quinta-feira, 13 de maio de 2010

Bento XVI no Porto

«Também na Alemanha dos Guilhermes, o centro católico podia sentir-se mais próximo do socialismo democrático do que das forças conservadoras rigidamente prussianas e protestantes. Em muitas coisas, o socialismo democrático estava e ainda está mais próximo da doutrina social católica; em todo o caso, contribuiu para a formação de uma consciência social».
«Se a Europa quiser sobreviver, necessitará de uma nova - certamente crítica e humilde - aceitação de si mesma. O multiculturalismo, que é contínua e apaixonadamente encorajado e favorecido, é, por vezes, sobretudo abandono e renegação do que é próprio, fuga das características próprias. /A Carta dos direitos fundamentais pode ser um primeiro passo, um sinal de que a Europa procura novamente e de maneira consciente a sua alma». (Joseph Ratzinger)
Joseph Ratzinger, o actual Papa Bento XVI, trocou a ordem de prioridade histórica: a doutrina social da Igreja aproxima-se do socialismo democrático e da sua matriz teórica, a primeira a dar voz aos oprimidos e a encarnar a luta pela sua libertação. O pensamento teológico de Ratzinger revela a omnipresença filosófica da teoria crítica tal como foi elaborada pela Escola de Frankfurt - Horkheimer, Adorno ou mesmo Habermas - e da teoria da esperança de Ernst Bloch, sem a qual não pode ser compreendido: a aporia da dialéctica do esclarecimento tende a ser traduzida na tensão entre razão abstracta e fé abstracta, como se a sua teologia visasse reintroduzir no seio do iluminismo aquilo que este expulsou - Deus. O argumento usado por Ratzinger para justificar a necessidade de unir a Europa em torno da Igreja é muito curioso: o mundo melhorou sem Deus? Ratzinger pensa que o mundo se desumanizou a partir do momento em que começou a adorar a razão abstracta, em vez de adorar Deus. Mas não podemos levar à letra esta resposta: o iluminismo trouxe o progresso ao mundo e humanizou a humanidade dos explorados e oprimidos, libertando-a de muitas crueldades e violências senhoriais. Entre o mundo medieval e o mundo moderno, há um salto qualitativo que Ratzinger não recusa de todo: o que Ratzinger recusa é a privatização da fé cristã. O seu desejo não é recuar a um modelo de sociedade pré-moderna, mas recuperar o papel ideológico hegemónico que a Igreja teve no passado: «Somente se fizermos entrar Deus no mundo, a terra poderá de novo iluminar-se e o mundo poderá ser humano». O seu pensamento é muito simples: a essência da política é a justiça e a referência fundamental para a justiça é a mensagem cristã. A teologia de Ratzinger é teologia política conservadora, no sentido de ambicionar legitimar o poder político presentemente instituído na Europa, dando-lhe uma garantia divina.
Desgraçadamente, Ratzinger, que conhece relativamente bem o marxismo, do qual retoma muitos elementos, condena a religião à função alienante de dar ao Estado o seu fundamento religioso: a sua teologia é apologia descarada do poder instituído e da ordem estabelecida. «Ser homem - escreve Ratzinger - recomeça do princípio em cada ser humano. Por isso, não pode existir a sociedade definitivamente nova, progredida e sã, em que esperaram não só as grandes ideologias, mas que também se torna cada vez mais - depois da esperança no além ter sido demolida - o objectivo geral por todos esperados. Uma sociedade definitivamente sã pressuporia o fim da liberdade. Mas, como o homem continua sempre livre, recomeça em cada geração; por isso, deve-se trabalhar sempre e de novo pela forma justa de sociedade nas sempre novas condições. Portanto, o âmbito da política é o presente e não o futuro - o futuro só o será na medida em que a política hodierna deve criar formas de direito e de paz que possam valer também amanhã e favorecer reformas correspondentes que retomem e continuem o que já se alcançou. Mas não o podemos garantir. Penso que é muito importante que se tenham presentes estes limites do progresso e se evitem desculpas falsas e evasivas no futuro» (Ratzinger). Ratzinger retoma da antropologia existencial um elemento estrutural da condição humana para o usar contra o ídolo da revolução - a religião dos intelectuais ou o novo messianismo político, que aplicou a visão teológica de Daniel e a apocalíptica em geral à realidade secular -, sem se aperceber que ele pode ser usado contra o seu próprio argumento. Criar formas de direito e de paz que possam valer no futuro e favorecer reformas correspondentes que retomem e continuem o que já se alcançou - é colonizar o futuro, de modo a garantir que ele seja uma continuação do presente. Se o ídolo do futuro pode ser usado para devorar o presente, como sucede quando os decisores políticos exigem sacrifícios em nome de um futuro constantemente adiado, o ídolo do presente elimina completamente o futuro, fazendo dele uma cópia do presente