quinta-feira, 3 de abril de 2008

Mass Media e Formação do Self

A hermenêutica (Gadamer, Ricoeur, Thompson) acusa a tradição estruturalista, fortemente influenciada por determinadas noções da linguística estruturalista (Lepschy), de ter legado uma "concepção empobrecida do self", segundo a qual o self é visto principalmente como um produto ou [uma] idealização de sistemas simbólicos que o precedem. Assim, por exemplo, a interpelação de Althusser ou as tecnologias do poder de Foucault são conceitos que visam explicar como os indivíduos se tornam sujeitos que pensam e agem de acordo com as possibilidades que lhes são fornecidas pela sociedade. Esta concepção do sujeito é um desenvolvimento teórico anterior ao advento da linguística, estando já presente nos denominados "mestres da suspeita", Marx, Nietzsche e Freud (Ricoeur), alinhados na problemática do anti-humanismo teórico. A linguística traz-lhe apenas novos conceitos, em particular o conceito de que a linguagem é anterior à «constituição do indivíduo». A este propósito, Saussure é peremptório: A língua, por oposição à fala,
«é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, e este, por si só, não pode criá-la nem modificá-la; ela só existe em virtude de um contrato firmado entre os membros da comunidade. Por outro lado, o indivíduo tem necessidade de uma aprendizagem para lhe conhecer as regras; a criança só pouco a pouco a assimila». (…) A língua (…) é social na sua essência e independente do indivíduo». Dado ser «uma herança duma geração precedente», a língua já está constituída quando o indivíduo acede à fase de adquirir a palavra.
Detectam-se nestas palavras a forte presença do pensamento social de Émile Durkheim, embora esta concepção social do self tenha sido sistematicamente elaborada por L.S. Vygotsky, Mikhail Bakhtin e George H. Mead. O estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, de Michel Foucault, de Jacques Lacan ou de Louis Althusser, nada mais faz do que radicalizar a crítica da problemática do humanismo teórico, principalmente a sua noção do Sujeito como Origem e Fim último da "história". A análise não parte de uma suposta "natureza" ou "essência humana": o homem é visto como o portador de determinadas determinações, sejam elas sociais, simbólicas ou biológicas, portanto, como ser carente de responsabilidade. A ideia de consciência constituinte é posta em questão; contudo, quando a linguagem, a sociedade ou mesmo a imaginação (Castoriadis) é colocada no seu lugar, não se abandona a teoria da constituição.
A concepção do self proposta pelo teórico da comunicação social, John Thompson, diverge da abordagem estruturalista e baseia-se principalmente na tradição hermenêutica e, levemente, no interaccionismo simbólico. Nesta perspectiva, «o self não é visto nem como produto de um sistema simbólico externo, nem como uma entidade fixa que o indivíduo pode imediata e directamente captar; muito mais do que isso, o self é um projecto simbólico que o indivíduo constrói activamente. É um projecto que o indivíduo constrói com os materiais simbólicos que lhe são disponíveis, materiais com que ele vai tecendo uma narrativa coerente da própria identidade».
O self é concebido como um projecto simbólico que o indivíduo constrói activamente, recorrendo aos materiais simbólicos que tem ao seu dispor, para tecer ao longo do seu trajecto de vida uma narrativa coerente da sua própria identidade. Esta auto-narrativa modifica-se com o decorrer do tempo, à medida que novos materiais e novas experiências entram em cena e redefinem gradualmente a sua identidade. Como escreve Thompson:
«Dizer a nós mesmos e aos outros o que somos é contar as narrativas — que são continuamente modificadas neste processo — de como chegámos até onde estamos e para onde estamos a ir daqui para a frente. Somos todos biógrafos não oficiais de nós próprios, pois é somente construindo uma história, por mais vagamente que seja, que seremos capazes de dar sentido ao que somos e ao futuro que queremos».
Ora, a noção de self como projecto foi elaborada e desenvolvida por Jean-Paul Sartre na sua obra «Crítica da Razão Dialéctica», onde afirma que «a praxis individual, sempre inseparável do meio que constitui, que a condiciona e que a aliena, é, ao mesmo tempo, a Razão constituinte de si-mesma no seio da História percebida como Razão constituída». É precisamente esta noção de praxis individual que foi criticada tanto por Lévi-Strauss quanto por Althusser.
