«O que é, pois, o tempo? Se ninguém mo pergunta, sei o que é; mas se quero explicá-lo a quem mo pergunta, não sei: no entanto, digo com segurança que sei que, se nada passasse, não existiria tempo passado, e, se nada adviesse, não existiria tempo futuro, e, se nada existisse, não existiria tempo presente. De que modo existem, pois, esses dois tempos, o passado e o futuro, uma vez que, por um lado, o passado já não existe, por outro, o futuro ainda não existe? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse a passado, já não seria tempo, mas eternidade. Logo, se o presente, para ser tempo, só passa a existir porque se torna passado, como é que dizemos que existe também este, cuja causa de existir é aquela porque não existirá, ou seja, não podemos dizer com verdade que o tempo existe senão porque ele tende para o não existir?» (Santo Agostinho)
Esta fotografia da Cidade-Estado do Porto é muito sugestiva: ela sugere a visão distante - própria de um iniciado que tudo vê do topo da Serra do Pilar ou da Ponte de D. Luís I - de uma bifurcação histórica crucial para o futuro da humanidade. A elevação abrupta do nível das águas tempestuosas do Rio Douro pode, a qualquer momento, destruir todo o espaço cultural e social moldado e construído pelo homem para se abrigar das intempéries: a cidade dos homens nunca está suficientemente protegida contra os efeitos devastadores das catástrofes naturais. Uma civilização tão sofisticada como a civilização minóica - a Atlântida de Platão - foi completamente destruída pela irrupção do vulcão da ilha de Tera, situado a 120 km a norte de Cnossos. O homem - condenado sem apelo à morte individual e colectiva - tem diante de si dois caminhos a seguir: o caminho da ilusão e o caminho da verdade. Até hoje o homem tem escolhido o caminho da ilusão que está a lançá-lo no abismo. Dado ser originária e estruturalmente um ser-sem-abrigo, lançado no mundo para morrer, o homem procura abrigar-se, construindo o seu próprio mundo - o mundo da cultura - e lutando em vão contra o fluxo do tempo que lhe nega o estado beatífico de gratificação plena. A luta contra o tempo é uma tentativa desesperada de abolir o tempo. O homem descobriu duas maneiras de abolir o tempo: as duas noções de tempo - o tempo cíclico e o tempo linear - que se confrontam na história são tentativas desesperadas de transcender o tempo da História. A teoria do cérebro autista ajuda-me a definir estas duas noções-concepções de tempo como as duas faces de uma mesma moeda: a ilusão da abolição do tempo da História que, nas obras de T. S. Eliot e James Joyce, é percorrida pela nostalgia do mito da repetição eterna. O autismo histórico é, portanto, uma doença tanto do homem arcaico como do chamado homem histórico: ambos os tipos de humanidade sentem aversão pelo movimento e pela criação. O homem arcaico defende-se da história abolindo-a periodicamente graças à repetição da cosmogonia e à regeneração periódica do tempo ou atribuindo-lhe um significado meta-histórico consolador e coerente, susceptível de se integrar num sistema bem articulado em que o cosmos e a existência humana tinham - cada um - a sua razão de ser. O homem moderno que reclama a liberdade de fazer história fazendo-se a si próprio defende-se da história quando a encara como uma totalidade dotada de uma estrutura coerente que caminha no sentido da salvação. Até mesmo a filosofia da história de Marx permanece prisioneira da ideia nefasta da Idade do Ouro das escatologias hebraico-cristãs e arcaicas, colocando-a não no início mas no fim da história. Infelizmente, graças à Revolução Francesa, o homem moderno descobriu a História para logo a seguir a recusar: todas as chamadas filosofias historicistas, desde Hegel até Marx, passando por Rickert, Troeltsch, Dilthey, Simmel, Croce, Mannheim e Ortega y Gasset, tentaram escapar ao terror da História através da supressão final do mal histórico. À luz da ontologia da história - subjacente à concepção apocalíptica da história, a mortalidade do homem não lhe permite escapar à existência histórica: a mortalidade não só funda a história, como também antecipa o sentido derradeiro da sua aniquilação fatal. A história é, para o homem, uma fatalidade selada: o futuro da humanidade está sempre-já ferido de morte. O homem arcaico e o homem moderno enquanto seres mortais são seres históricos que procuram, cada