismo, a actual crise financeira e económica desmente Nagel. A escolha de Josef Stalin para confrontar e denunciar a miséria da filosofia de Nagel não foi arbitrária: a redução do mundo ao mundo físico, tal como é estudado pelas ciências naturais, implica uma desvalorização da história, cuja intenção política é demasiado evidente. O marxismo soviético, neste caso particular o estalinismo, não submeteu os conceitos dialécticos a uma revisão, mas operou uma mudança importante na função da dialéctica: a dialéctica foi transformada de uma forma de pensamento crítico em uma concepção do mundo e em um método universal dotado de normas e de regulações rigidamente determinadas. Ora, esta transformação destruiu a própria dialéctica, ao mesmo tempo que transfigurou e desfigurou o marxismo, convertendo-o numa ideologia que passa a fazer parte da superestrutura de um sistema de dominação estabelecido. O marxismo soviético paralisou e imobilizou a dialéctica, adaptando-a em proveito da justificação ideológica de um sistema social e político que recusa a sua própria superação pela evolução histórica. A dialéctica transfigurada e bloqueada conduz à castração da transformação da quantidade em qualidade, à negação da possibilidade de mudanças explosivas mediante a elaboração da noção de contradições não-antagónicas, à reintrodução da lógica formal e à rejeição da negação da negação. Porém, a codificação oficial da dialéctica em sistema filosófico que tende a transformá-la em lógica formal esbarra com a própria essência da dialéctica: a dialéctica resiste à sua própria codificação. O carácter histórico da teoria marxista não permite generalizações a-históricas, opondo-lhes uma resistência feroz que ajuda a compreender as dificuldades do marxismo soviético para elaborar um manual adequado de dialéctica e de lógica. Os intelectuais mais ortodoxos do regime soviético, incluindo o próprio Stalin, não conseguiram contrariar a própria essência histórica da lógica dialéctica: os seus manuais de dialéctica e de lógica são, por isso, superiores aos manuais do neoliberalismo. A prova disso obtém-se pela comparação entre o manual de O. Yakhot - um ilustre desconhecido - sobre o materialismo histórico e o conhecido livro The View from Nowhere de Thomas Nagel. Em vez de elaborar um modelo crítico completo em torno destas duas obras, vou limitar-me - apenas isso - a chamar a atenção para a ética e a teoria da justiça desenvolvidas por estes dois pensadores. Yakhot revela o seu conhecimento profundo de Hegel quando afirma que a moral ou a teoria da justiça não podem ser formuladas fora das condições históricas, como faz Nagel mediante a elaboração de conceitos exteriores à sociedade - vista como «mundo estranho», não por ser o mundo do dinheiro que envenena a consciência do homem, avaliado pela soma de dinheiro que possui, mas por ser a incorporação da perspectiva objectiva que ameaça as perspectivas pessoais: a teoria marxista recusa uma tal moral abstracta, portanto exterior à sociedade, sem no entanto negar a moral humana universal. Albert Einstein sabia isso: «A concorrência ilimitada leva a um enorme desperdício de mão-de-obra e deforma monstruosamente a consciência social do indivíduo. Considero esta monstruosa deformação como o pior mal do capitalismo». O capitalismo deforma a consciência social do indivíduo, não lhe permitindo outro interesse fora do lucro: eis o que Nagel não sabe e, como não sabe que a sua consciência pessoal é mediada pela sociedade em que vive, pensa que pode - a partir da sua própria deformação privada não reconhecida como tal, impor à sociedade uma moral abstracta, cuja universalidade é a deformação universal da consciência social dos indivíduos. O pensamento deste Robinson Crusoé da filosofia anglo-saxónica é a regressão cognitiva total: Nagel, perdido na sua ilha deserta e assombrada pelo feio e ressequido espectro cavaquista, retoma ideias e teorias velhas - o individualismo exacerbado - que, tendo cumprido a sua missão num passado já distante, travam no presente o desenvolvimento e a modernização da sociedade. A dialéctica marxista acredita no poder organizativo, mobilizador e transformador das novas ideias que servem os interesses das forças de vanguarda da sociedade: a sua função é facilitar o desenvolvimento e a modernização da sociedade. Portugal - humilhado pelo Presidente checo - deve romper com o mencheviquismo cavaquista que procura bloquear as novas ideias e as novas instituições: a nosso futuro como nação independente e orgulhosa do seu passado depende da derrota eleitoral do cavaquismo e do conservadorismo moral que lhe é inerente.
J Francisco Saraiva de Sousa

10 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vou parar porque estou com vontade de matar o homem, isto é, interná-lo num hospital de malucos! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hoje estou verdadeiramente chateado com um vizinho: o homem anda a fazer a vida negra a um casal que socorreu um cão com problemas nos ossos - abandonado durante as férias por uma figura pública nacional. O cão já foi operado mas ficou com muitos problemas que dificultam a sua locomoção. Então, o tal vizinho estúpido embirra com o animal e com o casal que o acolheu. Estou a conspirar alguma coisa com outros amigos para o colocar fora de circuito...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, o tal homófobo nega agora a existência da orientação sexual: está a avançar no seu processo lento e doentio de luto pela heterossexualidade falsa. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É um luto mágico: recusa as designações gerais para se conformar à sua verdadeira atracção sexual. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A Filosofia é complicada, mas sou forçado a ser sintético e claro. Já falta pouco... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O post está concluído: não faço mais alterações. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, estava a manter um diálogo com um interlocutor na caixa de comentários do post "Pensamento conservador e Inquisição", mas ele interrompeu o diálogo, eliminando os seus comentários. Enfim, este é o Portugal que temos. E comemoramos hoje o 25 de Abril! :(

Anónimo disse...

Sempre que acusamos x de ser ideológico, precisamos provar por qual razão a nossa acusação não é ela mesma ideológica. Coisa que você não fez.

Anónimo disse...

E tem outra. Para dizer que um determinado pensamento tem um fundo ideológico, você precisa partir de princípios morais os quais você crê serem corretos. Só que esses mesmos princípios podem ser colocados em causa.

Revistacidadesol disse...


Adorei o artigo!