quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Desconstrução da Cultura Portuguesa

«Portugal é para os Portugueses mais uma mátria que uma pátria (uma oposição de palavras inventada pelo padre António Vieira). A mátria é a terra de origem, dá leite e a criação materna: é a cultura ao nível da afectividade. A pátria ensina padrões ao nível das relações com o exterior, que é também o nível propriamente intelectual. /Os Portugueses comportam-se como um povo que teve mãe, mas é órfão de pai, o que historicamente até se poderia explicar de uma maneira positivista pela emigração maciça dos chefes de família durante a maior parte do tempo da nossa história. E esta explicação poderia ter desenvolvimentos psicanalíticos. /Mas preferimos outra hipótese, que aliás não exclui a anterior. O "pai" da gente portuguesa era representado pela "Espanha", no antigo significado de pátria comum de todos os povos ibéricos; dela nos vinham os padrões de civilização ao nível intelectual. A "mãe" era a região onde se falava o galego-português, ninho dos valores afectivos. Desde que Portugal rejeitou a paternidade hispânica, a família ficou precocemente amputada. /O aldeanismo liga-se com o apego carnal à terra e é um complexo gerado pela criação sem doutrina. O sebastianismo é um sentimento de orfandade combinado com a expectativa do regresso do pai. Há algo inacabado e até de amputado na nossa cultura, uma espécie de infância para além do termo, cujo mais recente exemplo é o pós-25 de Abril. E foi isso, talvez, que nos levou a procurar outro "pai" além-Pirenéus, que é desde o século XVIII a França. /Resta saber se ela pode desempenhar essa função, harmoniosamente, num povo que está visceralmente fora da mentalidade ocidental». (António José Saraiva)

Já esbocei esta hipótese em chave psicanalítica, de modo a mostrar que Portugal é um país de malvados: a hipótese do matricídio não é incompatível com a hipótese do patricídio intelectual insinuada por António José Saraiva, na medida em que explica o facto de Portugal ser órfão de pai, sem ter necessidade de nomear a matriz hispânica e de suspeitar da ocidentalidade da cultura portuguesa. A História de Portugal pode e deve ser lida em chave psico-patológica: a maldade dos portugueses explica a sua indigência intelectual. Mas, como a malvadez dos portugueses é um facto demasiado evidente, prefiro esboçar a filosofia da desconstrução da História de Portugal e, neste caso em particular, da cultura portuguesa. A desconstrução que tenho em vista, pouco tem a ver com a desconstrução derridiana: a desconstrução será entendida como uma forma de resgate levado a cabo a partir de nenhures, isto é, do exílio neste desterro chamado Portugal. Há mundo fora dos textos, e, para alterar esse mundo, é preciso libertar os textos das interpretações oficiais que bloqueiam o salto qualitativo de Portugal. Destruir as interpretações oficiais constitui o momento negativo da desconstrução: confrontá-las com o mundo é desmistificá-las, mostrando que mais não são do que manifestações da ideologia dos vencedores. As interpretações oficiais assentam em mitos dominantes que António José Saraiva definiu como «uma forma de consciência fantasmagórica com que um povo define a sua posição e a sua vontade na história do mundo». Alexandre Herculano desmontou o mito da Cruzada, mas, para dar um sentido à História de Portugal, criou um novo mito, o mito dos concelhos. A desconstrução é um procedimento subversivo que procura descobrir a estrutura de interesses e de poderes que se oculta por baixo das obras visíveis do mundo social, indo do manifesto ao latente: rasgar e demolir as definições oficiais que legitimam o mundo tal como parece ser na sua visibilidade bruta constitui a primeira tarefa da desconstrução, para a qual o mundo não é o que aparenta ser. Mas o desocultamento das ilusões não deve gerar novas ilusões: a crítica da ideologia proíbe a criação de novos mitos. Porém, a crítica da ideologia é movida por um interesse libertador: o mundo não é o que aparenta ser e, acima de tudo, poderia ser diferente do que é. Para um ser mortal como o homem, o mundo não está concluído: o mito da estabilidade é o maior adversário da aventura humana. Afirmar que o mundo não está concluído não é apenas apontar para um futuro que, em última análise, não nos pertence: é, antes de tudo, afirmar que o próprio passado, o objecto predilecto da História, não está concluído e, muito menos, garantido. No fundo, o que pretendo dizer é que só podemos libertar o horizonte do futuro resgatando o passado. O passado resgatado e, deste modo, colocado na clareira da verdade essencial da mortalidade humana, quebra todas as ilusões que o homem projecta sobre o futuro que não lhe pertence. O pensamento do futuro que se liberta do passado precipita a catástrofe final. Do futuro só podemos aguardar a morte. As "faculdades humanas" que o iluminismo dissociou, sacrificando a memória no altar da imaginação, voltam a fundir-se no passado resgatado: agindo sobre o passado, o homem pode libertar o horizonte do futuro. Foi um erro fatal privar o passado de ser, de modo a equipará-lo, numa primeira aproximação, ao futuro, dizendo que o primeiro já não é e que o segundo ainda não é. Privar o presente, o eterno presente, da espessura do passado que o sustenta, é o mesmo que restituir o homem à sua condição meramente animal, fazendo do futuro um prolongamento alargado da sua voracidade destrutiva. O mortal só pode ser sendo o seu passado constantemente resgatado: fora deste âmbito finito as faculdades mentais do homem de nada lhe servem neste mundo condenado fatalmente à caducidade. O que nos adianta desejar se não podemos realizar o nosso desejo? As faculdades humanas entregues ao seu próprio exercício alucinado geram frustração, sobretudo quando os seus "conteúdos mentais" se projectam sobre um futuro desejado. O homem não é aquilo que deseja ser e é isto que significa a finitude. O resgate do passado que liberta o horizonte do futuro, sem no entanto o colonizar com novos mitos, é a única tarefa que um ser mortal e finito pode realizar sem gerar frustração.


