domingo, 18 de novembro de 2007

Notas sobre Burocracia

Coube, efectivamente, a Max Weber apresentar uma teoria mais elaborada da burocracia, a qual tem dominado os estudos sobre o fenómeno burocrático (Michel Crozier) e, muitas vezes, foi usada para criticar o socialismo.
Contudo, muito antes de Weber, Hegel viu a burocracia como uma condição essencial para a salvaguarda do Estado soberano. Para Hegel, só um Estado forte e «autoritário» pode assegurar a manutenção da sociedade capitalista, fazendo prevalecer o universal acima dos interesses particulares divergentes. O instrumento privilegiado do Estado soberano é, segundo Hegel, uma burocracia estável: um corpo de funcionários públicos que, tendo por missão a administração da riqueza pública, deve ser estranho à concorrência económica dos interesses privados.
Esta concepção hegeliana da burocracia é muito musculada: a burocracia é vista como um instrumento do Estado soberano, capaz de assegurar a ordem social, sem permitir que os interesses particulares se sobreponham ao universal. Este conceito musculado de burocracia tem a virtude de colocar o universal acima dos interesses particulares divergentes, de resto uma das missões fundamentais do Estado, mas a solução proposta, um corpo de funcionários públicos estranho à concorrência e aos interesses económicos dos privados, contribuiu para o aparecimento em larga escala do fenómeno da corrupção.
Com efeito, como verificamos actualmente nas democracias ocidentais, esse corpo de funcionários, onde devemos incluir os quadros dos partidos políticos, constitui, como disse James Burnham (1941), uma «classe dirigente» que controla efectivamente os meios de produção, mesmo que não possua os títulos de propriedade. Esta nova classe dirigente ocupa, através de meios pouco transparentes (cunhas, apadrinhamentos, troca de favores, etc.), todos os centros de decisão públicos e privados (empresas, bancos) e é ela e não o proletariado, como acreditava Marx, que está a substituir ou a fundir-se com a classe burguesa.
A «revolução dos managers» foi a designação dada por Burnham a esta mudança social que se tem consolidado ao longo destas últimas décadas em todo o mundo. A democracia tende cada vez mais a formalizar-se, como se observa na construção da União Europeia e no modo como os lideres europeus «conspiram» silenciosamente entre si, abdicando da consulta popular, convertendo-se finalmente numa democracia oligárquica. Ora, as práticas desta nova classe dirigente não são alheias aos interesses privados: o universal é usado nas campanhas eleitorais para conquistar votos e vencer eleições (a hipocrisia da classe dirigente), mas, uma vez conquistado o poder, são os interesses privados que são salvaguardados em detrimento do universal. Aquilo que os membros desta classe dirigente criticavam na URSS ou na actual Federação Russa, a «ditadura da burocracia» (Trotsky) é aquilo que eles representam e protagonizam no chamado mundo livre. Como dizia Lenine, um dos homens que inflectiu internamente o marxismo, ao dar ao partido uma organização sólida e centralizada, antes de morrer: «O nosso pior inimigo interior é a burocracia». De facto, até mesmo os funcionários públicos estão mais preocupados em defender os seus «direitos adquiridos», aliás uma noção muito pouco democrática, e, se possível, engordá-los, do que em servir a democracia política e social.
Hannah Arendt definiu a burocracia como o governo de ninguém, no sentido em que «há muita gente que pode pedir contas, mas ninguém para as prestar, uma vez que "ninguém" pode ser tido por responsável». A obsessão de Arendt pelo Holocausto ofuscou-lhe a visão política e distorceu a sua perspectiva daquilo que, de certo modo, admirava em Marx, mas ambos foram, cada um à sua maneira, cegos em relação ao sentido político da burocracia. A burocracia tem rosto, as classes dirigentes, e tem «ideologia», a do «politicamente correcto», isto é, o chamado «pensamento único». Estes são os nossos inimigos e é na luta contra a corrupção que a política socialista encontra a sua raiz revolucionária e, portanto, a sua razão de ser.
J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

AGRY disse...

Um belo texto que nos prima pela originalidade, optando por um tema muito arredado das mentes dos analistas cá da praça.
Se a memória não me trai Jorge Plekhanov também escreveu sobre o mesmo tema
Abraço
Agry

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Partilho essa admiração por Plekhanov, embora não conheça o texto a que se refere.
Procuro elaborar uma matriz de pensamento capaz de denunciar a corrupção que bloqueia o futuro. Mas não é nada fácil. Precisava de dedicar-me completamente ao pensamento político, mas tenho outros interesses. Quero reler Marx em nova chave... Ideias...
Abraço