«Ao se desdobrar, o projecto (tecnológico) molda todo o universo da palavra e da acção, a cultura intelectual e (a cultura) material. No ambiente tecnológico, a cultura, a política e a economia fundem-se num sistema omnipresente que engolfa ou rejeita todas as alternativas. O potencial de produtividade e de crescimento desse sistema estabiliza a sociedade e contém o progresso técnico dentro da estrutura de dominação. A racionalidade tecnológica tornou-se racionalidade política.» (Herbert Marcuse)
Tendo como imagem de fundo a torre da Igreja do Marquês (Porto), vou procurar pensar a derrota da Esquerda na Europa e no mundo ocidental. É preciso reconhecer que a Esquerda está esgotada e que a social-democracia, a partir do momento em que abandonou a crítica radical do capitalismo, se tornou uma aliada das forças obscuras que mergulham o Ocidente no abismo. Marcuse soube teorizar o advento do pensamento unidimensional - aquilo a que se chama hoje pensamento único, mas, apesar desse grande mérito teórico, a sua filosofia política é atravessada por uma aporia insuportável. A integração social e cultural da classe operária no sistema capitalista privou a teoria crítica de um agente social capaz de operar a grande mudança qualitativa. A perda da classe operária como agente de transformação revela desde logo uma falha crucial do marxismo: a confiança exagerada depositada no Homem. Porém, em vez de pensar esta falha da teoria filosófica, Marcuse preferiu elaborar uma contra-agenda política reivindicativa que liquida mais do que liberta a agenda política da Esquerda. A partir do momento em que a Revolução de Outubro de 1917 falhou o seu objectivo de construir uma sociedade comunista mundial, a Esquerda entrou na via da auto-liquidação ideológica e política, sem compreender que a expectativa comunista deriva de um grande erro teórico. O comunismo, bem como o socialismo encarado como fase de transição, se fosse realizado, produziria a mesma merda que foi produzida pelo capitalismo nas sociedades avançadas: a sociedade metabolicamente reduzida sem memória e sem futuro. De certo modo, quando deixou de lutar por uma alternativa ao capitalismo, a Esquerda reconheceu esta semelhança entre o sonho comunista e o capitalismo tardio que, pelo menos até à crise internacional de 2007-08, procurou satisfazer as necessidades materiais dos homens privados de cultura. Tanto o discurso da Esquerda como o discurso da Direita dirigem-se única e exclusivamente à "marmita", isto é, ao cérebro visceral - quase preferia dizer intestinal ou digestivo - do homem. Ora, o discurso-marmita produziu no cenário de uma democracia massificada um monstro inumano: o homem-marmita ou animal metabolicamente reduzido que assassina a cultura superior do Ocidente. A base biológica para o "socialismo" que Marcuse procurou pensar conduziu a este recuo do homem para a sua mera animalidade, fazendo explodir o humanismo em nome do próprio humanismo. Afinal, o homem novo já não é um homem que se transcende constantemente, mas um mero animal que luta por uma vida garantida num mundo avesso a todas as garantias definitivas. O progresso converteu-se assim em regressão.
A concepção apocalíptica da História que esbocei noutros textos visa corrigir esse grande erro teórico da teoria crítica e abrir o caminho ao advento de uma nova prática política marxista. Como vimos, a exaltação do Homem converteu-se no seu contrário, isto é, na exaltação do animal metabolicamente reduzido, que, desconhecendo o que distingue o Homem do Animal, atribui direitos iguais aos seus aos animais que não falam. Desta forma demasiado abstracta, estou a impugnar as agendas políticas tanto da Esquerda como da Direita, acusando-as de terem transformado o Homem num animal metabolicamente reduzido. A dificuldade de "medir" o progresso em termos qualitativos revela o seu carácter essencialmente perigoso para o futuro da aventura humana sobre a Terra. Libertar a história do homem desta ideia perigosa de progresso que ameaça lançar o mundo no abismo é a tarefa fundamental da nova prática política marxista. A teoria crítica só pode trabalhar a sua diferença teórica e política se conseguir libertar-se da ideia de progresso que a mantém aprisionada nas teias do capitalismo. Os filósofos da Escola de Frankfurt já tinham tomado consciência disso quando afirmaram que a racionalidade tecnológica se tinha convertido em racionalidade política, mas o facto de alimentarem a esperança de um reino messiânico aqui na terra impediu-os de ir mais longe: o marxismo foi renovado sem ter quebrado o feitiço de todas as ilusões. Se o programa materialista exige a crítica radical de todas as ilusões, o marxismo não pode conservar a grande ilusão de construir uma sociedade definitivamente justa aqui na terra. Só aplicando a dialéctica à própria teoria de Marx podemos libertá-la do seu cativeiro capitalista: o marxismo apocalíptico é o resultado dessa libertação final. A experiência política dos partidos de Esquerda ensina-lhes que reduzir a política à satisfação das necessidades materiais dos mais pobres e da geração rasca à