«A razão para termos denominado este campo de psiquiatria - o tratamento da alma - deriva de antigas ideias sobre a alma. A humanidade relutou sempre em contemplar a possibilidade de que a morte significa a nossa total decomposição e desaparecimento. Em vez disso, temos postulado a existência de uma alma ou espírito que invisivelmente habita o nosso corpo enquanto estamos vivos, e que depois da morte do nosso corpo ascende (sob circunstâncias favoráveis) a um lugar melhor. As noções sobre a alma estão, elas próprias, entrelaçadas com a noção de um self, que é visto como o conjunto de tudo o que caracteriza cada um de nós durante a nossa existência. Relacionado às antigas ideias religiosas e filosóficas sobre a alma está o conceito de uma mente, que actualmente definimos - de modo assaz neuro-reducionista - como o conjunto de todas as funções do cérebro.» (Michael H. Stone)
O quadro Angústia de David Alfaro Siqueiros permite-me revisitar alguns textos de psiquiatria editados neste blog: a angústia da mãe do artista exprime o sentimento universal de todos os oprimidos lançados num mundo cruel - um mundo que não os reconhece como seres humanos - que não escolheram. A angústia dos oprimidos é completamente distinta da angústia dos opressores: o que angustia os opressores é a morte; o que angustia os oprimidos é o mundo que lhes nega o reconhecimento e a dignidade da vida. Nos "Fragmentos do Diário de um Visionário", Karl Moritz (1787) pensou a autonomia da estética a partir desta questão crucial: Como podemos justificar um mundo em que a miséria é interminável, em que os homens dominam os homens, e em que o acaso do nascimento decide da pertença de cada novo ser aos opressores ou aos oprimidos? Ora, a resposta de Moritz é simplesmente sádica: A crueldade da história dos opressores justifica-se pelo "efeito agradável" que produz na imaginação do espectador alheio aos acontecimentos vividos pelas vítimas da opressão ou das catástrofes naturais, levando-o a pensar em coisas tão grandes e majestosas, como por exemplo a Guerra de Tróia, os Campos de Concentração nazis, o Cerco do Porto e o Terramoto de Lisboa. Por este motivo, para podermos observar sossegadamente os efeitos sublimes e catastróficos da história dos vencedores, vale a pena "ser infeliz": a autonomia da estética é assim concebida como um modo de justificar sadicamente a crueldade inerente à ordem social vigente: «Nós fizémos um mundo de destruição e observamos agora a nossa obra em histórias, dramas e poemas, com agrado» (Moritz). O acaso do nascimento decide a pertença de cada novo ser a um dos dois grupos - o dos opressores ou o dos oprimidos, lançando-os a todos num mundo que os angustia de modo diferente: aqueles que nasceram oprimidos angustiam-se com a insegurança do seu mundo, enquanto que aqueles que nasceram opressores temem a perda da segurança do seu mundo. Esta diferença social fundamental - a injustiça que está na base da história dos vencedores - ditada pelo acaso do nascimento e pelo sistema de propriedade não pode ser justificada e, muito menos, justificada em termos estéticos. Ao abraçar a atitude estética, Moritz nega a sua própria relação com o mundo da miséria a favor de uma contemplação desinteressada: fora do tempo, longe dos homens que sofrem a opressão e a violência, Moritz coloca-se em face da história dos vencedores como um puro olhar, igualando todas as situações que apreende na indiferença das suas diferenças. Porém, esta visão impessoal que pretende excluir qualquer preferência acaba por assumir um papel político no mundo onde estamos inseridos: a contemplação da destruição produz no seu agente um prazer sádico, mediante a sua identificação com os opressores e os carrascos. A contemplação desemboca assim em acção, que, no caso de Moritz, é acção encarnada e cristalizada em conduta resignada - embora excitante - perante o triunfo dos opressores. As relações concretas com o Outro são relações de conflito: Jean-Paul Sartre sacou o modelo originário dessas relações humanas do conflito metafísico entre o sadismo e o masoquismo. A teoria da alteridade de Sartre, fortemente influenciada pela dialéctica hegeliana do senhor e do escravo, afirma que as relações entre os homens estão inevitavelmente sujeitas a tensões mútuas, porque cada indivíduo, agindo para com os demais indivíduos como um Outro objectivado, rouba-lhes a sua liberdade: as relações