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Porto: Liceu Alexandre Herculano |
«É tentador, para um biólogo, comparar a evolução das ideias à da biosfera. Porque, se o Reino abstracto (noosfera) transcende a biosfera mais ainda do que esta o universo não vivo, as ideias conservam certas propriedades dos organismos. Como estes, tendem a perpetuar a sua estrutura e a multiplicá-la; como estes, podem unir-se, recombinar, segregar o seu conteúdo; como estes, enfim, as ideias evoluem e, nesta evolução, a selecção, sem dúvida alguma, desempenha um grande papel. Não me aventurarei a propor uma teoria da selecção das ideias. Mas pode-se, pelo menos, tentar definir alguns dos principais factores que aí desempenham um papel. Essa selecção deve operar, necessariamente, a dois níveis: o do próprio espírito e o da função a realizar. /O valor de realização de uma ideia deve-se à modificação de comportamento que ele acarreta para o indivíduo ou para o grupo que o adopta. Aquela que conferir ao grupo humano que a fez sua maior coesão, mais ambição e confiança em si dar-lhe-á, por esse facto, um acréscimo de poder de expansão, assegurará a promoção da própria ideia. Este valor de promoção não tem uma relação necessária com a parte de verdade objectiva que a ideia pode comportar. A potente armadura que constitui para uma sociedade uma ideologia religiosa nada deve à sua estrutura em si mesma, mas ao facto de essa estrutura ser aceite, se impor. Por isso, só dificilmente se pode separar o poder de invasão de uma determinada ideia do seu poder de realizar uma determinada função. /O poder de invasão, em si, é bem mais difícil de analisar. Digamos que depende das estruturas preexistentes do espírito, entre os quais as ideias já vinculadas pela cultura, mas também, sem dúvida alguma, de certas estruturas inatas que, aliás, nos é bastante difícil identificar. Mas vê-se bem que as ideias dotadas de mais elevado poder de penetração são aquelas que explicam o homem, assegurando-lhe o seu lugar num destino imanente, no seio do qual a sua angústia se dissolva.» (Jacques Monod)
«Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também a potência dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas sob a forma de ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem entre outras coisas uma consciência, e é em consequência disso que pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda a sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham, entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como produtores de ideias, que regulamentem a produção e a distribuição dos pensamentos da sua época; as suas ideias são, portanto, as ideias dominantes da sua época». (Karl Marx)
A teoria da selecção das ideias proposta por Jacques Monod sofreu uma alteração substancial depois de Althusser ter criticado o idealismo subjacente à sua primeira formulação na lição inaugural no Colégio de França. Quando analisei a lição inaugural de Monod, procurei distanciar-me da crítica de Althusser, porque já tinha identificado uma afinidade estrutural entre a teoria das ideias de Monod e a teoria da ideologia de Marx. Num texto anterior, fui mais longe quando afirmei que a teoria da ideologia de Marx é uma teoria selectiva. A teoria da selecção das ideias foi, portanto, formulada por Marx, em primeira mão e não por Darwin, como parece pensar estupidamente Daniel Dennett, o que facilita desde logo a integração do materialismo histórico no seio da teoria sintética da evolução, como se depreende facilmente do «confronto» dos dois textos apresentados em epígrafe. Não adianta acusarem-me de ser reducionista: eu sou cientista e é nessa qualidade que opero a integração do marxismo na teoria sintética da evolução, mesmo que para isso tenha de reformular o materialismo histórico em função das indicações metodológicas fornecidas noutros textos. Diante da fotografia do Liceu Alexandre Herculano, um aparelho ideológico de Estado que garante a transmissão da cultura, Althusser seria obrigado a recuar e a meditar para finalmente reconhecer que a teoria da selecção das