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Franz Marc: Blue Horse, 1911 |
«A exibição brilhante desses exilados - Albert Einstein, Thomas Mann, Erwin Panofsky, Bertold Brecht, Walter Gropius, George Grosz, Wassily Kandinsky, Maz Reihardt, Bruno Walter, Max Beckmann, Werner Jaeger, Wolfgang Köhler, Paul Tillich, Ernst Cassirer - persuade a idealizar Weimar como única, uma cultura sem pressões e sem débitos, uma verdadeira idade do ouro. A lenda de Weimar começa com a lenda dos "anos dourados", a década de "vinte" (do século XX). Mas edificar esse ideal sem defeitos é trivializar as realizações da Renascença de Weimar e menosprezar o preço que ela teve de pagar por elas. A grandeza característica da cultura de Weimar desenvolveu-se, até certo ponto, a partir das suas criatividade e experimentação exuberantes; mas muito dela era ansiedade, medo e uma crescente sensação de condenação. Com alguma justiça, Karl Mannheim, um dos sobreviventes, gabava-se, pouco antes da sua renúncia, de que os anos futuros olhariam para trás para Weimar como uma nova era de Péricles. Mas foi uma glória precária, uma dança à beira do abismo. A cultura de Weimar foi criação de forasteiros, impelidos pela história para o seu interior, por um momento curto, vertiginoso e frágil.» (Peter Gay)
Tudo o que amo nesta vida é uma criação da Cultura de Weimar: as diversas tendências da filosofia contemporânea, com especial destaque da teoria crítica da Escola de Frankfurt, o expressionismo na pintura e na poesia, a grande literatura realista alemã, a teoria da relatividade de Einstein, a mecânica quântica, a psicanálise de Freud, o teatro de Weimar, a social-democracia, a Nova Objectividade, o cinema, a grande música, enfim a escola moderna de arquitectura e design, a Bauhaus. A República de Weimar (1919-1933) durou apenas quatorze anos e, nesse curto espaço de tempo, produziu uma cultura impressionante que marcou, para o bem e para o mal, o destino do Ocidente. A 24 de Março de 1933, a República de Weimar - a primeira democracia parlamentar da história da Alemanha - sofreu o seu golpe de misericórdia: a Câmara de Deputados (não-representativa) conferiu a Hitler plenos poderes. No dia seguinte, o diário nazi Völkischer Beobachter escreveu que «O sistema parlamentar capitula diante da nova Alemanha! Um grande empreendimento começa! Chegou o dia do Terceiro Reich!» No mesmo ano, a 27 de Maio, logo após os nazis terem tomado o poder, Heidegger fez um discurso inaugural como reitor da Universidade de Freiburg: «A Universidade alemã mantendo-se frente a tudo e contra tudo, não é outra coisa do que a vontade que quer em comum a sua essência em conformidade com a origem. A Universidade alemã é para nós a Escola Superior que, a partir da ciência e graças à ciência, pretende educar e disciplinar os dirigentes que velam pelo destino do povo alemão. O querer que quer a essência da Universidade alemã quer ao mesmo tempo a ciência, na medida em que quer a missão historicamente espiritual do povo alemão como povo que se reconhece no seu Estado. É preciso que ciência e destino alemão acedam juntos - na vontade de essência - ao poder. E consegui-lo-ão, e só o conseguirão, se nós - corpo de mestres e corpo de alunos - em primeiro lugar fizermos face ao destino alemão na sua extrema urgência». Se a hermenêutica subtil do discurso do reitorado pode encobrir o envolvimento nazi de Heidegger, as outras alocuções proferidas não deixam dúvidas quanto ao seu envolvimento. Com efeito, uma alocução proferida a 17 de Maio de 1933 revela a falsidade dessa hermenêutica: «O chanceler do Reich, nosso grande dirigente, acaba de falar. Às outras nações e povos cabe agora decidir. /Nós decidimo-nos. Resolvemos tomar o caminho difícil da nossa história, aquele que