Thompson parece ter consciência disso, já que afirma que destacar «o carácter activo e criativo do self não é o mesmo que sugerir que ele seja socialmente incondicionado». Apresenta dois argumentos para mostrar que o self é socialmente condicionado: 1) O primeiro argumento diz que os materiais simbólicos que formam os elementos das identidades que construímos são, eles próprios, distribuídos de maneira desigual: os recursos simbólicos não estão disponíveis do mesmo modo para todos e o acesso a eles pode exigir habilidades que somente poucos indivíduos possuam; 2) e, além disso, as maneiras como os indivíduos utilizam os recursos simbólicos na construção do próprio sentido do self dependem, até certo ponto, das suas condições materiais de vida.
Daqui parece resultar, em termos gerais, uma distinção entre dois tipos de self: o self enriquecido dos indivíduos cujas condições materiais de vida possibilitam a disponibilidade e o acesso aos recursos simbólicos, e o self empobrecido dos indivíduos que carecem desses recursos simbólicos. Este é um condicionamento social pouco democrático do self: o self é aquilo que os seus recursos sociais possibilitam ser. Parafraseando Michel Foucault, é como se a individualização fosse máxima do lado em que as condições materiais de vida permitem uma concentração máxima de recursos simbólicos, de habilidades e de acesso facilitado. Neste sentido, a individualização seria socialmente «ascendente», como no Ancien Regime. Ora, uma tal concepção social do self escamoteia concepções mais elaboradas como as de Mead, Bakhtin, Vygotsky e Henri Bergson, em particular o problema da adesão do indivíduo à sociedade e a distinção intrínseca entre o eu individual e o eu social, a qual permite avaliar o carácter subsocializado ou sobresocializado do indivíduo (Goffman). Sem estes conceitos torna-se difícil avaliar o impacto dos mass media sobre o processo de formação do self.
Seja como for, o desenvolvimento dos meios de comunicação teve um profundo efeito sobre o processo de auto-formação do self. Este liberta-se dos contextos de interacção face a face e do "conhecimento local" que os impregna e torna-se cada vez mais dependente do acesso às formas mediadas de comunicação, tanto impressas como electronicamente veiculadas. Como escreve Thompson:
«O conhecimento local é suplementado e, cada vez mais, substituído por novas formas de conhecimento não locais que são fixadas num substrato material, reproduzidas tecnicamente e transmitidas pelos mass media.
«O conhecimento técnico é gradualmente separado das relações de poder estabelecidas pela interacção face a face, à medida que os indivíduos vão sendo capazes de ter acesso a novas formas de conhecimento», aquelas que já não são transmitidas face a face, de geração em geração, através da troca oral, e adaptadas às necessidades práticas da vida.
Deste modo, «os horizontes de compreensão dos indivíduos alargam-se». Dado terem deixado de ser estreitados ou mesmo estrangulados pelos padrões da interacção face a face, esses horizontes «são modelados pela expansão das redes de comunicação mediada. Os mass media tornam-se, nos termos de Lerner, «um multiplicador da mobilidade», uma forma vicária de viajar que permite ao indivíduo distanciar-se dos locais imediatos da sua vida diária».
A abertura a novas formas de conhecimento não local, portanto, global, e a outros tipos de material simbólico mediado, operada pelo desenvolvimento das novas tecnologias da comunicação, «enriqueceu e acentuou a organização reflexiva do self». Este enriquecimento da organização reflexiva do self é perspectivada em dois sentidos:
1. Dado terem acesso às formas mediadas de comunicação, os indivíduos tornam-se capazes de usar um leque amplo de recursos simbólicos para construir o self. Deste modo, o self torna-se cada vez mais organizado como um projecto reflexivo através do qual incorpora materiais mediados a um coerente e continuamente revisada narrativa biográfica (Peter Berger).
2. Graças à expansão dos recursos simbólicos disponíveis no processo de formação do self, os indivíduos são continuamente confrontados com novas possibilidades. Os seus horizontes alargam-se continuamente e os seus quadros simbólicos de referência estão continuamente a mudar. Deste modo, torna-se cada vez mais difícil recorrer a estruturas de compreensão relativamente estáveis que tomam corpo nas tradições orais e se ligam a lugares particulares. Esta organização reflexiva do self é uma característica da vida social contemporânea.
Além destes dois efeitos positivos, o desenvolvimento dos meios de comunicação produz efeitos inquietantes, tanto para os indivíduos como para as comunidades de que fazem parte. John Thompson refere quatro efeitos negativos dos mass media sobre a formação do self: a intrusão mediada de mensagens ideológicas, a dupla dependência mediada, o efeito desorientador da sobrecarga simbólica e a absorção do self na interacção quase mediada. Convém salientar que, apesar das suas potencialidades de abertura, quase nunca realizadas plenamente, as possibilidades abertas pelos novos meios de comunicação têm efeitos negativos na formação e consolidação do self, sobretudo nos grupos etários mais novos, do nascimento até à adolescência.