Das obras sobre cultura portuguesa destaco as de Hernâni Cidade e de António José Saraiva, nenhum dos quais ousou definir claramente o que entendia por cultura: ambos elaboraram uma História da Cultura Portuguesa sem explicitar uma teoria geral da cultura. A ausência de uma tal teoria é mais perdoável em Hernâni Cidade do que em António José Saraiva, o qual pretendeu ser um historiador marxista da cultura portuguesa. A sua História da Cultura em Portugal foi interrompida quando teve de ir buscar o ganha-pão em França, mas, quando retomou já em Portugal esse empreendimento, foi para o abandonar, substituindo-o pela Cultura em Portugal, onde rompeu com os métodos marxistas da história económico-social, como se a cultura fosse um reino imaterial vindo não se sabe de onde. António José Saraiva não só se desviou da doutrina marxiana das supra-estruturas, como também duvidou da ideia de história da cultura: a sua viragem idealista obrigou-o a encarar a cultura como um reino espiritual a-histórico, conceito nem sempre congruente com a sua abordagem de alguns elementos da cultura portuguesa. Há, portanto, um desfasamento entre as considerações teóricas incompletas tecidas por António José Saraiva e as suas análises culturais concretas: a dissociação portuguesa entre a afectividade e a intelectualidade toma na mente de António José Saraiva a forma de dissociação entre o teórico e o empírico, como se a sua mente intelectual fosse incapaz de disciplinar as suas múltiplas falas, impondo-lhes o rigor do conceito. A obra de António José Saraiva é, toda ela, uma obra dissonante que, além disso, traz a marca da malvadez dos portugueses: o que ele atribui aos portugueses - o sentimento de orfandade - também lhe pode ser atribuído; a sua obra, além de ser órfã de teoria, é profundamente parricida. Não há teoria que resista à indigência cognitiva de António José Saraiva, que, possuído pela loucura, colocou estas questões estúpidas para justificar o desvio teórico da sua obra: «Como é possível estabelecer o nexo necessário entre a economia portuguesa do século XVI e, por exemplo, Camões? E que explicação socioeconómica há para o facto de Fernando Pessoa se ter manifestado no primeiro terço do século XX em Portugal?» Sem o mencionar, Joel Serrão deu uma resposta adequada à segunda questão, destacando a experiência de tédio dos habitantes da grande cidade. Da ideia de História António José Saraiva retém apenas a «sucessão cronológica, aplicável também aos factos do espírito, na medida em que eles se manifestam fenomenalmente». Mas logo a seguir - isto depois de ter falado da mesma essência humana que se manifesta em obras separadas por milhares de anos - recusa o carácter homogéneo de cada época da cultura portuguesa, atribuindo-o à longa duração. É provável que António José Saraiva tenha lido as obras de Georges Duby e de Jacques Le Goff, pelo menos leu a obra de Johan Huizinga que lhe inspirou O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, mas não aprendeu a romper com a concepção do tempo homogéneo: a sua concepção da cultura desvinculada da materialidade das práticas sociais e das suas cristalizações sociais levou-o a conceber uma homogeneidade através da longa duração da formação cultural portuguesa. A "autonomia" que concede à cultura implica aquilo que ele crítica nas obras dos agentes culturais portugueses: a ausência de crítica social. A formação cultural portuguesa é concebida como um todo homogéneo, cujas fases não são suficientemente poderosas para quebrar o complexo de orfandade. António José Saraiva define quatro critérios para periodizar as épocas da cultura portuguesa, a saber: os mitos dominantes, os grupos dominantes (o topo e a base), o dentro e o fora, e as palavras e as coisas. A conjugação destes critérios permite-lhe distinguir na história da cultura portuguesa duas grandes fases: «a que vai até meados do século XVIII, aproximadamente, e a que se segue até à actualidade. Dentro da primeira fase há oscilações e conjunturas. Até à segunda metade do século XIV afirma-se com mais força o sentimento da nacionalidade e é repelida uma tentativa de união política sob a hegemonia castelhana. Daí em diante há uma espécie de rivalidade das duas culturas, mas dentro do mesmo espaço cultural; cada uma pretende ser mais autenticamente espanhola que a outra. Este período dura até 1580, aproximadamente. A partir de então, até à Restauração de 1640, a cultura portuguesa é subalternizada e provincializada. Quanto à segunda grande fase, caracteriza-se por uma tentativa constante de europeização, em que a Europa é confundida com a França. Segundo o fenómeno de geminação que já apontámos, as camadas culturalmente dirigentes de ambos os países voltam as costas uma à outra, e ambas à tradição peninsular, para, independentemente uma da outra, buscarem modelos e valores no Ocidente europeu». Enfim, António José Saraiva menoriza a cultura portuguesa, mantendo-a cativa de um complexo de inferioridade, como demonstrou de certo modo Albert Silbert. Em vez de elaborar o conceito da sua história, António José Saraiva cavou a sepultura da cultura portuguesa, da qual a desconstrução pretende libertá-la, inserindo-a na cultura ocidental e confrontando-a com as suas tendências dominantes. Um ano antes da Revolução de 1820, Almeida Garrett, captando o ambiente no Porto ostensivamente contrário à presença britânica e à administração dos governantes do Reino, escreveu este belo poema (citado por Teófilo Braga, Porto, 1908), com o qual termino esta primeira intervenção na desconstrução da cultura portuguesa:


