quarta-feira, 22 de junho de 2011

Antropologia do Antigo Testamento revisitada

«A crença no além é, portanto, a crença na libertação das limitações da natureza por parte da subjectividade - portanto, a crença do homem em si próprio. Mas a crença no reino celestial é idêntica à crença em Deus - existe o mesmo conteúdo em ambas as crenças - Deus é a personalidade pura, absoluta, livre de todas as limitações naturais: ele é exclusivamente o que os indivíduos humanos devem ser ou serão - a crença em Deus é, portanto, a crença do homem na infinitude e na verdade da sua própria essência - a essência divina é a essência humana, ou melhor, a essência humana subjectiva na sua liberdade e na sua ilimitação absoluta. O nosso propósito mais essencial foi realizado aqui. Reduzimos a essência extramundana, sobrenatural e sobre-humana de Deus às partes componentes da essência humana como as suas partes componentes fundamentais. No fim voltámos ao início. O homem é o início da religião, o homem é o meio da religião, o homem é o fim da religião». (Ludwig Feuerbach)

«A crítica da religião conclui com a doutrina de que o homem é para o homem o ser supremo. Conclui, por conseguinte, com o imperativo categórico de derrubar todas as condições em que o homem surge como ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível - condições que dificilmente se exprimirão melhor que na exclamação de um francês por altura da proposta de imposto sobre cães: "Malditos cães! Já vos querem tratar como homens!"». (Karl Marx)

Ao mostrar que o céu cristão é a imagem-desejo de tudo aquilo que o homem anseia e espera, Feuerbach revelou e desvelou o núcleo antropológico da teologia, o que permitiu mais tarde acentuar o carácter antropológico da teologia (D. A. Pailin) no decurso da recepção teológica da crítica da religião levada a cabo por Feuerbach e Marx, por um lado, e por Nietzsche e Freud, por outro, aliás claramente esboçada pelo adversário comum a todos, o grande Hegel. Para fazer frente à crítica da religião, sem abdicar dos dogmas fundamentais da sua fé, a teologia cristã - protestante e católica - foi obrigada a integrar no seu seio conceitos nucleares dessa crítica: todas as grandes teologias do século XX foram elaboradas em diálogo produtivo com as grandes tendências do pensamento filosófico contemporâneo, bastando referir as articulações entre a teologia da esperança de Jürgen Moltmann e a filosofia marxista de Ernst Bloch, a teologia política de Johannes B. Metz e a teoria crítica, a teologia da libertação de Gustavo Gutiérrez e o marxismo, a teologia secular de Harvey Cox e o neopositivismo lógico e a teologia do Novo Testamento de Rudolf Bultmann e a ontologia de Heidegger, para comprovar essa espécie de parasitagem conceptual ou anexação teológico-filosófica. Ao contrário do que se pensa, a teologia enquanto "racionalização do dogma" (Max Weber) não é um empreendimento estranho à Filosofia, podendo ser definida como discurso filosófico sobre Deus. O facto das novas teologias terem optado preferencial e predominantemente pelo diálogo aprofundado com a filosofia de Marx é deveras sintomático: cristianismo e marxismo não são dois "corpos teóricos" estranhos um ao outro, como demonstrou Ernst Bloch ao explicitar com recurso às correntes quentes do misticismo hebraico-cristão e aos entre-mundos da própria filosofia a emergência do ateísmo no seio teórico e histórico do próprio cristianismo, convertendo assim a famosa inversão de Feuerbach numa tese política revolucionária. (A teologia cristã não pode rejeitar em bloco o marxismo sem se rejeitar a si mesma: o marxismo é, de certo modo, cristianismo politicamente pensado!) A viragem antropológica da Filosofia posterior a Hegel (W. Pannenberg) marcou profundamente a teologia: a ideia de Deus como forma alienada da auto-consciência humana, explicada por Feuerbach como a projecção num céu imaginário da representação que o homem tem da sua própria essência humana - verdadeira e infinita, teve como efeito teórico a explicitação dos conteúdos antropológicos da teologia, a partir da figura humana-divina de Jesus Cristo. Que a cristologia seja antropologia fundamental não levanta dúvidas a quem leu atentamente as obras de J. Moltmann, Karl Rahner, Karl Barth, Paul Tillich, Bruno Forte, Juan Alfaro, W. Kasper, E. Schillebeeckx, W. Pannenberg, ou Hans Küng, para só referir estes teólogos. Mas o impacto da antropologia sobre a teologia ultrapassa o próprio domínio da cristologia. Enquanto religião da esperança o cristianismo é estruturalmente antropológico: «A teologia cristã funda a sua relevância na esperança no reino do Crucificado, tomando parte activa nos "sofrimentos deste mundo", fazendo seu o grito dos oprimidos e enchendo-o de esperança na libertação e na salvação» (J. Moltmann). A theologia crucis (estaurologia) esboçada por Lutero converte-se com Moltmann em teologia da libertação que rejeita qualquer conhecimento de Deus que não tenha como seu fundamento Jesus Cristo Crucificado. Arrancar a Cruz - o Deus Crucificado - ao esquecimento é despertar para a tarefa política urgente de quebrar a continuidade repressiva da história dos vencedores.