1. A INTRUSÃO MEDIADA DA IDEOLOGIA. Na sua obra «Ideologia e Cultura Moderna», Thompson defendeu uma concepção dinâmica e pragmática de ideologia: a ideologia designa as «maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação», isto é, relações de poder. Assim, as formas simbólicas específicas não são ideológicas per si: as formas simbólicas são ideológicas quando servem, em determinadas circunstâncias, para estabelecer e sustentar sistematicamente relações assimétricas de poder.
Ora, o desenvolvimentos dos meios de comunicação criou as condições necessárias para a intrusão mediada de mensagens ideológicas nos contextos práticos da vida diária, através de extensas faixas de espaço e de tempo. Não só a difusão da ideologia é facilitada pelas novas tecnologias da comunicação, como também a sua audiência tende a universalizar-se, transcendendo os contextos locais da interacção face a face. Contudo, dado o carácter contextual da ideologia, o carácter ideológico das mensagens mediadas depende do modo como são recebidas pelos indivíduos e incorporadas reflexivamente nas suas vidas e também nos seus corpos. Em determinados contextos, a apropriação das mensagens mediadas serve para estabilizar e reforçar as relações de poder e, quando são incorporadas reflexivamente aos projectos de formação do self, podem assumir um papel ideológico poderoso, como sucede nas concepções sociais e culturais de masculinidade e de feminilidade ou de identidade étnica. A sua interiorização exprime-se mais no modo como o indivíduo se comporta no mundo, como se relaciona consigo mesmo e com os outros e como entende os contornos e os limites de si mesmo do que em crenças e opiniões explícitas.
2. A DUPLA DEPENDÊNCIA MEDIADA. A disponibilidade das mensagens mediadas não somente enriquece e acentua a organização reflexiva do self (efeito positivo), mas também — e paradoxalmente — torna o self extremamente dependente de sistemas sobre os quais não tem praticamente controle. A dupla dependência mediada resulta assim de um processo paradoxal: quanto mais o processo de formação do self se enriquece com as formas simbólicas mediadas, mais ele se torna dependente do sistema da indústria cultural (Adorno & Horkheimer) que escapa ao seu controle.
Ora, a dupla dependência mediada é uma das características das sociedades da modernidade reflexiva (Giddens). Com o seu desenvolvimento, os indivíduos são obrigados a recorrer a si próprios para construir — com os recursos materiais e simbólicos disponíveis — um projecto coerente de vida. Por um lado, o self torna-se cada vez mais organizado como um projecto reflexivo, mediante o qual constrói — na forma de autobiografia narrativa — a sua própria identidade pessoal; mas, por outro lado, os indivíduos estão cada vez mais dependentes de um vasto conjunto de instituições e sistemas sociais que lhes proporcionam os meios — materiais e simbólicos —, para a construção dos seus projectos de vida. Este é o paradoxo com que nos defrontamos actualmente: a organização reflexiva do self desenrola-se sob condições que o tornam mais dependente das instituições e dos sistemas sociais que escapam ao seu controle. Nada parece ser transparente.
O paradoxo da reflexibilidade/dependência ou, para utilizar a terminologia de Ulrich Beck, da individualização/institucionalização é evidente na dominação dos mass media: A crescente disponibilidade de formas simbólicas mediadas fornece os meios simbólicos que possibilitam aos indivíduos distanciarem-se dos contextos da vida diária e construírem projectos de vida que incorporam reflexivamente as imagens e as ideias mediadas recebidas, interpretadas e apropriadas, ao mesmo tempo que fomenta a sua dependência — no que diz respeito à formação do self e da vida da imaginação — dos sistemas complexos responsáveis pela produção e transmissão das formas simbólicas mediadas. Talvez pudéssemos dizer que este empreendimento de auto-formação do self se torna extremamente arriscado.
3. O EFEITO DESORIENTADOR DA SOBRECARGA SIMBÓLICA. Tudo se passa como se, na crescente disponibilidade de formas simbólicas mediada, residissem também as seus mais graves pecados ou defeitos. Além de enriquecer a formação do self, esta disponibilidade pode também ter um efeito desorientador. Com efeito, Georg Simmel já tinha constatado que, no âmbito da grande metrópole, a enorme diversidade e multiplicidade de estímulos, mais precisamente de mensagens mediadas disponíveis, provoca uma espécie de sobrecarga nervosa, que hoje sabemos estar associada ao stress e ao antro comportamental.