ideias não é estranha ao marxismo. Porém, o objectivo deste texto não é voltar a Jacques Monod, mas dar início à crítica da teoria da evolução cultural de Richard Dawkins. Quando leu a versão inicial do capítulo XI de O Gene Egoísta de Dawkins (1976), Nicholas K. Humphrey resumiu a sua teoria dos memes nestes termos: «Os memes devem ser considerados como estruturas vivas, não apenas metaforicamente mas tecnicamente. Quando plantas um meme fértil na minha mente, parasitas literalmente o meu cérebro, transformando-o num veículo para a propagação do meme, exactamente como um vírus pode parasitar o mecanismo genético de uma célula hospedeira. E isto não é apenas uma maneira de falar - o meme, por exemplo, para "crença numa vida após a morte" é, de facto, realizado fisicamente, milhões de vezes, como uma estrutura nos sistemas nervosos dos homens, individualmente, por todo o mundo». A memética de Dawkins e a noologia de Monod partilham a ideia crucial de que as ideias ou memes, tal como os vírus, são seres capazes de se auto-reproduzir, desde que parasitem um organismo: tanto os vírus como as ideias transitam de um organismo para outros e fixam-se sobre um código genético ou um código cultural, para aí transduzir uma informação criativa ou letal. No entanto, as ideias distinguem-se dos vírus pelo facto de se unirem e se combinarem em sequências organizadas, para formar mitos, ideologias e sistemas teóricos, que colonizam os cérebros e as culturas, os seus dois ecossistemas. Ora, a ecologia das ideias não pode ser compreendida fora do quadro da teoria do materialismo histórico de Marx. Considero que a teoria da ideologia é uma das maiores descobertas científicas de Marx. Nenhuma outra teoria científica provocou tanta polémica como a teoria da ideologia proposta por Marx. Infelizmente, apesar da abundância de literatura sobre a ideologia, ainda não possuímos uma grande obra sobre a história da controvérsia filosófica em torno da teoria da ideologia de Marx, até porque os próprios marxistas nunca se entenderam a esse respeito. Com a formulação da teoria da ideologia, o mundo social e cultural nunca mais voltou a ser visto da mesma maneira: a teoria da ideologia fornece-nos as lentes e os instrumentos teóricos adequados para analisar cientificamente a realidade social e histórica, ao mesmo tempo que elucida a história do conhecimento científico na sua luta permanente contra as ideologias existentes. Graças a Marx, nós podemos analisar os obstáculos epistemológicos, ideológicos e sociais que Darwin teve de ultrapassar para elaborar a sua teoria da selecção natural, fazendo-nos compreender a razão de ser da sua longa demora de mais de vinte anos. Paul Ricoeur nomeou três mestres da suspeita, Marx, Nietzsche e Freud, mas destes três nomeados só um lançou a suspeita sobre toda a história do Ocidente: Karl Marx, cujo paradigma científico da história deve ser integrado na teoria sintética da evolução. (Só os que sofrem de distúrbios mentais continuam a ler Nietzsche ou mesmo Freud, duas figuras dispensáveis, mais a primeira do que a segunda, evidentemente!) Relendo a correspondência entre Marx e Darwin, apercebi-me de que as revoluções científicas que realizaram foram impulsionadas por um longo trabalho filosófico. Durante mais de vinte anos, Darwin trabalhou na sua própria filosofia materialista. Há um materialismo filosófico produzido por Darwin que ainda não foi seriamente estudado: ele encontra-se formulado nos seus cadernos M e N. Marx foi infinitamente mais corajoso do que Darwin. Mesmo sem possuir a fortuna do seu colega naturalista, Marx desafiou o poder estabelecido, sendo por isso expulso da Alemanha e privado de uma carreira profissional capaz de lhe garantir o sustento. As revoluções científicas operadas por Marx e Darwin eram perigosas por três razões: ambas as teorias - a teoria da selecção natural de Darwin e a teoria da história de Marx - afirmavam que a "evolução" não tem qualquer objectivo (1) e não é orientada no sentido de conduzir inevitavelmente a coisas mais elevadas (2), e aplicaram uma filosofia materialista