Para iluminar as antropologias subjacentes aos textos bíblicos, reconduzo para estes dois textos que elucidam as estruturas antropológicas fundamentais do Antigo Testamento (Walther Eichrodt, G. von Rad), a saber o homem como ser necessitado, o homem como ser efémero, o homem como ser fortalecido e o homem como ser pensante:

2. Antropologia do Antigo Testamento: o Ser do Homem (2). (Photo: Sé-Catedral do Porto.)

J Francisco Saraiva de Sousa

15 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Esta frase de Marx tem sido usada para reforçar o seu humanismo. Porém, ainda não foi bem compreendida..., até porque a sua parte final ironiza com o alargamento dos direitos aos animais. Falar de direitos dos animais é tratá-los como homens, ao mesmo tempo que rebaixa os últimos.

Espero que o Ministro das Finanças do governo Passos Coelho não invente novos impostos que façam dos cães - homens. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Porém, cobrar impostos às pessoas qu têm animais domésticos pode ser terapêutico! :)

MV disse...

Para que fosse possível cobrar impostos aos detentores de animais domésticos, seria necessário que no nosso país, existisse uma lei que obrigasse ao registo dos últimos. Só assim seriam identificados os donos e aplicada a tributação. A lei seria duplamente benéfica,uma vez que, além de aumentar as receitas do Estado, obrigaria a que as pessoas fossem mais conscientes e responsáveis quando adquirem/adoptam o seu animal de estimação. A adopção de um "pet" passaria a ser um gesto consequente do amor que se tem pelo mesmo e não um acto inconsequente e imponderado, que na maioria dos casos resulta em negligência e abandono. Bravo!! Venha ela...a lei da tributação dos pets!! Comove-me a generosidade e a grande visão, que o autor do blog tem dos problemas que nos afligem a todos!!! Obrigada!! :))

MV disse...

És um docinho de pessoa!! :D

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

:)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Nice, afinal apreciaste a ideia de responsabilizar o homem pela criação, como diz Moltmann em O Deus na Criação! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Margarida: Moltmann nasceu em 1926 e foi professor de teologia dogmática na universidade de Tubinga. Além de ter criado a teologia do Deus Crucificado a teologia da esperança, escreveu Deus na Criação, onde apresenta a doutrina ecológica da criação. Antes tinha escrito Trindade e Reino de Deus - uma doutrina social da Trindade. Com está próximo da filosofia da esperança de Bloch, faz uma crítica do domínio da natureza na sequência da nova filosofia da natureza.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Porém, Hans Jonas elaborou o princípio da responsabilidade que responsabiliza o homem pela criação. Mas qualquer uma destas perspectivas não permite falar de uma ética animal: é aqui neste terreno que critico o conceito de libertação animal.

MV disse...

Muito grata pelos seus esclarecimentos, professor! Veja se me ajuda no tal dilema, no meu problema real, please!! :))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É preciso ter coragem e dizer Não - não vejo necessidade de uma desculpa se o teu desejo é não-ir.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É daqueles problemas que só a própria pessoa envolvida pode resolver - eu estou fora de contexto. Diz que preferes ficar a ler um livro ou a concluir a sua leitura...

MV disse...

Obrigada, Senhor Professor:) Provavelmente e se não me faltar a coragem, assim farei!!

MV disse...

Tentarei ser muitooooo assertiva, Professorinho!!! :)

MV disse...

Já está!!! É sempre constrangedor fazê-lo, até pq não há nenhuma razão para isso. Bem, há a que eu penso que há, mas da qual n me posso socorrer, para n correr o risco de parecer convencida. Não importa agora. Fiz o que senti ser melhor para mim. Não posso escolher e decidir tudo, mas posso escolher e decidir algumas coisas. Obrigada pelo advice, Professor! :))

MV disse...

Que razão te fez apagar a janela que editei no mural?