Nas chamadas sociedades pós-tradicionais, os indivíduos confrontam-se não só com uma outra narrativa autobiográfica que lhes permite reflectir criticamente sobre as suas próprias vidas ou com uma outra visão do mundo que contrasta com os seus supostos pontos de vista, mas fundamentalmente com inúmeras narrativas autobiográficas, inúmeras cosmovisões e inúmeras formas de informação e comunicação que dificilmente podem ser coerente e efectivamente assimiladas. A diversidade cria necessariamente uma insegurança ontológico-existencial essencial nos indivíduos: a fragmentação e a fragilização ameaçam o self.
Enfrentar este fluxo sempre crescente de materiais simbólicos mediados constitui o grande problema das nossas vidas. Dado a personalidade múltipla não ser um processo viável para resolver este problema, mencionaremos três maneiras mais saudáveis para solucionar este problema, de resto muito frequentes, e aos quais a escola devia dar atenção:
1. Os indivíduos podem seleccionar o material que assimilam: a selecção do material simbólico disponível.
2. Os indivíduos podem elaborar sistemas de conhecimento que lhes permitem seguir um determinado caminho através da densa floresta das formas simbólicas mediadas. Quando estes sistemas fazem parte das redes da comunicação social, os indivíduos são levados a confiar nas opiniões dos chamados críticos do cinema ou da TV, para fazer as suas próprias escolhas. Situações deste tipo estão excluídas daquilo a que chamamos imunocognição, a qual exige o desenvolvimento de competências cognitivas e de capacidade crítica, assentes na auto-determinação.
3. Os indivíduos podem depender regularmente de outros, com quem interagem todos os dias — os "outros significativos" (pais e amigos) de G. Mead, cujas opiniões aprendem a respeitar como fonte de conselho experiente sobre o modo como tais materiais devem ser interpretados ou devem ser assimilados ou rejeitados. O estudo de Janice Radway sobre os leitores de ficção romântica mostrou como eles recorriam às opiniões de determinada pessoa, não só para seleccionar os livros que iriam ler, mas também para construir sistemas práticos de conhecimento que os ajudavam a enfrentar o crescente fluxo de formas simbólicas mediadas.
O desenvolvimento do sistema de conhecimentos práticos é igualmente uma característica da dinâmica das sociedades modernas: o efeito recíproco da complexidade e da experiência prática. À medida que a sociedade se complexifica, os indivíduos constróem sistemas práticos de conhecimentos que lhes permitem tornar inteligível essa complexidade.
4. A ABSORÇÃO DO SELF NA INTERACÇÃO QUASE-MEDIADA. O desenvolvimento dos mass media cria um novo tipo de situação interactiva: a interacção quase-mediada. Muitos indivíduos, além de participarem na interacção quase-mediada — onde vão buscar materiais simbólicos mediados como fonte de recursos ricos e variados para o processo de formação do self —, também participam em interacções face a face. Deste modo, a interacção quase-mediada é apenas um dos aspectos das suas actividades sociais diárias. No entanto, existem indivíduos que confiam muito mais nos materiais simbólicos mediados do que nos outros significativos. Nestes casos, os materiais simbólicos mediados transformam-se num objecto de identificação, ao qual se vinculam e se apegam emocionalmente. O carácter reflexivo do self, pelo qual eles são capazes de incorporar materiais simbólicos num processo relativamente autónomo de formação contínua do self, desaparece e, em seu lugar, o self é absorvido por uma forma de interacção quase-mediada. A absorção do self não implica necessariamente uma suspensão da reflexividade: A absorção do self na interacção quase-mediada é apenas uma versão da organização reflexiva do self, na qual os materiais simbólicos mediados não são simplesmente um recurso para a autoformação do self, mas a sua preocupação central. Ao se tornarem fins em si mesmos, os ideais simbólicos convertem-se em "coisas" em torno das quais o indivíduo organiza a sua vida e lhe dá sentido. Trata-se daquilo a que a teoria crítica chama consciência reificada.
Ora, estes efeitos negativos desencadeados pelo uso prolongado dos mass media electrónicos da primeira geração (rádio e TV) são muito menos evidentes nos novos mass media electrónicos da segunda geração (Mark Poster): a comunicação mediada por computador e a Internet promovem o diálogo, embora possam criar novas adições.
J Francisco Saraiva de Sousa