e esvaziando a esperança do seu conteúdo de aspiração à realização de justiça plena. Um futuro igual ou semelhante ao presente é uma ideia que aterroriza os seres humanos, até porque lhes veda a fantasia diurna: sonhar mundos melhores sem poder garantir a sua realização. Reduzir o âmbito da política ao presente é subordiná-la à economia e, portanto, pactuar com o economicismo que gerou a actual crise económica: não há verdadeiramente política sem uma perspectiva de futuro, isto é, sem o sonho de um mundo melhor. Um homem condenado a viver no presente deixaria de ser um homem humano. Privado da dimensão do futuro e da fantasia que antecipa novos mundos, o homem tornar-se-ia um mero animal. Animalizar o homem é torná-lo dócil à ordem estabelecida: não consigo imaginar nada mais terrível para a humanidade do que este desejo de a descartar do futuro. Sonhar um mundo melhor faz parte da condição humana: o homem utópico sabe que sonhar não é o mesmo que realizar o sonho. Por isso, encara a vida como uma luta permanente pela justiça, porque, neste mundo sujeito à caducidade e à mortalidade, nada está definitivamente garantido, nem sequer por uma suposta ordem divina do mundo. A religião que pretenda garantir o que não pode efectivamente garantir é ópio: o estado de miséria presente consagrado não alivia realmente o sofrimento humano. A Igreja sonhada por Ratzinger pretende servir de mediadora entre o povo e o Estado, usando instituições intermediárias - tais como a família, a escola, os meios de comunicação social - para garantir a reprodução do sistema social estabelecido, no seio do qual a liberdade não faz sentido. O ódio de Ratzinger pela teologia da libertação está justificado: o seu conservadorismo fundamentalista consagra a ordem que sonha com a sua eterna perpetuação - o nosso calvário. Deus não pactua com a crueldade existente: eis o Deus dos oprimidos.
Infelizmente, os portugueses, incluindo os portuenses, não são amigos da cultura: a chamada cultura dos portugueses não deriva do estudo e do conhecimento da cultura exigente da Europa Central, donde provém o Papa alemão, mas de uma tradição retórica que consiste em falar sem saber do que se fala. O discurso em defesa da cultura de Bento XVI não pode ser escutado por ouvintes que sofrem de regressão cultural. Os portuenses e os nortenhos não são excepção: nutrem o mesmo ódio pela cultura autêntica exibido pelos restantes portugueses. No entanto, eles orgulham-se das suas origens e da sua terra natal e procuram de maneira consciente a sua alma azul. O discurso papal da afirmação da Europa no mundo encontra eco nos ouvintes portuenses e nortenhos: o Porto não renega o que lhe é próprio; o Porto rejeita o que lhe é estranho, e o que lhe é profundamente estranho não é a Europa mas o poder central sediado em Lisboa. A negação de Lisboa constitui - num só e mesmo acto - a afirmação de si mesmo no seio de uma nova Europa: o Porto deseja ser cada vez mais Norte da Europa. Bento XVI viajou de Roma para Lisboa, de Lisboa para Fátima e, amanhã, de Fátima para o Porto: o vector vai do Sul para o Norte, como se estivesse a apontar o sentido do desenvolvimento nacional. Os portuenses apoiam essa direcção de desenvolvimento, mas neste mundo metabolicamente reduzido não sei se são receptivos à entrada de Deus no mundo. Actualmente, os homens europeus não trocam a vida fácil, a comida e o conforto pela cultura iluminada pela fé cristã.
J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu sou um teórico crítico - herdeiro da dialéctica de Hegel e Marx: não como qualquer comida que ponham na mesa. Gosto de pensar e antecipar a jogada do outro: sou autodeterminado e odeio o conservadorismo castrador. Não duvido da inteligência intelectual do Papa, mas não o acompanho no seu agir político racional. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estive a ver os debates e jornais da RTP1 e da SicNotícias e chego à minha teoria de que Portugal é um país de malucos: a nossa crise estrutural deve-se à má governação. Erros sucessivos: afundamo-nos. O Mário Crespo deu uns indicadores importantes: o Estado ladrão e as classes dirigentes especialistas no roubo público - ordenados supermilionários que depois dizem ser simbólicos. Em Portugal, o roubo de colarinho-branco é SIMBÓLICO. Ta tudo doente...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O Porto é lindo e monumental: as imagens aéreas são fabulosas. E o Papa já partiu para Roma e fez o trajecto da ponte do Infante - outra imagem bela. O Porto é beleza: precisa de cuidados e de modernização, porque é único.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Aí está um bom investimento público lucrativo: modernizar e embelezar as cidades, mas os nossos políticos nacionais e regionais são culturalmente burrecos. Não têm sensibilidade estética e cultural: são feios e ladrões.