consistente às suas interpretações da natureza e da sociedade, respectivamente (3). Julgo ouvir alguém a dizer que estou a esquecer o aspecto comunista do pensamento de Marx que parece emprestar uma orientação ou um sentido à história do homem. A minha posição é sobejamente conhecida: considero o comunismo como um elemento estranho ao corpo teórico do materialismo histórico. No entanto, apesar de não podermos encontrar um propósito na natureza e na história, podemos tentar defini-lo e, de certo modo, foi isso que fez Marx. Sempre achei que os comunistas eram demasiado vitorianos, porque essa associação ou identidade entre evolução e progresso é uma invenção ideológica da sociedade vitoriana. Herbert Spencer é o pai ideológico desta identidade entre evolução e progresso, usada para classificar os europeus brancos no topo da evolução orgânica e os povos que habitavam as suas colónias no fundo. A evolução biológica e a evolução histórica não têm propósito, não são progressivas e são materialistas. Althusser compreendeu isso quando afirmou que, para Marx, a história é um processo sem sujeito nem fim(s), e o mesmo pode ser dito em relação à "visão da vida" de Darwin. Num outro contexto que não é estranho ao darwinismo, como demonstrou Hans Jonas, Sartre definiu o homem como uma paixão inútil. Doravante, utilizarei esta expressão sartreana para caracterizar o triunfo de Marx e Darwin sobre a arrogância do homem que, acossado pela perigosa ideia da evolução, tentou ligar as ideias de evolução e de progresso para justificar o seu domínio sobre todas as espécies que habitam o nosso planeta e a dominação do homem sobre o homem. As revoluções científicas de Marx e Darwin demoliram o preconceito antropocêntrico em todas as suas versões, obrigando o homem a encarar-se como um produto da evolução biológica e histórica. Dos cadernos de notas M e N de Darwin retenho três parágrafos: «O amor da divindade, efeito da organização, ó materialista?! Por que é que o facto de ser o pensamento uma secreção do cérebro é mais maravilhoso do que o da gravidade ser uma propriedade da matéria? É a nossa arrogância, a nossa admiração por nós próprios. /Platão diz no Fédon que as nossas "ideias imaginárias" provêm da pré-existência da alma, e não podem ser derivadas da experiência - por pré-existência, entenda-se macacos. /Para evitar declarar quanto acredito no materialismo, dizer apenas que emoções, instintos, graus de talento, que são hereditários, o são porque o cérebro dos filhos se parece com o dos progenitores». Um dia será necessário escrever uma obra sobre a relação entre Marx e Darwin, de modo a demonstrar como eles produziram novas teorias científicas a partir de uma perspectiva materialista, cuja versão mais completa é a de Marx. Ela tem um nome: chama-se dialéctica materialista ou teoria crítica e o seu materialismo é pluralista.
Daniel Dennett (1995) desenvolveu a teoria dos memes de Dawkins, de modo a integrá-la completamente na genética das populações. Apesar da minha aversão natural à filosofia de Dennett, sou obrigado a reconhecer o seu contributo para a clarificação do mecanismo da evolução cultural: alguns dos seus conceitos podem ser retomados, reformulados e depurados dos seus elementos ideológicos neoliberais. Há uma grande diferença entre Dawkins e Dennett: Dawkins é um cientista honesto que procura contribuir para o conhecimento do mundo, trabalhando cooperativamente com os outros, enquanto Dennett é um ideólogo do neoliberalismo que se serve do darwinismo para justificar o status quo. Sempre que fala da estrutura dos filtros, Dennett denuncia inadvertidamente a má-fé que preside ao seu trabalho de elaboração teórica: ele omite tudo aquilo que não se enquadra na sua estratégia xenófoba de fazer do darwinismo a ideologia triunfante do mundo anglo-saxónico. Este comportamento subliminar revela que até mesmo na sua ignorância real ou fictícia Dennett sabe que intervém num campo de batalha cujas linhas de ataque foram definidas por Marx. A honestidade intelectual de Dawkins levou-o a escrever que «cada indivíduo tem a sua própria maneira