31 comentários:

Fernando Dias disse...

Belo e rico ensaio, de um tema tão difícil!
É difícil fugir às ideologias.
Tenho valorizado ultimamente a identidade narrativa embora a individualidade receba também a ideia de “si-próprio” em simbiose com a identidade narrativa. Vejo que também valoriza essa vertente do self que eu tenho metaforizado com a “autoimunidade”.

O sistema imunitário está no self biológico como o sistema linguístico está no self narrativo. Assim como temos doenças autoimunes no sentido biológico, temos doenças autobiográficas no sentido narrativo. E o Francisco toca esse ponto quando fala em “redes de comunicação social” e “imunocognição”.

Assim, a “interacção narrativa mediada” pode ser que tenha 3 estadios:
- o parasitário – media da primeira geração.
- o comensalista ou mutualista – media da segunda geração que é este da internet e bloga.
- o simbiótico ou líquido – que é o que vem a seguir.

Fecha-se então o ciclo e o círculo da consciência – primeiro global, depois local, e de novo global. Este ciclo é duplamente virtuoso e virtual. Passa-se da consciência reificada (substancial, material, parmediana-democritiana) para a consciência virtual-relacional (impermanente heraclitiana). Se for assim, cumpre-se a sua sentença quando me diz “a individualidade está em crise”. Espero que seja uma crise no sentido virtuoso, ascendente.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fernando Dias

Estou de acordo com a sua visão. De facto, tenho tentado encontrar inspiração na imunologia e noutras ciências biológicas. Fui muito marcado pelo paralelo que um autor estabeleceu entre os sistema nervoso e o sistema imunitário, bem como pela abordagem de Macfarlane Burnet. Depois houve a influência de J. Monod com a sua ideia de que as ideias parasitavam o cérebro. Isso fez-me procurar inspiração na microbiologia, parasitologia e virologia. Disso resultou uma nova noologia, mas ainda estou insatisfeito com tal projecto.
Sim, a ligação linguagem e mente é fundamental. A imunocognição seria uma espécie de "tratamento", isto é, uma vacina contra os maus parasitas... Mas não tenho tempo para me dedicar a tudo isso.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fernando Dias

A linguagem metafórica excessiva de Bergson afasta, mas ele merece uma releitura. Afinal, foi ele que criou as noções de sociedade aberta e de sociedade fechada e fez uma distinção interessante entre o self individual e o self social. Podemos também falar de um self aberto (democrático) e de um self fechado: este último deveria ser diferenciado internamente e casado com o self autoritário (Adorno). Uma política do self e da identidade associada à educação...

Manuel Rocha disse...

Vejo que estão muito "ecológicamente" discutindo as caracteristicas de um "ecossistema" nas suas interacções com o meio.

Resta é saber em que fase da sucessão ecológica o dito se situa...Como "climaxico" não me parece que esteja, fica-me a dúvida de saber até que ponto o "self" é uma espécie de "sucessão secundária" que resulta em "seres" irrepetíveis...:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

G. Bateson elaborou uma ecologia do espírito, mas penso que os resultados foram "magros". Precisamos de outra ecologia do self: cartografias, tomografias...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Noutros trabalhos, tenho explorado outras configurações do self: o self colonizado que utilizo em relação à educação, o self raptado, o self capturado, o self prisioneiro, o self roubado, o self envergonhado, e tantas outras. Falta organizar uma teoria sofisticada do self, capaz de integrar todas estas diferenciações.
Hoje o self borboleta foi apanhar Sol na cabeça! Babababa... :))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fernando Dias

Então, uma teoria crítica do self (saudavelmente) autónomo e, portanto, auto-imune, deve dar conta dos mecanismos de auto-tolerância que lhe possibilitem distinguir entre os determinantes próprios e os não-próprios para evitar a auto-reactividade. Isto parece conduzir à exigência de uma terapêutica do self, ou melhor, uma política do self, que não precisa entrar em ruptura com o projecto da modernidade esclarecida.
Também pode significar que os selves contemporâneos estão em crise, tal como a educação e a própria sociedade, devido a algo que os impede de desenvolver a auto-tolerância: estão cansados de si próprios e fogem em desespero: evasão total e fragmentação. Na (má) educação e na (má) política, incorporam o que não é próprio como se fosse próprio: são estranhos a si mesmos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

No fundo, precisamos elaborar uma ontologia diferencial do self e criar as respectivas "vacinas cognitivas"...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A minha tarefa é tentar uma imunização (vacina) contra a intromissão e a invasão da ideologia de mercado e do consumo. O self gorduroso é repelente...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Destas considerações precárias resulta que o SELF COLONIZADO mais não é do que o produto da CLONAGEM ou da tietagem: clones, clones e mais clones derivados da mesma matriz: o consumidor devorador, aquilo que a economia deseja para se reproduzir na sua dinâmica infernal e auto-destrutiva.