é exigido pela honra da nação e pela grandeza do povo. /Decidimo-nos, e sabemos o que essa resolução supõe. Implica duas coisas: a disponibilidade para ir até aos limites do possível e a camaradagem até ao último extremo. É numa tal resolução que vamos agora voltar ao trabalho. Ainda mais uma vez: que todo o trabalho deste semestre - grande ou pequeno - se faça sob este signo: disponibilidade e camaradagem. /Ao nosso grande dirigente Adolf Hitler um Sieg Heil alemão». Não vale a pena tentar colocar Lenine e Hitler no mesmo plano para branquear o nazismo e o envolvimento nazi de Heidegger. Lenine faz parte de outra tradição que não tem nada a ver com o totalitarismo. Na sua obra A Crise da Social-Democracia, Rosa Luxemburgo falou da sociedade burguesa nestes termos enfáticos: «Porca, desonrada, patinhando no sangue, coberta de lama - é assim que se apresenta a sociedade burguesa; é assim que ela é. Não quando, impecável e virtuosa, mima a Cultura, a Filosofia e a Ética, a Ordem, a Paz e o Estado de direito - mas sim enquanto monstro feroz, enquanto bacanal de anarquia, enquanto miasma mortal para a cultura e a humanidade: é assim que ela põe a nu a sua verdadeira face». E, a propósito de Luís-Napoleão Bonaparte, Engels já tinha mostrado que, em condições favoráveis, «o sufrágio universal pode ser transformado em instrumento de repressão das massas». A tomada do poder por Hitler numa república sem republicanos veio confirmar a tese sábia de Engels.
O objectivo deste texto não é fornecer uma interpretação da República de Weimar, mostrando como as suas contradições internas ditaram a sua própria derrota, tarefa que já levei a cabo em escritos de juventude quando alguns dos meus colegas nazis me acusavam de ser "judeu" (sic). Mas antes de passar às referências bibliográficas, o objecto deste texto, vou apresentar algumas teses "dogmáticas" sem as demonstrar. Reparem nesta sequência de acontecimentos: Alemanha Imperial > Primeira Guerra Mundial > Derrota Humilhante da Alemanha > República de Weimar > Ascensão do Nazismo > Segunda Guerra Mundial. Agora confrontem-na com esta sequência de acontecimentos portugueses: Monarquia > Revolução Republicana > Primeira República > Ditadura (Segunda República) > 25 de Abril > Terceira República. O confronto permite definir o atraso estrutural e histórico de Portugal. A Primeira República Portuguesa não teve o brilho da República de Weimar, mas ambas foram derrotadas por movimentos totalitários: o nazismo na Alemanha que mergulhou a Europa na Guerra, e o salazarismo em Portugal. E hoje, à medida que a Europa se desagrega, caminhamos na direcção de um novo totalitarismo: os alemães recuperam os seus sonhos imperiais e os portugueses, burros como são, anseiam pela chegada de um novo ditador. Detecta-se facilmente a existência de um ciclo entre democracia e ditadura. Na Europa, este ciclo assume a forma de um ciclo entre social-democracia e totalitarismo, sendo o totalitarismo uma experiência de Direita. Até aqui nada mais fiz do que explicitar uma ideia avançada pela Escola de Frankfurt, mas, na peugada de Walter Benjamin, quero ir mais longe, responsabilizando a própria social-democracia pelas suas derrotas periódicas. A derrota da República de Weimar e a actual desagregação da Europa obrigam-nos a criticar severamente a social-democracia. Face a estes acontecimentos, não podemos continuar a defender a social-democracia: a Esquerda deve regressar aos seus textos originais e pensar um novo projecto político que anule de vez os erros da social-democracia como projecto político. A social-democracia não tem, objectivamente, futuro: ela nada mais é do que a outra face de um mesmo mito - a ideia de progresso - que alimenta a gula do capitalismo. De certo modo, os grandes triunfos