entre os homens são formas de conflito metafísico, mediante as quais cada indivíduo tenta superar o outro roubando-lhe a sua liberdade ao objectivá-lo como uma coisa no mundo, ao mesmo tempo que o outro tenta defender a sua própria liberdade impedindo que seja objectivada. Deste modo, as únicas relações possíveis entre os homens são aquelas que tendem para o sadismo e as que se inclinam para o masoquismo, sendo impossível a união entre os homens. «Assim, segundo Sartre, não há dialéctica das minhas relações com o outro, mas círculo vicioso - embora cada tentativa (de roubar a liberdade do Outro) se enriqueça com o fracasso (e a morte) da outra». Apesar de distanciar-se muito do marxismo, sobretudo quando rejeita a noção aristotélica do homem como ser social por natureza, a teoria de Sartre permite ver que a atitude revolucionária de revolta não pode integrar-se no desenvolvimento harmonioso do mundo (Hegel): a revolta não deseja integrar-se no mundo dos opressores; a revolta deseja, em vez disso, explodir no coração desse mundo cruel e quebrar-lhe a continuidade. Foi por isso que Karl Marx definiu negativamente - e não positivamente - a atitude revolucionária do proletariado: os oprimidos não são mostrados como afirmação de si mesmos, mas sim como superação de si mesmos enquanto classe. A submissão masoquista dos oprimidos ao domínio sádico dos opressores deve-se ao facto da sua situação ter sido mistificada de tal modo que não lhes parece imposta pelos homens mas imediatamente dada pela natureza ou por qualquer outra potência - Deus, por exemplo - contra as quais a revolta não teria sentido. A missão da filosofia de Marx é fornecer aos oprimidos ignorantes o meio de transcender a sua situação de submissão pela revolta contra o sistema vigente: a liberdade dos opressores que nega a liberdade dos oprimidos - objectivando-os como se fossem coisas - deve ser negada pela revolta dos oprimidos contra os tiranos. O reconhecimento que liberta da angústia de pertencer ao mundo da morte em vida conquista-se suprimindo os opressores.
(Os oprimidos devem inverter os 10 mandamentos, revoltando-se contra esse "deus capitalista" que lhes diz para não matar os opressores que, no fundo, são os verdadeiros ladrões. Os oprimidos pela crise gerada pela gula dos opressores-ladrões de bolsa devem rejeitar a religião e os seus dois suplementos: a ideologia jurídica e a ideologia moral. Aceitar o direito e a moral é dizer Sim à opressão. Negar o direito e a moral é dizer Não à opressão. Os oprimidos só podem conquistar o reconhecimento se se revoltarem contra os opressores, travando uma luta de vida ou de morte com eles e tratando-os como coisas que devem ser eliminadas: a liberdade conquista-se matando os opressores, internos - as ideologias dominantes interiorizadas, e externos - os tiranos que se apropriaram ilicitamente da terra e dos seus bens. Agora escuta: o oprimido é o zé-ninguém. E pensa: o zé-ninguém, que se endivida para comprar casa e outras coisas, sem ter realmente dinheiro para as adquirir, é um palerma que se alienou de si mesmo e do mundo para alimentar a gula do capitalismo financeiro que o trata como coisa consumidora. Ó zé-ninguém!, ganha juízo e não penses ser aquilo que não és - uma pessoa importante. Saboreia o sangue dos opressores e verás que não precisas de ajuda médica e farmacológica - velhas receitas capitalistas! - para te livrares da depressão. Passas fome e sofres de outras privações materiais? Faz como os ricos e os poderosos: rouba! Humilham-te? Não fiques deprimido: mata aqueles que te humilham! Elimina da tua pobre cabeça a consciência moral que bloqueia o teu desenvolvimento: adora o Diabo! Faz tudo aquilo que os opressores querem que não faças, violando as suas proibições, e verás o que é ser verdadeiramente homem. Mas olha: eu sou o filósofo que, neste momento de ofuscamento e de aperto, nego a Filosofia para te libertar da opressão. Escuta-me e terás uma vida livre! Porém, depois de teres eliminado todos os opressores da terra, eu retomarei a Filosofia, porque já vislumbro o ressurgimento de novos opressores. Com esta provocação devidamente meditada, apenas pretendo chamar a atenção para a ambiguidade fundamental do homem: dado que o plano do inferno e da luta não pode ser definitivamente abolido, a liberdade nunca será dada, mas sempre a conquistar, devendo o futuro ser encarado como revolução permanente.)