Fernando Dias disse...

Francisco,
A brincar que o diga, só agora é que voltei, porque fiz como a Papillon. Vieram-me buscar e fui comer a uma esplanada um polvo grelhado com batas a murro. Moral, em vez de ter ficado a reler Milan Kundera e Robert Musil, porque na altura que os li não tinha os estímulos de agora. Moral, estou comumas fortes dores de cabeça… do Sol:))

Acho que faz sentido o que tem vindo a dizer.
“Clones”, mariz -“Matrix”… pode ser que volte com mais qualquer coisa…

Fernando Dias disse...

Com estas dores de cabeça convoquei Derek Parfit a pôr as lentes do oculista de Combray e a espreitar-me para o cérebro. O que ele me disse: “tu não tens self, estás iludido, quanto muito estás a ser inconsistente. Por iss não podes confiar em ti.”

Mas esse é farinha de outro saco?! Diria o Francisco.

Pois é! Ou é uma espécie de apagamento quase budista da identidade, então OK, vamos a isso e estudemos a fundo o budismo. Ou é um cartesianismo reciclado e então para esse peditório já démos. Para isso temos o Husserl das Meditações Cartesianas que faz a distinção entre o corpo próprio (Leib) e o corpo neutro objectivo (Körper), ou Heidegger que faz a distinção entre a experiência de “si-próprio” no (Dasein Selbstheit), e o que é neutro e manipulável (Vorhanden/Zuhenden). Selbstheit-Ständigkeit é a mesma coisa que “si-próprio”. Selbstheit significa a capacidade de se interrogar sobre o seu próprio modo de ser e se relacionar.

O (Leib) remete para a questão da acção – “quem?”
O (Körper) remete para a questão – “o quê?”

Acção, actor, autor, autoridade, ipseidade, responsabilidade. Daqui deriva a ética e a moral.

Derek Parfit faz outra interpretação e remete a moral para o “interesse-próprio” que tem a ver com hedonismo e felicidade.

Sófocles já tinha antecipado Parfit, com a possibilidade de um Ser,ser ao mesmo tempo filho e irmão de Édipo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fernando Dias

Como o compreendo quando fala da falta de estímulos! Portugal é o contrário da estimulação, do incentivo e do mérito. Afinal, a nossa história reduz-se à história da trapaça e da corrupção. As elites não estimulam porque querem pastar e tomar conta de todo o pasto sem serem incomodadas pela concorrência. É assim que vejo a história de Portugal.
O caso do Apito Final vem confirmar isso: quem vence é punido injustamente pelo sistema corrompido, para beneficiar a "capital" e o seu tom vermelhofascista. Todo o dinheiro que vem da UE vai para os bolsos do gado lisboeta que anseia por uma cidade-região. Nós, os outros portugueses, deviamos unir forças e recriar algo novo, deixando a cidade-região entregue à sua gula mas sozinha.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ui, não gosto de frequentar as águas de Derek Parfit. Pertence àquele grupo de filósofos que fetichizam a linguagem e tratam a realidade como se esta fosse um sistema-fetiche, cujos termos manipulam segundo raciocínios lógicos-fetiches. A tarefa é outra: é iluminar a praxis política. A teoria crítica não despreza a "filosofia burguesa": apenas exige a sua realização plena. O budismo parece-me algo que suspende o pensamento. isso aterroriza-me!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

"Acção, actor, autor, autoridade, ipseidade, responsabilidade. Daqui deriva a ética e a moral."

