terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Prós e Contras: O Desafio da Saúde

Escadas do Barredo,
Centro Histórico do Porto
«A medicina, como a economia, é uma criação humana saída dum programa primata. Como a economia, ela está ligada à ideia base da reciprocidade, do acto de dar e de receber. /O antigo modelo primata de cuidar dos outros, passou dum sistema de medicina preventiva para um de medicina curativa: o grupo não abandonou nem a alma nem o corpo, uma vez que estivesse avariado, mas voltou toda a sua atenção de catar, segundo o princípio primata, em direcção a um membro do grupo que estivesse doente». (Lionel Tiger & Robin Fox)


Descer e subir as escadas e a rua do Barredo é um desafio que, quando é cumprido, testemunha a favor do bom estado de saúde de todos aqueles que amam o Porto. O Ministro da Saúde, Paulo Macedo, aceitou o desafio de racionalizar o Serviço Nacional de Saúde, de modo a garantir a sua sustentabilidade. Devo confessar que fui tentado a classificá-lo como mais um ministro destituído de sensibilidade social e humana. Mas, depois de o ter escutado neste debate Prós e Contras (5 de Dezembro), reparei que ele não é um mero reflexo de Passos Coelho e de outros ministros partidários deste governo de Direita: o sadismo do Ministro das Finanças e a insensibilidade afectiva do Primeiro-Ministro são traços que lhe são estranhos. Apesar de não concordar com muitas das medidas da sua política da saúde, não posso acusá-lo de ser inumano ou de ser privado de preocupações sociais com o destino de todos os utentes do Serviço Nacional de Saúde. Neste debate, Paulo Macedo fez questão de afirmar a sua independência em relação ao partido de Passos Coelho (PSD), de resto um partido responsável pela corrupção nacional e pela situação de miséria em que vivemos: a sua missão é, como disse, assegurar os fundamentais do Serviço Nacional de Saúde, atendendo ao essencial desde os cuidados primários até à saúde mental. Para Paulo Macedo, o SNS é sustentável: o corte dos 600 milhões de euros será realizado através da reforma da política do medicamento, da reorganização hospitalar e da redução das horas extraordinárias, entre outras medidas que, segundo o ministro, não ferem o sistema público de saúde. Uma parte significativa do debate foi dedicada ao aumento das taxas moderadoras. Paulo Macedo e Correia de Campos são - como é evidente - a favor do aumento das taxas moderadoras e da sua actualização anual: o único convidado que afirmou ser contra os aumentos das taxas moderadoras foi Daniel Serrão, alegando que as pessoas querem ser atendidas quando estão doentes. Correia de Campos disse que a função das taxas moderadoras era "moderar" a procura trivial e banal. Porém, facto paradoxal!, considera que o valor anunciado das taxas moderadoras é demasiado alto, aproximando o acesso ao SNS do acesso a uma consulta privada. Paulo Macedo rematou esta discussão dizendo que metade da população portuguesa está isenta. E, numa situação de empobrecimento planeado, este número tende a aumentar, o que levou Daniel Serrão a dizer que, afinal, as taxas não moderam nada. Uma incongruência da política de racionalização de Paulo Macedo? Infelizmente, os médicos, os enfermeiros e os doentes não possuem background cognitivo para discutir - igual para igual - as políticas da saúde. A paralisia cognitiva apoderou-se de todo o sistema de ensino universitário: o que hoje temos são analfabetos diplomados, isto é, pessoas incapazes de pensar em termos conceptuais para além do seu pobre e triste umbigo. A universidade é a barbárie cultural que fez de Portugal um país-refém de gente alucinada e de atrasados mentais. A crise antropológica em Portugal atingiu uma tal proporção que já não há elites para resgatar o futuro da pobreza. Portugal está ferido de morte: a sua doença fatal são os próprios portugueses.