de interpretar as ideias de Darwin», na certeza de que «muito do que Darwin disse, em detalhe, está errado». Deste modo quase premonitório, Dawkins defendeu-se antecipadamente do abuso que Dennett fará mais tarde da sua teoria, acusando-o de não ter sido suficientemente corajoso para sacar todas as suas consequências filosóficas: a ideia perigosa de Darwin mais não é do que o uso ideológico que dela fez Dennett para justificar a miséria presente, como se os vencedores financeiros fossem os mais aptos de todos os homens. Nem sequer Darwin nos seus piores momentos de inspiração afirmou uma tal blasfémia. Darwin sabia que pertencer à classe dominante não é sinónimo de possuir maior aptidão darwinista: o fenómeno da degenerescência das classes dominantes não lhe era estranho. A cegueira teórica de Dennett impede-o de ver que, ao atribuir a evolução da cultura capitalista à selecção natural, está a responsabilizá-la por nos conduzir à catástrofe total, ou seja, à destruição da biosfera. Ao redireccionar a minha agressividade contra a filosofia de Dennett, estou a tornar a minha mente mais receptiva ao diálogo produtivo com a teoria da evolução cultural de Dawkins. A minha mente está voluntariamente aberta à invasão dos memes de Dawkins, embora tenha um sistema de defesa - e a melhor defesa é o ataque preventivo! - que analisa em detalhe cada um desses novos invasores. A nossa herança genética fez das nossas mentes masculinas campos de batalha e é por isso que usamos abundantemente metáforas belicistas para compreender o mundo. Mas o facto de sermos mentes "assassinas" forjadas na e pela caça não nos impede de colaborar uns com os outros, sobretudo quando temos um adversário comum a abater. V. C. Wynne-Edwards desenvolveu em 1962 uma teoria do controle homeostático da população nos animais que leva a uma generalização de maior amplitude sobre a origem de todo o comportamento social: a partir do sistema territorial dos pássaros tomado como a primeira forma de organização social, Wynne-Edwards definiu a sociedade como um grupo de indivíduos que competem, através de métodos convencionais, por prémios também convencionais. Ou, por palavras mais simples, a sociedade é uma irmandade forjada pela rivalidade. Tanto Maynard Smith como Dawkins criticaram esta teoria de Wynne-Edwards pelo facto dela supor a selecção de grupo, mas ela não deixa por isso de ser extremamente sedutora, sobretudo quando interpreta o comportamento epideítico dos animais como um ajuntamento deliberado em bandos a fim de facilitar o recenseamento da população, de modo a restringir a taxa de natalidade no interesse do grupo.
A teoria do gene egoísta de Dawkins deriva das ideias sociobiológicas de R. L. Trivers, mas no que se refere à sua aplicação ao homem os dois sociobiólogos divergem significativamente entre si: em vez de aplicar a sociobiologia aos seres humanos, como faz Trivers, Dawkins prefere propor para eles a sua própria teoria da evolução cultural, em que os memes substituem os genes. Esta teoria foi exposta pela primeira vez no último capítulo de The Selfish Gene (1976), tendo sido delimitada - ou mesmo afunilada - noutras obras posteriores, tais como The Blind Watchmaker (1986) e The Extended Phenotype (1982). Dawkins brinda-nos com um resumo da sua teoria na obra O Relojoeiro Cego: «Em The Selfish Gene aventei a hipótese de que pudéssemos estar, neste momento, no limiar de um novo tipo de "tomada do poder" genético. Os replicadores de ADN construíram "máquinas de sobrevivência" para si mesmos - os corpos dos organismos vivos, incluindo nós mesmos. Como parte do seu equipamento, os corpos desenvolveram um computador de bordo - o cérebro. O cérebro desenvolveu a capacidade de comunicar com outros cérebros por meio da língua e das tradições culturais. Mas o novo meio de tradição cultural abre novas possibilidades às entidades auto-replicadoras. Os novos replicadores não são ADN e não são cristais de argila. São padrões de informação, que apenas prosperam no cérebro ou em produtos fabricados artificialmente pelo cérebro - livros, computadores, etc. Mas, dado