do capitalismo foram alimentados e promovidos pela social-democracia. Enterrar a social-democracia, a grande aliada do capitalismo, deve ser a primeira tarefa a ser realizada pela nova Esquerda revolucionária que não pode confiar nas massas. O Ocidente já não está sozinho no mundo e a nova Esquerda deve saber usar a ansiedade e o medo que isso gera nas massas para revitalizar o Ocidente, preparando-o para uma nova fase heróica: a reconquista do mundo. Ao recuperar a sua própria tradição teórica e histórica, a nova Esquerda está a recuperar e a resgatar toda a tradição ocidental. Este duplo-resgate, sendo um único e mesmo resgate, priva o totalitarismo da sua base de apoio de massas. A reunificação da Esquerda é fundamental para levar a cabo esta tarefa de tentar evitar o advento do novo totalitarismo. Meus amigos de Esquerda: palavras de ordem, como, por exemplo, liberdade, justiça, igualdade, solidariedade, não movem as massas em períodos de insegurança extrema. Aliás, elas nem sequer deviam constar na agenda política de Esquerda, cuja experiência social-democrata mostra o seu fracasso total. Enquanto não mudar radicalmente o seu vocabulário filosófico e político, a Esquerda está condenada a produzir periodicamente a sua própria derrota. Esta crise profunda que ameaça o destino do Ocidente deve constituir uma nova oportunidade para a Esquerda corajosa que ainda ousa sonhar com o resgate de toda a história do mundo. O que está em jogo neste mundo global não é o modelo social europeu, mas sim o próprio destino do Ocidente. Não há escolha entre o modelo social europeu e o futuro do Ocidente: a prioridade é garantir o domínio ocidental, o resto pode ser sacrificado. Grande Política é aquela que tudo faz para garantir o domínio ocidental, sem temer o recurso à guerra para o conseguir. Mas há outra via a seguir: operar de modo inteligente recuos sociais, económicos, políticos e culturais. Muitas vezes as pessoas pensam que os recuos sociais implicam retrocesso civilizacional, mas este pensamento está errado: a ideia de progresso é que conduz não só ao retrocesso civilizacional, mas sobretudo à catástrofe. Abandonar a ideia de progresso implica deixar de colonizar o futuro com projectos de paraísos terrestres. Um ser mortal não pode sonhar com nenhum tipo de imortalidade: a aventura humana está condenada à destruição. Nada, absolutamente nada, neste mundo caduco, está a salvo da destruição e da morte.
Referências bibliográficas:
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2. Lionel Richard, A República de Weimar.
3. Ludwig Dehio, A Alemanha e a Política Mundial no Século XX.
4. Erich Fromm, Fuga da Liberdade.
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7. Herbert Marcuse, Razão e Revolução.
8. Franz L. Neumann, Behemoth: A Estrutura e a Prática do Nacional-Socialismo.
9. Arthur Rosenberg, O Nascimento da República Alemã, 1871-1918.
10. Carl E. Schorske, A Social-Democracia Alemã, 1905-1917.
11. Gustav Stolper, A Economia Alemã, 1870-1940.
12. Georg Lukács, A Destruição da Razão.
13. Wilhelm Reich, A Psicologia de Massas do Fascismo.
14. Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo.
15. Kurt Sontheimer, Pensamento Anti-Democrático na República de Weimar: As ideias políticas dos nacionalismos alemães entre 1918 e 1933. Excelente.
16. Ralf Dahrendorf, Sociedade e Democracia na Alemanha.
17. Robert Michels, Partidos Políticos: Um estudo sociológico das tendências oligárquicas da moderna democracia.
18. Armin Mohler, A Revolução Conservadora na Alemanha 1918-1932.
19. Leonard Shapiro, As Origens do Absolutismo Comunista.
20. Georges Goriély, Hitler Toma o Poder.
21. Allan Bullock, Hitler ou os Mecanismos da Tirania.
22. Ernst Nolte, O Fascismo na sua Época.
J Francisco Saraiva de Sousa