Exacto, numa versão burguesa: a do homem íntimo e abstracto. Aqui a teoria crítica aponta para a origem jurídica dessas noções abstractas e passa à crítica do DIREITO que é sempre uma ideologia burguesa que garante a propriedade privada. Em suma: uma recapitulação da ideologia burguesa, protagonizada pelas novas classes dirigentes.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Aliás, Lutero já tinha dito tudo isso na sua liberdade do cristão. Ao contrário de Münzer, Lutero reduzia tudo à Pessoa abstracta/íntima: a liberdade interior. Porquê? Porque na nossa liberdade interior/íntima somos Politicamente) impotentes. Contradição da ideologia burguesa! Não admira que ele tenha advertido aos escravos cristãos que cairam nas mãos dos turcos para que não fugissem ou prejudicassem os seus senhores/amos. Escreveu Lutero:

"Deves pensar que perdeste a tua liberdade e te tornaste servo e, por isso, não podes viver sem pecado e desobediência contra a vontade e o conhecimento do teu senhor". "Pois assim roubas o teu corpo ao teu senhor, que o comprou ou de outro modo o tomou para si, de modo que ele não é mais coisa tua e sim dele, como um animal ou qualquer outro bem do senhor". esta liberdade do agente transforma-se no "direito da não-liberdade real". Ora, o que desejamos é liberdade real...

E. A. disse...

Olá caríssimos!

Este tema, já abordado por si por outras vezes, é muito importante! Infelizmente n tenho muito tempo para fazer um comentário mais interessante, mas quero assinalar alguns pontos:

A concepção do self proposta por John Thompson é a mesma que a de Nietzsche, a qual perfilho, mas que não deve ser interpretada pela categoria da quantidade - como se os recursos simbólicos fossem por si próprios determinantes na edificação do self. Como se comprova, aliás, pelo fluxo abundante de informação que temos disponível neste momento e que não desencadeia, naturalmente, nenhuma consistência ao ser.
Em segundo lugar, pelo facto (d)«os horizontes de compreensão dos indivíduos» alargarem-se, traz consequências ao modo de se educar. Essencialmente, como diz, na procura de coerência entre os dados, na detecção da manipulação ideológica (a purga de conhecimentos!), no exercício da imaginação (a qual a sobrecarga simbólica, contrariamente ao que seria esperado, só faz definhar), o diálogo face a face (e não virtual!) deve ser tb "ensinado", senão o homem corre o risco de esquecer aquilo que o tornou o que é... a empatia. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

Estamos de acordo: as duas faces da "moeda". Moeda? Claro, vivemos numa sociedade capitalista em que a quantidade oprime a QUALIDADE. Consciência coisificada a das pseudo-elites! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fernando Dias

Espero que as dores de cabeça lhe tenham passado!
Aquilo que escrevi a propósito de Derek decorre da tese de Marx fundamental: O sistema capitalista libertou os servos. Mas essa liberdade cedida significa que eles foram despojados da terra e dos meios de produção e obrigados a ir para a cidade onde tinham de vender a sua própria força de trabalho (o seu corpo e a força muscular) para sobreviver. Esta liberdade é falsa, porque na realidade não são livres. É por isso que a filosofia burguesa é dualista: este dualismo reflecte o direito à não-liberdade real. E o corpo foi o primeiro a ser alienado do seu "proprietário" e a mente colonizada por uma ideologia que subtilmente procura levar os colonizados a aceitar essa fatalidade de serem despojados como algo natural ou estipulado por Deus. O dualismo só pode ser "superado" na realidade transformada.
Ainda ontem ouvi Mário Soares fazer o elogio da LIBERDADE e da PAZ, mas na realidade não somos livres, até porque há muito desemprego e miséria e muita riqueza concentrada em poucas mãos, e a PAZ tornou-se a ideologia do poder estabelecido que nos diz "Aceita o sistema, Não desobedeças". Claro, Sartre sabia isso e, por isso, pregava o recurso à violência! A ideologia não pode ser negligenciada, porque esse lapso é fatal para o mundo.

Fernando Dias disse...

