segunda-feira, 13 de junho de 2011

João Barrento: A necessidade de traduzir Ernst Bloch

João Barrento está a traduzir as Obras Escolhidas de Walter Benjamin. Até agora a Editora Assírio & Alvim lançou no mercado quatro títulos: Origem do Drama Trágico Alemão (2004), Imagens de Pensamento (2004), A Modernidade (2006) e O Anjo da História (2010). Estão por publicar Linguagem e Literatura e os dois volumes de O Livro das Passagens. A qualidade da tradução de João Barrento merece que lhe confie a tarefa de traduzir as obras de Ernst Bloch, em especial O Espírito da Utopia e O Princípio Esperança, para já não mencionar as restantes, bem como a Fenomenologia do Espírito de Hegel, a Estética de Georg Lukács, a Crítica da Razão Instrumental de Max Horkheimer e A Dialéctica do Esclarecimento de Max Horkheimer e de Theodor W. Adorno. Algumas traduções disponíveis em português do Brasil não merecem confiança e credibilidade: traduzir para a língua portuguesa de Portugal as grandes obras da Filosofia é uma tarefa meritória que estimula o desenvolvimento cultural nacional, do qual a Imprensa Nacional-Casa da Moeda se demitiu por incompetência. Mesmo que não tivesse feito mais nada na vida, além da tradução meritória das obras de Walter Benjamin e de alguns poemas de Georg Trakl, João Barrento tem desde já a sua vida justificada. Espero que a Editora Assírio & Alvim aproveite esta minha sugestão.

Anexo: A Editora Contraponto do Brasil publicou O Princípio Esperança (3 volumes) de Ernst Bloch, mas, como ainda não tive acesso a esta tradução portuguesa, não a posso comentar. Porém, dado conhecer e possuir outras obras do seu magnífico catálogo de títulos filosóficos, acredito que a tradução tenha qualidade, bastando uma revisão técnica para a editar em Portugal a um preço mais acessível. De resto, meus amigos, edições baratas são as alemãs que utilizo. Alguns amigos brasileiros pediram-me para não esquecer o Brasil quando faço crítica da ideologia. Retomo aqui uma crítica que já tinha feito: o português tal como é falado e escrito no Brasil corre o risco de não se prestar ao uso filosófico e científico.

J Francisco Saraiva de Sousa

18 comentários:

Wanderson Lima disse...

Caro Francisco, há fenômenos que envolvem o português brasileiro que para o europeu talvez não seja muito claro.

No português brasileiro há:

1)Um hibridismo mais intenso.Ocorrem muitos empréstimos linguísticos de dialetos indígenas, africanos e europeus (italianos, principalmente)talvez inexistentes para vocês (imagino que algo semelhante ocorra em sentido inverso).

2)Uma variação regional mais visível, que gera "dialetos regionais" mais ou menos prestigiados. Naturalmente, o português aqui é unificado e todo mundo se entende bem com ele, mas não deixa de pesar estas diferenças regionais. Por exemplo: sou do meio-norte do Brasil, do Estado do Piauí, na região Nordeste (a mais pobre do Brasil). Sendo assim, falo com um "sotaque" que me marca muitas vezes negativamente.Pela sua dimensão continental, o português aqui é cheio de nuanças. Só um exemplo: trabalho com um colega do que veio do extremo sul país, quase 4 mil km de distância.Então, às vezes eu falo e ele pede para eu repetir.

3) Um verdadeiro ABISMO no Brasil entre fala e escrita. Quando, então, um escritor brasileiro decide fazer uso da riqueza oral pode complicar a leitura. Até neste ponto tudo bem; grave é quando semi-analfabetos se põem a escrever como se fala não como recurso de estilo, mas simplesmente porque não dominam o português culto escrito.