que o cérebro, os livros e os computadores existem, estes novos replicadores, a que atribuí a designação de memes para os distinguir dos genes, podem propagar-se de cérebro para cérebro, de cérebro para livro, de livro para cérebro, de cérebro para computador, de computador para computador. À medida que se propagam podem modificar-se - mutam. E talvez os memes "mutantes" possam exercer os tipos de influência que aqui designei por "poder replicador". Não esquecer que este se refere a qualquer tipo de influência que afecte a probabilidade de propagação própria. A evolução sujeita à influência dos novos replicadores - evolução mémica - está ainda na infância. Manifesta-se nos fenómenos que designamos por evolução cultural. A evolução cultural processa-se a uma velocidade de uma ordem de grandeza muito superior à da evolução fundada no ADN, o que nos faz pensar ainda mais na ideia de "tomada do poder". E se um novo tipo de tomada do poder replicador se está a iniciar, é concebível que parta para tão longe que deixará muito para trás o ADN seu progenitor (e a argila sua antepassada remota, caso Cairns-Smith tenha razão). Se assim for, podemos estar certos de que os computadores estarão na vanguarda». Deixando de lado a tomada electrónica do poder, que pertence à ficção científica, convém acentuar que a teoria da evolução cultural de Dawkins assenta numa analogia entre evolução genética e evolução cultural, entre genes e memes. Tudo o que é especificamente humano pode ser resumido numa única palavra: cultura, cuja transmissão é análoga à transmissão genética, no sentido em que, apesar do seu carácter conservador, pode dar origem a um novo tipo de evolução. É certo que já encontramos fenómenos de transmissão cultural entre algumas espécies animais, como por exemplo o canto das aves, mas é a nossa espécie que mostra realmente o que a evolução cultural pode fazer: Dawkins defende que, para compreender a evolução cultural do homem, é preciso desprezar o gene como a única base das nossas ideias sobre a evolução, e procurar outros tipos de replicadores e outros tipos de evolução. Com a emergência do homem surgiu um novo tipo de replicador e um novo tipo de evolução. Dawkins deu-lhe o nome de meme, um substantivo que transmite a ideia de uma unidade de transmissão cultural ou de imitação: «"Mimeme" provém de uma raíz grega adequada, mas quero um monossílabo que soe um pouco como "gene". Espero que os meus amigos helenistas me perdoem se eu abreviar mimeme para meme. Se servir como consolo, pode-se, alternativamente, pensar que a palavra está relacionada a "memória" ou à palavra francesa même». Dawkins distancia-se da estratégia sociobiológica quando fala do fim do monopólio dos genes: «Por mais de três biliões de anos o ADN tem sido o único replicador digno de menção no mundo. Mas ele não mantém necessariamente esses direitos de monopólio para sempre. Sempre que surgirem condições nas quais um novo tipo de replicador possa fazer cópias de si mesmo, os novos replicadores tenderão a dominar e a iniciar um novo tipo de evolução própria. Quando essa nova evolução começar não terá, em nenhum sentido obrigatório, que se submeter à antiga. A evolução antiga de selecção de genes, produzindo cérebros, forneceu o "caldo" no qual os primeiros memes se originaram. Quando os memes auto-replicadores surgiram, o seu próprio tipo de evolução, muito mais rápido, teve início. Nós, biólogos, assimilamos a ideia de evolução genética tão profundamente que temos a tendência a esquecer que ela é apenas um dentre vários tipos possíveis de evolução». O âmbito de aplicação do darwinismo - confinado pelos sociobiólogos ao contexto limitado dos genes - é assim alargado até incluir a própria evolução cultural. A evolução por selecção natural ocorre sempre que existem três condições, a saber: variação, hereditariedade ou replicação, e aptidão diferencial. Os memes que habitam os cérebros ou outros produtos fabricados pelos cérebros replicam-se por imitação, usando como principal meio de transmissão cultural a linguagem humana, falada e escrita. As qualidades