J Francisco Saraiva de Sousa
11 comentários:
Algumas pessoas pediram-me para definir a NeuroFilosofia. Ora, há muitas maneiras de definir a neurofilosofia e uma delas já apresentei: qualquer teoria filosófica do conhecimento pressupõe uma teoria do cérebro, que hoje em dia podemos explicitar melhor recorrendo aos dados das neurociências. Porém, esta definição ainda não é suficientemente política: a neurofilosofia deve estudar as teorias da mente-cérebro na sua conexão fundamental com a sociedade e a política, assumindo a forma de uma crítica da ideologia subjacente ao desenvolvimento das ciências do cérebro.
Estou chocado com a estupidez de um tal Murcho: telefonaram-me para ver a porcaria do livro e para o atacar. Aquilo é ridículo: parece uma redacção escolar escrita pela pipi das meias altas! Um horror!
O tal Murcho distingue 4 tipos de liberdade, entre os quais destaca-se pela estupidez a liberdade de estilo de vida. Eis o disparate:
«poder ser casado ou solteiro, ter ou não filhos, viver no campo ou na cidade, vestir jeans ou andar de fato, viver como homossexual ou não, ser religioso ou não. Numa sociedade livre, ainda que uma pessoa não possa, em rigor, escolher ser ou não homossexual, por exemplo, poderá escolher ter ou não um estilo de vida homossexual». ???????
Bem, de facto, há pessoas que escolhem aquilo que são: Palermas. :)
A conclusão é hilariante! O homem nem sequer sabe resumir Popper!
Eis mais uma frase tola do Murcho:
«defender que não há verdades torna impossível defender que a liberdade com base na falibilidade humana, porque, se não houvesse verdades, não poderíamos ser falíveis».
E o que dizer da hipótese de Ego - ele - estar no Porto?! É mesmo burro o homem!
As verdades deste Murcho estão na estratosfera! Que asneirolas consecutivas!
Finalmente, conclui o texto! Ando super-ocupado! :)
(«J'ai décidé d'être ce que le crime a fait de moi». (Jean Genet)
(Para Genet, o destino é um pénis gigantesco: o homem é todo ele falo e o falo torna-se homem. O pan-sexualismo de Genet é pan-moralismo: o universo é sexualizado mas falta-lhe sensualidade. O pénis metálico que persegue Genet não é a carne do pénis mas o seu poder de penetração e a sua rigidez mineral. E o acto sexual é uma cerimónia de submissão: a sexualidade de Genet envolve a sua queda, onde encontra o cadáver do amante.)
(Genet optou pelo papel sexual passivo, de resto bem patente em Nossa Senhora das Flores.
(«O Marquês de Sade sonhava em extinguir os fogos do Etna com o seu esperma. A loucura arrogante de Genet vai ainda mais longe: ele masturba o universo». (Sartre) E o que é o rito filosófico senão cosmofagia?)
(... o cadáver do amante é o cadáver de Jean Decarnin.
Ritos Funerários: Genet narra como transformou o mundo inteiro no cadáver do amante morto e este no seu próprio pénis. Opera uma transubstanciação - apropriações do outro na interminável autodefinição do self.)
Enviar um comentário