Bem, estas asserções acima são fatos, mas dizer que "o português tal como é falado e escrito no Brasil corre o risco de não se prestar ao uso filosófico e científico" é um grande equívoco. Nossa escassa vocação científica e filosófica advém de outros fatores, os quais não cabem eu elencar aqui, mas que terei prazer em discutir noutra ocasião. Posso garantir-lhe, porém, que o português nosso é tão maleável, vívido, plástico e opulento quanto o português europeu. Aliás, quanto mais eu estudo outros idiomas mais me apaixono pelo meu. O fino do pensamento brasileiro - Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Mário Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira da Silva, José Guilherme Merquior, Otto Maria Carpeaux - construiu uma escrita ensaística cuja a elegância no trato da língua vem a par com a densidade de pensamento. Honestamente, não me lembro de qualquer outro pensador em língua portuguesa no século XX que explore tão bem os recursos que o idioma oferece como Gilberto Freyre.

Quanto à tradução do Bloch, falaram-me que é boa. Sei bem que a tradução que fizeram de Schopenhauer está de bom padrão.

Por fim, gostaria de saber o que pensas sobre Eduardo Lourenço. Li três livros deles (Mitologia da Saudade, Portugal como destino e Nau de Ícaro) e acho-o maravilhoso. Acho que ele merecia um texto neste seu espaço de reflexão.

um forte abraço!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Caro Wanderson

Só agora li o seu comentário, com o qual estou de acordo em termos gerais. Os 3 aspectos focados são indiscutíveis e, de certo modo, essas variações regionais também se verificam aqui, sobretudo entre o continente e as ilhas.

Conheço quase todos os autores do fino pensamento brasileiro da sua lista e nunca - mas mesmo nunca - duvidei da sua superior qualidade. E conheço outros que devem ser acrescentados a essa lista. Fico feliz por saber - aliás, já sabia - que partilhamos essa paixão pela língua portuguesa. E é nisso que devemos apostar...

Sim, conheço os livros da Editora Contraponto e gosto das traduções. Devia haver uma outra política editorial que facilitasse o intercâmbio entre os nossos países.

Sobre Eduardo Lourenço já escrevi um post prós e contras - um debate da rtp1 - onde ele participou. Nunca lhe dediquei um texto, porque não me identifico com a sua matriz de pensamento. Mas quem sabe...

Por fim, a minha crítica dirige-se sobretudo às traduções brasileiras: por exemplo, as traduções de Heidegger e de Hegel tendem a ser muito más. E o mesmo pode ser dito de alguns tratados científicos. Um dia exemplifico para ser compreendido.

Abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Outra coisa: também aqui há dificuldade em produzir filosofia em língua portuguesa - e a "responsabilidade" não é da língua em si mas desses tais factores que tenho referido várias vezes - todas as vezes que critico a sociedade portuguesa.

Necopinus disse...

Desde a faculdade ouço que certas traduções são problemáticas, principalmente as vindas do alemão. Deve-se procurar que as traduções sejam as mais perfeitas possíveis, isto é óbvio. O problema é um certo preciosíssimo alambicado sobre as traduções existentes. Quantos anos uma pessoa precisa para saber o alemão necessário para ler Heidegger? E se for o grego de Platão? Quem sabe russo suficiente para ler Dostoiévski? Plagiando o Dr. Johnson: uma tradução "ruim" é melhor que nenhuma! Quanto a sua frase sobre o português do Brasil, o Wanderson perdeu muito tempo: ela é simplesmente uma bobagem! Falta-lhe profundidade histórica: um romano do tempo de Augusto, exilado na Lusitânia, também poderia ter dito a mesma coisas dos seus pobre e grosseiros ancestrais que massacravam o latim para forjar a "última flor do Lácio, inculta e bela".
Grande Abraço,
Paula

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Paula

Bem, acho que uma tradução ruim, por vezes sem sentido, que viola frases-expressões do passado como se elas fossem expressão do calão regional, não tem qualquer valor. Heidegger não é difícil; o que é difícil é compreender Heidegger a partir dessas traduções ruins.

