terça-feira, 15 de novembro de 2011

Prós e Contras: Quem decide os medicamentos que tomamos?

O debate Prós e Contras (14 de Novembro) foi uma sessão de pugilismo entre o Bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, e o Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, Carlos Maurício Barbosa, com a autoridade burocrática do Presidente do Infarmed, Jorge Torgal, a ser alvo da suspeita crítica. Tudo isso tendo como pano de fundo a lei de prescrição por denominação comum internacional (DCI): a prescrição médica por princípio activo que, nas farmácias, pode ser trocado por um genérico à escolha do farmacêutico, em função da disponibilidade financeira do doente. Ambos os bastonários afirmaram representar o ponto de vista do doente, mas com uma diferença abismal: o médico está mais próximo do doente do que o farmacêutico e, sobretudo, neste caso em particular em que Carlos Barbosa e Jorge Torgal tomaram o partido do governo neoliberal de Passos Coelho, cuja política da saúde (sic) visa mais a poupança do que a qualidade dos cuidados médicos. José Manuel Silva adoptou a atitude correcta: a suspeita crítica. Pouco importa que a instituição dirigida por Jorge Torgal siga as regras impostas pelas organizações europeias: o facto de não divulgar os dados de biodisponibilidade não abona a seu favor. Procedimentos burocráticos não são procedimentos científicos e, o que é deveras importante salientar, em última análise, não há decisões científicas. Usar a ciência para justificar medidas burocráticas ou comerciais é um atentado contra o espírito científico. Sem uma filosofia da saúde, não há verdadeiramente política da saúde: o actual governo não tem uma política de saúde. Cortar nas despesas do sistema de saúde não constitui uma política da saúde, e não adianta dizer que este projecto de lei devolve ao doente a decisão final. Com a miséria crescente incrementada pelas políticas neoliberais, o doente é forçado a escolher os medicamentos mais baratos, os genéricos, mesmo que o seu médico lhe tenha dito que a sua eficácia terapêutica seja menor do que a do medicamento de marca equivalente. Em situação de pobreza, não há autonomia do doente: o governo está a criar uma clivagem entre dois serviços de saúde, um para os ricos que preferem os medicamentos de marca, como é evidente, e outro para os pobres que não têm outra alternativa a não ser os genéricos mais baratos do mercado. Neoliberalismo significa empobrecimento e, no que se refere à saúde, morte precoce por falta de cuidados médicos excelentes e de tratamentos adequados. Como já demonstrei noutras ocasiões, é necessário introduzir a disciplina de Filosofia Médica na educação médica, criando um Departamento Multidisciplinar capaz de orientar os médicos no campo da política da saúde na sua articulação com todas as outras políticas sectoriais: o exercício da crítica é uma actividade filosófica que se adquire quando se aprende a olhar para a saúde no seu contexto social mais vasto. Sem filosofia médica não podemos elaborar um pensamento médico capaz de zelar pelos interesses do doente num mundo capitalista que fez da saúde um negócio lucrativo. A Filosofia enquanto crítica da ideologia ajuda a desmistificar os interesses de classe e de corporação que movem o projecto neoliberal, cuja finalidade última é desmantelar o Estado Social, começando desde logo por favorecer o aumento da taxa de mortalidade. O neoliberalismo é profundamente necrófilo e as suas colorações tecnocráticas facilitam a tomada de decisões terroristas que visam executar o extermínio dos mais desfavorecidos e dos pobres. 


A discussão girou basicamente em torno dos medicamentos de marca versus genéricos. Convém salientar desde já que a Ordem dos Médicos não é contra a prescrição de genéricos: o mercado de genéricos estabeleceu-se em Portugal em 2002 e, desde então, tem estado em crescimento. Em nome da promoção do mercado de genéricos, Carlos Barbosa ridicularizou a metáfora do "Bacalhau à Brás" usada por uma médica de hipertensão para diferenciar os medicamentos de marca dos genéricos, afirmando que os médicos não sabem do que falam. Mas podemos substituir essa metáfora por outra imagem: a do mercado da arte, onde o original - o medicamento de marca - vale mais do que as suas cópias ou reproduções - os genéricos. Se uma reprodução técnica perde a aura da obra de arte original, o genérico perde a eficácia terapêutica do medicamento de marca, cujo valor inclui a investigação clínica necessária para o testar. Medicamentos de marca e genéricos não são rigorosamente equivalentes, no sentido de serem "iguais" na sua composição molecular e na sua eficácia clínica, como demonstraram os médicos presentes neste debate: os genéricos tendem a distanciar-se dos medicamentos de marca, embora utilizem o mesmo princípio activo. Diversas "medidas" permitem avaliar esse distanciamento, como por exemplo a bioequivalência (usada para comparar as biodisponibilidades de dois medicamentos considerados equivalentes) e a biodisponibilidade (a ferramenta fundamental da farmacocinética que permite avaliar a eficácia clínica do medicamento). Os doentes não possuem conhecimentos farmacológicos, médicos e estatísticos - quem sabe o que é um intervalo de confiança! - suficientes para avaliar estas diferenças de fabrico, de formato e de composição (os excipientes utilizados e as quantidades do princípio activo, por exemplo): os médicos e os farmacêuticos devem ajudar o doente a decidir, mas para o fazerem precisam ter acesso a informação não disponibilizada pelo site do Infarmed. Como é que o bastonário da Ordem dos Farmacêuticos justificou os preços mais baixos dos genéricos? Carlos Barbosa definiu o genérico como o "mesmo" (sic) medicamento sem o custo da investigação clínica, para explicar a diferença de preços entre medicamentos inovadores e genéricos. Mas quando acusou a Ordem dos Médicos de ser contra os genéricos, criticando primeiro a sua qualidade, depois a bioequivalência e agora a cor e o formato dos comprimidos, esqueceu que os médicos não lucram nada com a venda dos medicamentos: a preocupação fundamental dos médicos é zelar pela saúde dos seus doentes, sejam eles pobres ou ricos, sem deixar que a última palavra seja dada aos farmacêuticos, que - esses sim! - vivem da venda dos medicamentos. No entanto, embora seja evidente que Carlos Barbosa alinha politicamente com as políticas neoliberais do actual governo, não lhe quero atribuir uma conduta de má-fé, até porque a sua definição de genérico evidencia a clivagem social existente: os portugueses ricos tratam-se com medicamentos de marca, enquanto os portugueses pobres são forçados a consumir genéricos baratos, muitos dos quais não foram testados. Ou seja: o crescimento do mercado de genéricos - muitos dos quais importados da Índia ou da China - resulta do empobrecimento dos europeus. Na verdade, não há escolha: doravante, o consumo generalizado e extensivo de genéricos pode ser usado como índice do empobrecimento geral de Portugal.