Obrigado Francisco, já estou a melhorar, mas tive que tomar paracetamol.
Estou a reflectir sobre a Liberdade e sobre a compatibilidade do conceito de Liberdade com o conceito de Determinismo. Marx era um determinista, mas Sartre não era. Concorda comigo? Ou estes chavões fazem pouco sentido?
Estou-me a lembrar da trilogia de Sartre – Os Caminhos da Liberdade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O determinismo em Marx é complicado e penso que só podemos exorcizar esse problema recorrendo à dialéctica da necessidade e da liberdade. Althusser no final da vida procurou elaborar um "Materialismo aleatório"... Penso que o determinismo pode ser, ele próprio, uma crença ideológica. Afinal, podemos ser como o protagonista de TaxiDriver: pegamos numa metralhadora e matamos antes de pormos termo à nossa própria vida: acto de liberdade plena. Decidir morrer: uma ideia hegeliana!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O suicídio como acto supremo da liberdade é uma arma eficaz contra o sistema de exploração. Não há nenhuma ideologia que aceite o suicídio. Porquê? Porque (suspendo o aspecto psicobiológico) é a única coisa que podemos fazer para evitar a escravatura. As elites temem perder os seus escravos. A outra arma é o homicídio: matar o que nos explora. Esta é uma dinâmica muito animal, mas como armas políticas revelam a grandez HUMANA.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Isto vem a propósito da minha preocupação com o destino do Ocidente.
Esta PAZ em que vivemos faz-me lembrar a "paz romana": o Império era dado como garantido. As elites ocidentais corrompidas e decadentes dão o sistema como garantido e, no entanto, houve o 11 de Setembro (ameaça externa). Bush reage e invade o Iraque: os europeus dividem-se e criticam Israel.
Mário Soares fez isso ontem. Estes dirigentes não estão preocupados; apenas procuram viver bem a sua vidinha exploradora.
Também aqui sou dialéctico: os USA reagiram, as coisas estão mais sossegadas, parece haver mais atenção e cuidado... Afinal, esses ataques podem ser "bons": funcionam como despertadores... Heráclito bem sabia que a guerra era o pai de todas as coisas... A PAZ mata a humanidade! Luta... e trabalho...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E eis porque não gosto da via do consenso de Habermas: moçinho satisfeito com a ordem estabelecida! Muito mariquinhas...

Fernando Dias disse...

Este comentário ainda se refere ao antepenúltimo.
Ou será o contrário, mais humano que animal.
Orhan Pamuk no livro NEVE, aborda o tema do suicídio de raparigas islamistas no leste da Turquia por causa do regime ataturkiano lhes proibir o uso do véu. Recomendo este livro, não só por ser para mim o melhor que li dele, mas por nos dar a perceber o que se está a passar neste momento na Turquia, e ao fim de contas com a cruzada suicidária islamista.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fernando Dias

já reparou que temos ou tinhamos um Sistema Nacional de Saúde e um Sistema de Ensino Público. Duas boas ideias, duas boas realidades que poderiam ser sempre melhoradas sem se tornarem onerosas. Mas nunca tivemos um Sistema Público de JUSTIÇA. as reformas avançam menos a da "justiça". Sintomático: o Direito é por natureza Burguês. Pura ideologia! O povinho vai para a prisão por pouco; os corruptos do poder são impunes. Marx sempre viu isso logo nos escritos de juventude. A ideologia jurídica marca a filosofia, a começar por a de Kant. Basta ler a Metafísica dos Costumes! A propriedade. O contrato: a tal paz em vez da guerra. As classes dirigentes são muito pacíficas quando conseguem convencer os escravos a aceitar (pacificamente) a escravidão e as punições sempre que desobedecem. Quando na verdade a Pobreza é uma invenção capitalista. O meu resgate do Passado tem essa mensagem: o passado não é tão terrível quanto dizem. A abundância é falsa!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, HUMANO.
Não conheço esse autor mas deve ser o Prémio Nobel! Infelizmente não o li.

Fernando Dias disse...

Tem razão, o passado não é tão terrível como isso. Mas de facto o sistema de justiça português é ainda muito reaccionário. Ainda não mudou em relação a um certo paradigma, que para não ter que adjectivar digo que neste campo tenho boa impressão das ideias de Marinho Pinto.

Fernando Dias disse...

Bom, por hoje fico por aqui.
Se calhar não conseguimos descobrir a essência da identidade pessoal. Pode ser como Santo Agostinho em relação ao tempo. Sei reconhecê-la mas não sei o que é.
Uma boa noite.

Manuel Rocha disse...

Pois lamentavelmente o meu self teve o dia tão atarefado em manutenções várias que não teve condições de participar devidamente nesta interacção de selves em suporte de segunda geração...:))

Observo com gosto que apesar das desnecessarias dores de cabeça decorreu com o bom nivel habitual.

Ainda tentei fazer um post sobre certa dicotomia mas só saiu metade...Amanhã haverá outras marés...

Boa noite, Carissimos !

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Boa Noite Manuel e Frenando Dias
Eu cá fico a ver se edito qualquer coisa sobre a Nova/Velha Corrupção Nacional: O Apito Final (a justiça desportiva da Liga) e a sua coincidência com a chamada "justiça criminal" que envolve Pinto da Costa. Isto vai fazer estragos no PS que consente autisticamente a CORRUPÇÃO NACIONAL infiltrada no Estado de Lisboa. Estranho com o PM José Sócrates permite esta campanha lisboeta quando ele também foi alvo de uma suspeita público-mediada! A conspiração lisboeta domina Portugal, este país de bananas.