rasca - a questão social de Hannah Arendt! - não é suficiente para produzir - aqui e agora - um mundo melhor, até porque, depois de satisfeitas as suas necessidades materiais, os homens se voltam - quais conservadores no período logo a seguir ao coito! - contra a tarefa de adiar a catástrofe final e contra as forças políticas que a protagonizam: o homem satisfeito - a consciência feliz de Marcuse - é politicamente tão perigoso como certos nichos brancos de pobreza nos USA, além de ser o maior inimigo da cultura superior. Por detrás da dinâmica política, há uma dinâmica biológica extremamente conservadora e oportunista que tem escapado à compreensão dos teóricos críticos, até mesmo de Marcuse que usou um modelo biológico insuficiente para pensar a base biológica do "socialismo". É certo que o marxismo procurou defender-se desse elemento conservador das massas formulando alguma versão de elitismo, mas hoje, depois dos seus fracassos históricos, deve ter a coragem suficiente para romper com o mito do igualitarismo, assumindo o princípio de que o homem abandonado a si mesmo não é capaz de superar a sua própria animalidade de base - uma condição animal indecente e malvada! - e de rumar para metas de humanização mais elevadas, sobretudo quando deixou de ser punido e castigado pela sociedade, como se o "desenvolvimento humano" fosse possível num ambiente de facilitismo e de gratificação plena. Ora, correndo o risco de parecer ser aquilo que não sou - um neoliberal, sou forçado a impugnar o Estado Social - este monstro feio e gordo que a Esquerda reivindica como sua obra! - que paralisa a sociedade e o desenvolvimento económico e que liquida a cultura superior. Quando ouço dizer que há criaturas burras que são financiadas para "escrever" ou para produzir "obras de arte", fico furioso e as minhas injúrias dirigem-se contra este Estado Social que priva o Homem da sua verdadeira Humanidade e que nos priva a todos da qualidade de vida e da cultura superior. A agenda política da Esquerda liquidou a cultura, distribuindo falsos diplomas e impondo de cima uma igualdade que nos lança no abismo. A política da educação e da cultura que abole a cultura e o conhecimento para tornar todos os homens iguais na sua burrice endémica é responsável pela estagnação e, se não for inflectida, pelo ocaso do Ocidente. O acesso universal à educação e o ensino obrigatório não trouxeram consigo mais-valia cultural: os indivíduos podem ser diplomados mas isso não faz deles génios. O pensamento burocraticamente diplomado asfixiou a criatividade e a imaginação criadora: a organização social da ciência bloqueia o caminho àqueles que são verdadeiramente criativos e geniais. A ausência de grandes obras de ciência, filosofia e arte testemunha o triunfo total do pensamento único que é, como diria Nietzsche, pensamento de rebanho. Ao promover um tal pensamento, a Esquerda anula-se enquanto oposição. Em termos de organização interna do saber, podemos dizer que a sociologia suplantou a psicologia e esvaziou a Filosofia, ou, o que é equivalente, consumou o triunfo do pensamento quantitativo sobre o pensamento qualitativo. O facto da teoria crítica ter sido privada da sua base social de apoio não deve ser visto como um facto negativo, porque, ao ser forçada a tornar-se mais abstracta, a teoria crítica volta a ser predominantemente filosófica, fazendo justiça à ambição de Marx de criar novas matemáticas qualitativas para o pensamento vindouro. As crises e as derrotas têm este aspecto positivo: obrigam-nos a pensar tudo de novo. E hoje precisamos repensar a Esquerda e o mundo que a desafia. A crítica marxista do marxismo não implica o seu abandono: o marxismo desde que liberto dos seus erros e das suas ilusões continua a ser a única filosofia capaz de compreender o mundo e de o transformar, preparando os homens para a tarefa de adiar a catástrofe final.
Observação geral. Ainda não estou na posse de todos os instrumentos conceptuais necessários para formular e aprofundar a concepção apocalíptica da História e definir novas tarefas políticas. Sou, portanto, forçado a parasitar uma linguagem velha para formular uma novidade teórica que exige novos conceitos teóricos. Entretanto, para desbravar terreno, não tenho outro caminho a não ser o de correr o risco de dizer a novidade teórica numa linguagem inadequada.
J Francisco Saraiva de Sousa
5 comentários:
É certo que a derrota da esquerda portuguesa inspirou ou motivou a produção deste texto, mas evitei analisar o caso português, porque não confio nos portugueses.
Quem não queira ficar desesperado o melhor que faz é esquecer Portugal! :(
Ai, ai, meninas - n faço guerra com as minhas amigas brasileiras por causa das amigas portuguesas. Essa guerra é vossa, n é minha.
Ai, ai, tenho leitores muito exigentes - este texto atingiu um pico de audiência fabuloso, mas infelizmente não sou pago para filosofar permanentemente on-line. Mas gosto de desafios... Thanks!
Bem, a outra foto estava a revelar dificuldade de acesso e, por isso, substitui-a por outra da mesma torre.
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