um à sua maneira, abolir ilusoriamente o tempo da história, mas esta evasão da história - mais no caso do homem moderno do que no caso do homem arcaico - aproxima mais do que afasta e adia o seu desfecho catastrófico - natural e/ou desencadeado pelo próprio homem. Perante a impotência de Deus, não adianta alimentar a fé na emancipação absoluta de toda a espécie de "lei" natural: o homem que não pode escapar ao seu destino selado - a morte individual e colectiva - é um ser sem salvação possível. A única maneira genuína de escapar livremente à continuidade do sofrimento seria o suicídio colectivo, mas este não é uma solução política. A Grande Política de que o nosso tempo obscuro precisa é a arte do possível numa situação adversa: adiar a catástrofe final em cada uma das sucessivas conjunturas políticas, sem gerar na mente humana novas ilusões e sem sacrificar a humanidade em sofrimento, fazendo-lhe promessas de salvação que não poderão ser cumpridas, uma vez que o sentido-fim da história não é a salvação mas a catástrofe final. Quando escreveu que «o presente está grávido do futuro; o futuro poder-se-á ler no passado; (e) o distante expressa-se no próximo», Leibniz antecipou a concepção iluminista do progresso perpétuo, ao mesmo tempo que imortalizou a terrível ilusão da felicidade, entendida não como «plena fruição onde já nada haveria a desejar e tornaria estúpido o nosso espírito», como sucedeu efectivamente no período compreendido entre o fim da II Guerra Mundial e a actual crise financeira e económica, mas como conquista contínua e infinita de «novos prazeres e novas perfeições». Ora, a história produzida sob o impacto da formalização da razão e da ideia de progresso é, como viu o Anjo da História de Walter Benjamin, catástrofe: a natureza dominada ameaça revoltar-se contra o homem - o seu pretenso senhor - e expulsá-lo de vez da terra. Os custos ecológicos e sociais da concepção do tempo cíclico do homem arcaico são menores do que o preço elevadíssimo que estamos a pagar pela irracionalidade da concepção progressista da história. Porém, como não podemos travar a flecha do tempo, mediante a realização anual de um ritual "mágico" de regeneração do tempo que nos tornaria contemporâneos do tempo primordial e mítico da cosmogonia, resta-nos a tarefa de libertar a história da ideia de progresso. Progresso tecnológico e progresso humano não coincidem, sobretudo no âmbito dos quadros sociais do capitalismo, onde o progresso tecnológico implica dominação-devastação crescente da natureza e regressão da sociedade e da cultura. Quebrar a continuidade da história dos vencedores pode ajudar a humanidade em sofrimento a descobrir um sentido para continuar a viver, sabendo que viveu, vive e viverá em vão. Confrontado com o seu destino selado, o homem não tem nada a perder: a única atitude que o dignifica é arriscar a vida que não lhe pertence na luta contra os vencedores, porque só através dessa luta permanente de vida ou de morte encontra um sentido para a sua finitude radical. Viver sem ilusões sabendo que se vive em vão é o melhor antídoto contra o desespero: a concepção apocalíptica da história não é niilista e relativista, na medida em que, ao criticar o progresso como aliado das forças destrutivas que mergulharão o mundo na catástrofe final, recusa alimentar ilusões geradoras de frustração. (Aliás, a figura do desespero é uma invenção do cristianismo que prometeu ao homem a salvação, porque só desespera quem espera e aguarda a salvação!) A solidariedade com o sofrimento só será uma realidade-efectiva quando o homem se libertar de todas as ilusões que fazem da história o palco do terror. Os indivíduos que tomaram consciência da caducidade da vida através da experiência de uma situação-limite são pessoas melhores do que os indivíduos que nunca foram confrontados na vida com situações-limite: quer dizer que o homem só poderá vencer a sua maldade radical - o seu egoísmo atroz - quando não for poupado à experiência do sofrimento - alheio e próprio, a única experiência humana capaz de lhe abrir as portas ao reduzido número de instantes de alegria que lhe são permitidos viver - em comunhão com os outros - neste mundo condenado à aniquilação. O mito da felicidade gera mais egoísmo do que solidariedade, funcionando como o cimento ideológico que justifica a continuidade da história dos vencedores.