«Aqui (Porto) o germem,
Aqui os elementos
Escondidos estão, que a vida nova
Hão-de chamar a abastardada espécie
Da corrompida Gente lusitana.
D'aqui, donde houve nome
O velho Portugal, seu nome ainda
Honrado surgirá. Preságio vejo
Na geração crescente ir despontando
As feições renovadas
Com que a antiga família portuguesa
Se distinguia outrora; o brio, a honra,
Os sãos costumes, puro amor da Pátria,
A singela franqueza,
A nobre independência de outras eras,
Ressurgirão daqui. - E então o aspecto
Desta formosa terra, hoje encoberto
De nevoeiros britanos,
Resplenderá com a natural beleza.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Oh! quando te hei-de ver, pátria querida,
Limpa de ingleses (da troika!), safa de conventos...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
E oh! mais que tudo, do estrangeiro odioso
Que no insofrido jugo
Nos rebitou os cravos que abalavam,
E, mercador chatim, do nosso sangue,
Da nossa honra fez tráfico e ganância
Co's bachás do tirano.
Sim, amigo; esta corja odiosa e bárbara,
Opressora da lusa liberdade,
Esta canalha de Albion soberbo
Aqui fixou seu trono,
Pousou seu génio bruto em nossos muros...»


J Francisco Saraiva de Sousa 

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Letónia e Cabo Verde: Bem-vindos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Desviei-me do objectivo visado, mas acho que fiz bem, porque começo a definir um novo cânone crítico. Já estou a caminho...