que determinam um elevado valor de sobrevivência entre os memes são idênticas às dos genes: longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia. A longevidade é talvez a qualidade menos importante de uma cópia de um determinado meme: ela depende do meio em que está inscrita, com as cópias impressas a terem maior duração do que as cópias armazenadas no cérebro de uma pessoa. A fecundidade é mais importante do que a longevidade de cópias específicas. Assim, por exemplo, a fecundidade de uma ideia científica pode ser medida contando o número de vezes que ela é citada ou referida nas revistas científicas nos anos subsequentes. A sua grande difusão ao longo do tempo atesta o seu elevado valor de sobrevivência. Quanto à fidelidade de cópia, os memes não são, de forma alguma, replicadores de alta fidelidade, estando a sua transmissão sujeita à mutação contínua e à mistura. Uma aproximação entre a teoria dos memes de Dawkins e a teoria das ideias simples e compostas de John Locke ou David Hume seria produtiva, mas aqui basta dizer que Dawkins leva a analogia meme-gene mais longe para introduzir o conceito de complexo co-adaptado de memes que se origina no fundo mémico, de modo a distinguir unidades mémicas grandes e pequenas, tal como tinha feito com o complexo génico. Quando os componentes de um tal complexo mémico estão fortemente ligados entre si, formando uma entidade capaz de ser transmitida de um cérebro para outro cérebro, Dawkins considera ser conveniente juntá-los como um único meme. Assim por exemplo, durante a Idade Média, a doutrina da ameaça do fogo infernal aliou-se à ideia de Deus, para compelir eficientemente à obediência religiosa: as duas ideias reforçam-se reciprocamente, formando um complexo co-adaptado de memes, e cada uma delas ajuda a sobrevivência da outra no fundo de memes. Os complexos de memes co-adaptados evoluem da mesma maneira como os complexos de genes, e a selecção natural favorece os memes que exploram o seu ambiente cultural para vantagem própria. Este ambiente cultural contém outros memes que foram seleccionados ou que estão a ser seleccionados, entre os quais há competição. O fundo de memes tem os mesmos atributos de um complexo evolutivamente estável, que resiste à invasão de novos memes. A selecção natural favorece sempre estes complexos evolutivamente estáveis de memes, em detrimento dos memes isolados e separados. A analogia entre o complexo evolutivamente estável e a hegemonia de Gramsci é supreendente: os complexos co-adaptados de memes enquanto complexos evolutivamente estáveis são hegemónicos, no sentido marxista do termo. Dawkins pensa os genes e os memes como agentes conscientes intencionais, de modo a acentuar a ideia metafórica de que eles trabalham para a sua própria sobrevivência, mostrando-os a competir entre si na luta pela sobrevivência. A linguagem de propósitos é aqui um mero jogo metafórico de linguagem, porque é a selecção natural cega que faz com que eles se comportem como se fossem intencionais. O que interessa destacar é que os memes e os genes competem entre si de modo egoísta e implacável: o tempo - mais do que o espaço de armazenamento - constitui objecto de forte competição entre memes rivais. O meme que dominar a atenção de um cérebro humano deve fazê-lo à custa da eliminação dos memes rivais, e, se possível, tentar utilizar todos os meios de difusão e de transmissão disponíveis para cativar a atenção de um maior número de cérebros. Dawkins termina a sua exposição com a ideia de que os genes e os memes podem reforçar-se mutuamente ou mesmo entrar em conflito entre si, como sucede no caso do celibato. Este conceito de conflito entre genes e memes é uma ideia produtiva que merece ser pensada, na medida em que há a possibilidade objectiva da evolução cultural destruir as próprias condições necessárias à evolução e conservação da vida. Mas, enquanto houver vida inteligente no nosso planeta, o homem pode estar certo que deixa atrás de si duas coisas quando morrer: os genes e os memes. Os primeiros sobrevivem pelo menos em grandes proporções durante três gerações, ao