Não pretendo entrar numa discussão linguística e histórica: a origem do português é mais complexa do que sugere. E o latim sempre foi a língua culta da Europa, não só até à Reforma mas tb até ao século passado quando as teses eram escritas em latim. Mas quando uma língua atinge a sua maturidade plena é muito difícil imaginar o seu desenvolvimento, sobretudo quando se abre a línguas pouco complexas. A suposta evolução torna-se regressão.

Abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Uma língua rica abre e alarga o mundo; uma língua pobre nem sequer se presta ao seu uso lógico. Imagine o que seria traduzir Heidegger ou Aristóteles numa língua indígena primitiva das Américas ou de África - uma tarefa desesperada.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Além disso, se ler os comentários dos filósofos alemães sobre a filosofia de Heidegger, constatará que não há nenhum mistério linguístico obscuro nessa filosofia: são palavras normais... O que obscurece Heidegger são as traduções brasileiras, infelizmente é esta a verdade. As línguas "racionais" já superaram há muito tempo as línguas mágicas ou o aspecto mágico da lingua(gem). Quanto a Platão, o melhor será consultar as traduções portuguesas e melhorá-las.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já leu a tradução brasileira da Introdução à Metafísica de Heidegger? Um horror! De resto, uma obra fácil de ler quando se conhece a aposta nazi de Heidegger. Porém, há traduções portuguesas que permitem ler Heidegger sem sofismas linguísticos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Chamar "evolução linguística" a este português bárbaro é muito ousado! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas reconheço que nós portugueses temos uma vantagem para compreender a linguagem de Heidegger: um tesouro poético transposto para o pensamento. Mas esta vantagem também pode ser vossa - ela está incorporada na língua.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já agora experimente ler esta tradução de Walter Benjamin e confronte-a com as que tem ao seu dispor: um abismo separa-as. A riqueza do pensamento de Benjamin não se perde... Uma excelente tradução!

Wanderson Lima disse...

Olá, Francisco!

se sua crítica ao português brasileiro toca, em essencial, as traduções, então vejo fortes justificativas nela. Porém, dou-te um alento: a expansão dos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado) tem feito aumentar bastante não só a qualidade das traduções mas também a quantidade. Por exemplo, saíram agora 2 louváveis traduções integrais de O mundo como vontade e representação, uma da Divina comédia e uma da Ilíada. Mas, enfim, como não sei alemão nada posso falar das traduções de Heidegger e Hegel.Posso, porém, assegurar-lhe que não acho nada fácil a leitura de Heidegger. Culpa da tradução? Não duvido.

Em algum lugar de sua obra, Ortega y Gasset contrapõe o espanhol e o português ao inglês, justificando por que nossos idiomas são melhores talhados para a filosofia do que o inglês. Infelizmente, não lembro aqui o argumento de Ortega todo. Lembro-me, porém, de ele dizer que os idiomas vindos do latim foram lapidados na ágora e no fórum enquanto o inglês se aperfeiçoou (se não me engano) no comércio. A mim não fica dúvida alguma que o português (em qualquer das duas vertentes) é um idioma perfeitamente talhado para a filosofia. Se não temos forte tradição filosófica (digo aqui no Brasil), os motivos são outros. Sérgio Buarque de Holanda, Luiz Costa Lima e Vilém Flusser pensaram esta questão e deram boas respostas. Infelizmente, não posso aqui resumir nem o essencial do que eles disseram, sob o risco de ser banal e simplório. Lembro apenas que Sérgio criticava nossa tradição bacharelesca (com sua retórica empolada e superficial, seu repúdio à pesquisa sistemática, seu estetismo patético etc) e Costa Lima reclama que nosso pensamento não tem um centro de decisão próprio (vive macaqueando especialmente a França). Outro fator que nenhum pesquisador nega é que o Positivismo perdurou no Brasil mais do que em qualquer outro lugar; muita mente espetacular no Brasil se perdeu graças ao Positivismo. Quando vocês, em Portugal, já dialogavam com Bergson, Nietzsche etc nós aqui ainda louvávamos o Positivismo e o Darwinismo social. Enfim, trata-se de uma questão complexíssima.