A partir do momento em que anunciei e datei o nascimento da concepção apocalíptica da história, tornei-me "escravo" da sua própria problemática teórica que já domina o meu pensamento há muito tempo, provavelmente desde a minha infância remota quando fui surpreendido pelos sinais de fogo do céu nocturno, perseguido pela lua-cheia cor-de-fogo e raptado pelas silhuetas dos cavaleiros do Apocalipse, sob o olhar atento e vigilante do Diabo que sempre me temeu: a palavra portuguesa Apocalipse deriva da palavra grega Apokalypsis e significa "desvelamento" ou revelação. O propósito de todos os Apocalipses - tanto dos judaicos como dos cristãos - é desvendar aos seres mortais os segredos conhecidos apenas nos céus. Desde a infância mais remota que sou raptado durante o sono e lançado abruptamente numa enorme biblioteca, onde leio livros escritos em todas as línguas: alguns desses livros são extremamente secretos e enigmáticos, escritos numa língua misteriosa que compreendo sem esforço, outros são livros escritos pelos seres mortais que se vendem em todas as livrarias do mundo. Quando compro os livros dos mortais, com os quais entrei em contacto mental imediato na biblioteca celestial, já não preciso de os ler: conheço o conjunto de todas as suas letras - a potência cuja imagem material foi captada por Jorge Luís Borges quando escreveu O Aleph - sem ter necessidade de as articular em pensamento para conquistar a par e passo o seu sentido integral, como faz qualquer outro mortal. O "algo desconhecido" - a memória infinita - que me rapta durante o sono dá-me acesso aos segredos do mundo, que só muito recentemente resolvi articular numa linguagem inapropriada acessível aos mortais. A grande experiência ocorreu quando, numa noite fria, olhei para o céu e vi constelações enigmáticas de fogo em movimento de colisão. O meu destino jogou-se nesse instante: os anjos do Apocalipse raptaram-me nessa noite e levaram-me para um lugar estranho, onde fui submetido a diversas tentações e rituais. De repente, como se estivesse a acordar de um sono profundo, encontrei a serenidade da sala de aula e escutei-me a divagar em voz alta sobre a matéria que estava a ser leccionada numa linguagem que ninguém compreendeu. Estava vivo e salvo dos golpes mortais das espadas das silhuetas dos cavaleiros do Apocalipse: o dom de induzir o rapto durante o sono que me permite mergulhar na memória infinita foi-me concedido. Tornei-me de tal modo autónomo e seguro que resisto facilmente ao poder dos anjos: adiei a revelação e amaldiçoei o mundo. E o facto de ser um homem de esquerda ofuscou - e ainda ofusca - a elaboração teórica da concepção apocalíptica da história, mas hoje tive a coragem suficiente para dar um novo passo em frente, desvelando - de forma ainda rudimentar, é certo! - uma articulação estrutural entre o sem-abrigo e o cérebro autista, de modo a evidenciar a maldade humana. A utilização da teoria do cérebro autista como tipo extremo do cérebro masculino permite compreender a história como uma criação-invenção de cérebros masculinos: tudo o que é admirável e tudo o que é terrível na história do homem são invenções-criações-empreendimentos do cérebro masculino que, devido à sua capacidade intrínseca de sistematização racional, procurou e procura controlar, domesticar ou, em caso extremo, abolir o devir, de modo a dar uma ordem estável ao cosmos cujo movimento entrópico conduz à catástrofe final. A história da dominação é a história de cérebros masculinos empenhados em conquistar a natureza que lhes resiste: o ser-sem-abrigo que é o homem contou desde sempre com a preciosa ajuda do cérebro masculino para suprir as suas fragilidades constitucionais. É certo que o cérebro masculino produziu a história como catástrofe tal como a conhecemos, mas isso não significa que o seu opositor - o cérebro feminino - seja capaz de evitar a catástrofe final. Para o bem e para o mal, continuamos a depender da capacidade de sistematização do cérebro masculino. A sua substituição pelo cérebro feminino implica a morte das grandes civilizações - sobretudo da Civilização Ocidental, a mais corajosa de todas as civilizações do mundo - que ousaram desafiar o destino fatal. A partir do terrível e letal momento em que os homens foram colocados - do berço até à morte - ao mesmo nível das mulheres, em nome de um princípio de igualdade que viola a natureza das coisas, o Ocidente perdeu o seu élan vital - o seu impulso anímico e o seu princípio de actividade - que fez dele uma civilização dominante. O paradoxo da história - ou, se quiserem, a ironia da história - reside no facto da sua restituição integral depender do mesmo cérebro - o cérebro masculino - que introduziu a violência no seu seio. A história do homem é vertigem e quem teme a vertigem o melhor que faz é afastar-se dos palcos onde se gera a Grande Política.
J Francisco Saraiva de Sousa
4 comentários:
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Consigo abrir um novo espaço para a política, mas estava a precisar de ajuda económica. O mundo é complexo.
Geralmente, as criaturas que não foram forjadas para pensar com coragem acusam-me de usar armadilhas conceptuais que neutralizam a "crítica". Bem, dizer a verdade implica a denúncia do mal-existente e este texto nomeia claramente a raiz do atraso estrutural e histórico de Portugal - que hoje também é responsável pela decadência do ocidente.
Este texto inscreve-se em dois registos, passando livremente de um para o outro para provocar vertigem mental e cognitiva no leitor.
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