Um dia será necessário escrever uma verdadeira História da Medicina em Portugal, mas, para realizar essa tarefa, será necessário elaborar primeiro uma Filosofia da Medicina e da Saúde, o que infelizmente ainda não temos no ensino médico. Ivan Illich teve o mérito de criticar radicalmente a medicalização da vida, colocando no centro da sua filosofia da medicina o próprio doente e os cuidados que deve prestar a si próprio. Paulo Macedo está consciente de que existe um jogo de interesses sem paralelo na saúde e esses interesses responsáveis pelo desperdício foram denunciados por Ivan Illich. No entanto, apesar da pertinência da crítica de Illich, não podemos aceitar as alternativas que esboçou: o doente só pode cuidar de si se for ensinado para tal. Ora, o sistema de educação é um fiasco total: as escolas portuguesas deixaram de ensinar e os cursos relacionados com a saúde não integram nos seus currículos disciplinas filosóficas. Na ausência de uma teoria crítica da medicina e da saúde, torna-se muito difícil debater as políticas de saúde. Daniel Serrão chamou a atenção para o facto da saúde não poder ser reduzida a números, mas a bioética que protagoniza não é suficiente para alinhavar uma política da saúde: o fetichismo dos números só pode ser denunciado a partir de uma Filosofia da Medicina e da Saúde que ouse colocar em debate a natureza - pública ou privada - dos serviços de saúde. Isabel Vaz (Grupo Espírito Santo Saúde) falou em nome dos serviços privados de saúde, mais precisamente da rede paralela, como se estes estivessem imunes à corrupção. A partir dos anos 90, além da rede convencionada que gira em torno do SNS, surgiu a rede paralela, uma aposta dos grandes grupos económicos e bancários portugueses, cujo objectivo é privatizar a saúde parasitando o Estado: a promiscuidade entre o público e o privado gera corrupção, precisamente o esbanjamento que caracteriza a zona de Lisboa. De certo modo, Correia de Campos (ex-Ministro da Saúde) denunciou isso quando recorreu ao relatório da OCDE para mostrar que não houve descalabro nas despesas com a saúde, ao mesmo tempo que acusou o governo de estar a sangrar a saúde. No entanto, e apesar de reconhecer que os custos do mercado privado são muito elevados, Correia de Campos não se opõe à política de saúde de Paulo Macedo, sendo favorável ao aumento das taxas moderadoras (20 euros no caso das urgências polivalentes!). Há, portanto, uma ambiguidade na concepção da saúde de Correia de Campos que se evidencia na utilização do termo mercado para designar os serviços de saúde: mercado privado e mercado público são noções tributárias da mesma noção de mercado de saúde que sacrifica os interesses dos doentes em nome da eficiência numérica e do lucro privado. O fetichismo da saúde numérica reina tanto no seio deste governo neoliberal como no seio da própria oposição. A medicalização da vida converteu a saúde em mercadoria, isto é, algo que se consome e não algo que se faz: aqui reside o núcleo duro de quase todos os problemas da saúde. Daniel Serrão defendeu a ideia de um serviço nacional de saúde de acesso universal, geral e gratuito. Tanto quanto percebi, talvez por ter uma visão interna do sistema de saúde, tanto público como privado, Daniel Serrão sabe que as urgências salvam mais vidas do que os cuidados primários: o facto de ser contra as taxas moderadoras e de considerar que o SNS foi e será sempre um sistema falido evidencia essa perspectiva. O que não entendo é como ele pode confiar na mediação dos cuidados primários, atribuindo aos médicos de família a missão de encaminhar os doentes para a urgência, porque, como todos os doentes sabem, os cuidados primários quase não funcionam, excepto para prescrever medicamentos. Sem uma Filosofia da Saúde, não podemos pensar novas alternativas à tentativa irracional de vedar o acesso dos doentes às urgências. É preciso reformar e repensar o SNS, mas os governantes não sabem quais são as reformas mais adequadas a adoptar, no caso de terem uma perspectiva humanista da saúde, como parece ser o caso de Paulo Macedo. Educar para a saúde pode ser uma das vias a seguir. Meus amigos, apesar do caos aparente, o que tem funcionado bem no SNS são as urgências! Não haverá outra forma de revitalizar o sistema de saúde sem ser a de hierarquizar serviços intermediários? As mediações não serão prejudiciais à qualidade dos serviços prestados? A burocracia foi inventada não para resolver problemas mas para gerar novos problemas, reduzindo as pessoas a números susceptíveis de serem descartados.

J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tenho andado preguiçoso! Deve ser do espírito do tempo! Vou ver se retomo o ritmo perdido, mas agora vou dormir. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Lá por não ter hostilizado o ministro não quer dizer que tenha sido ligeiro! Evitei repetições de outros debates, apenas isso!