Bem, mudando de assunto: acho que nunca ouvi uma palavra sua sobre o portuense vivo mais reconhecido no mundo: o cineasta Manoel de Oliveira. Considero-o nada menos que um gênio. O que achas do Manoel de Oliveira? A leitura que ele faz de Portugal em "Non ou a Vã Glória de Mandar" e em "O quinto império" não lhe agrada? A propósito, em agosto ele vem ao Brasil para terminar de filmar uma obra baseada em contos do Machado de Assis.

um abraço!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Wardenson

Sim, o Ortega disse isso e, no essencial, concordo com essa tese que encontramos noutros autores, apesar do inglês ter tentado encontrar saídas... Acredito no potencial da língua portuguesa e, por isso, defendo a unidade da língua que pode lutar contra o predomínio "comercial" - económico e político - do inglês. Apesar de ser territorialmente pequeno, Portugal descobriu o mundo e deixou a língua nas novas terras descobertas, algumas sacadas depois pelos ingleses.

Eu conheço relativamente bem a actividade editorial brasileira e reconheço a sua ousadia. Admiro isso nos brasileiros. Sei que há muitas traduções boas e fico feliz pela sua qualidade estar a melhorar. Afinal, é isso que desejo - qualidade!

Num outro post, tinha defendido a elaboração de uma história da cultura em língua portuguesa, uma obra que permitisse aos utentes da língua portuguesa conhecerem o que acontece noutros locais.

Sim, o positivismo brasileiro foi criticado por Sampaio Bruno, o fundador portuense do pensamento português. E foi Leonardo Coimbra - entre outros - que introduziu Bergson. Nietzsche tem uma longa recepção em Portugal - Guerra Junqueiro sofreu o seu impacto, para já não falar do Leal. Esse positivismo esteve aqui mais circunscrito em Lisboa... e o Porto reage com outro tipo de racionalismo. Mas toda esta história está por fazer.

Manoel de Oliveira é um portuense de sucesso mundial, mas não sinto afinidades com o seu universo. Ele adormece-me... Mas o cinema é mais da sua área... :)

Abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Wanderson* Sorry!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, tenho estado a ler a poesia revolucionária moçambicana e tem o seu encanto: pena não ter sido estudada. Todos podemos ficar mais "ricos" incorporando a literatura e a cultura destes novos países de língua portuguesa.

Necopinus disse...

Todo mundo tem direito a sua tolice. A minha é acreditar na unidade psíquica do gênero humano. Meu motivo para isso é extremamente prosaico. Na faculdade tinha aulas com um professor muito boa-gente, mas enroladíssimo, que nos falava sobre a "Fenomenologia do Espírito". Ninguém entendia nada! Felizmente, havia um aluno Xavante (filho de uma tribo indígena do Mato Grosso, aculturado pelos missionários protestantes), que depois muito gentilmente nos explicava tudo de forma clara é didática. Claro, isso não prova nada, já que ele aprendeu português, etc, etc. No entanto, ainda creio tolamente que se ele fosse alfabetizado no seu idioma poderia entender também Hegel como entendia em português.

"Línguas indígenas primitivas das Américas", "línguas racionais", "línguas mágicas", diz você... Não sou antropóloga, mas tive que ler "A Ciência do Concreto" ("Em todas as línguas, aliás, o discurso e a sintaxe fornecem os recursos
indispensáveis para suprir as lacunas do vocabulário"), todos aqueles passos para chegar ao curare... Bom, que falem os doutos!

Seja como for, a “degeneração” do português é inevitável. Moro em uma cidade (Rio de Janeiro) que tem mais habitantes que todo Portugal. E olha que o RJ não é sequer a cidade mais populosa do Brasil. Também para as línguas demografia é destino.

Grande Abraço,
Paula.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Paula

A ciência do concreto é O Pensamento Selvagem de Lévi-Strauss? Uma boa leitura!

Também não coloquei a unidade do género humano. O exemplo confirma-o.

Abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

em questão* Sorry.