J Francisco Saraiva de Sousa

10 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Termino amanhã, pk estou cheio de sono. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Está concluído!

Cláudia disse...

Olá.
Permita-me discordar quando afirma que os médicos não ganham nada com a venda de medicamentos. Ganham sim, e muito mais do que as pessoas possam pensar! Posso arriscar dizer até que esta "gerra" toda é fortemente impulsionada pelas regalias todas que os médicos vão deixar de ter uma vez que com esta medida vão acabar certos "acordos" com indústrias farmacêuticas para receitarem um determinado medicamento. Desengane-se quem pansa que a farmácia ganha mais ou menos por vender um medicamento de marca ou um genérico!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá Cláudia!

Sim, sei que isso também é verdade, infelizmente!

Unknown disse...

Caro J. Sousa

Permita-me fazer algumas clarificações.
Antes de mais, não é ao farmacêutico que cabe a escolha da marca do medicamento a dispensar, mas sim ao utente. Ao farmacêutico, bem como ao médico, cabe informar, para que o utente tome a decisão que mais lhe convém. Como aliás refere mais à frente.
Desta forma, a divulgação da biodisponibilidade no momento de aprovação de cada genérico poderia ser feita, mas não vejo que utilidade teria, uma vez que a compliance com as guidelines internacionais é suficiente para a garantia da bioequivalência. Como deve ter ouvido o Prof. Dr. José Morais referir, a diferença entre genéricos nunca será tão grande como o Dr. José Manuel Silva queria fazer crer. Nem todos são obrigados a saber de farmacocinética, desde não a utilizem para definir situações importantes.
Por outro lado, a assumpção que o uso de genéricos representa uma diminuição na qualidade na prestação de cuidados é totalmente infundada, quando olhada sem preconceitos e de uma forma informada.
Deixe-me também dizer que a sua comparação do processo de criação artística com o processo de desenvolvimento de um medicamento não faz qualquer sentido. Porque o processo de desenvolvimento de um medicamento é produção de conhecimento, que fica acumulado e pode ser eficazmente partilhado, quando a patente do medicamento originador cai. Pelo contrário, na criação artística, o imitador não terá uma sensibilidade igual à do autor. Uma comparação mais apropriada seria se eu fizesse copy-paste do seu texto, e substituísse algumas palavras por sinónimos, com a manutenção total do seu conteúdo conceptual, surgindo nos créditos "adaptado de J Francisco Saraiva de Sousa".
Falta ainda referir que, regra geral, e a não terem seguimento as propostas de alteração das margens das farmácias, estas lucram menos com a venda de genéricos que com medicamentos originadores, pela simples razão que os genéricos são mais baratos e as margens são fixas. Isto exceptuando os casos em que existem condições comerciais particularmente favoráveis com o laboratório.
"são forçados a consumir genéricos baratos, muitos dos quais não foram testados". Huh? Onde é que viu isso?
Por último, grande parte dos genéricos que encontra na farmácia são produzidos em Portugal, por empresas portuguesas. Mesmo que as matérias primas venham do exterior, têm que obedecer aos mesmos critérios de qualidade que as dos medicamentos inovadores.

Espero ter sido esclarecedor.

Abraços

Marcos

P.S.: Deixarei de pagar os meus impostos porque suspeito criticamente que o Estado não está a gastar o dinheiro no que prometeu.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado pelo seu comentário!
É bom haver diversas perspectivas sobre o mesmo assunto. Há uma extensa bibliografia sobre os genéricos que deveria ser discutida. A minha crítica tem uma dimensão social e política: nisso reside a sua novidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A Reforma Hospitalar proposta pelo actual Ministro da Saúde vai ao encontro desta minha preocupação - infelizmente.

frank disse...

"Usar a ciência para justificar medidas burocráticas ou comerciais é um atentado contra o espírito científico"

Santa ignorância.

Para além disto, o teu texto está cheio de demagogia e suponho que tu tens consciência disso

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ignorância é identificar ciência e burocracia. E a demagogia nasce dessa identidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Antes de falares, devias procurar saber como se traça uma linha de demarcação entre o científico e o ideológico.