passo que os segundos - se forem bem-sucedidos como os memes de Sócrates e Platão - poderão prosperar durante vários milénios, imortalizando os nossos nomes. Segundo Dawkins, copiando um meme tão antigo quanto o meme de Platão, devemos procurar a imortalidade não tanto na reprodução mas sobretudo no nosso contributo dado para o fundo de memes. Mas eis uma dificuldade: se uma característica cultural evoluiu da maneira como o fez simplesmente porque é vantajoso para ele própria, que interesse há em falar de imortalidade? A ideia de memes como partículas quase imateriais e potencialmente imortais não é a mais adequada para uma teoria científica da evolução cultural. Ao romper com a estratégia sociobiológica, Dawkins corre o risco de transformar a cultura num domínio supra-orgânico. Não se trata aqui da reentrada do idealismo cultural pela porta das traseiras, porque na verdade ele nunca chegou a ser expulso do seu seio pela teoria dos memes tal como a formulou Dawkins: a inscrição social dos memes nos aparelhos e nas práticas sociais é uma peça fundamental da teoria da evolução cultural. Não admira que a teoria dos memes de Dawkins tenha dado origem a uma "espécie de religião do meme" (Unweaving the Rainbow, 1998), cujo sumo-sacerdote é Daniel Dennett, para quem a consciência humana «é ela própria um enorme complexo de memes». Basta confrontar esta noção de Dennett com a ideia brilhante de Mikhail Bakhtin, segundo a qual «a consciência individual é um facto sócio-ideológico», para captar os contornos da ideologia nefasta que contamina todo o trabalho filosófico de Dennett, que, mesmo depois de ter eliminado a consciência individual, continua a professar um individualismo mémico, como se este pudesse explicar alguma coisa, logo ele que deve ser explicado a partir do meio ideológico e social.
A teoria da evolução mémica de Dawkins tem muitas fragilidades teóricas, a primeira das quais é a própria delimitação deste novo replicador que é o meme. Mas, para analisar estas fragilidades teóricas, convém dar o exemplo do meme para a ideia de Deus: «Não sabemos como ela se originou no "fundo" de memes. Provavelmente originou-se muitas vezes por "mutação" independente. De qualquer forma, ela é realmente muito antiga. Como se replica? Pela palavra escrita e falada, auxiliada pela música e arte sacras. Por que tem um valor de sobrevivência tão elevado? Lembre-se que "valor de sobrevivência" não significa aqui valor para um gene no "fundo", mas valor para um meme num "fundo" de memes. A pergunta significa: o que há na ideia de Deus que lhe dá estabilidade e penetração no ambiente cultural? O valor de sobrevivência do meme para Deus no "fundo" resulta da sua grande atracção psicológica. Ele fornece uma resposta superficialmente plausível para questões profundas e perturbadoras a respeito da existência. Ele sugere que as injustiças neste mundo talvez possam ser corrigidas no próximo. Os "braços eternos" oferecem uma protecção contra as nossas próprias deficiências, a qual, como o placebo do médico, não é menos eficiente por ser imaginária. Essas são algumas das razões pelas quais a ideia de Deus é copiada tão facilmente por gerações sucessivas de cérebros individuais. Deus existe, mesmo que apenas sob a forma de um meme com alto valor de sobrevivência ou de poder infectante no ambiente fornecido pela cultura humana». Dawkins não define o meme para a ideia de Deus, limitando-se a dizer que provavelmente surgiu por mutação independente em vários locais do mundo ao longo da história do homem. No entanto, quando procura explicar o seu valor de sobrevivência, isto é, a sua atracção psicológica, recorre a razões que foram dadas pela teoria da ideologia de Marx, sempre no pressuposto não-demonstrado da superioridade do conhecimento científico em relação ao conhecimento ideológico que define o complexo de memes co-adaptados que é o positivismo (conhecimento filosófico). Desgraçadamente, apesar dos esforços de várias gerações de pensadores marxistas, a teoria da ideologia de Marx permanece incompleta, sendo ameaçada internamente por uma bifurcação fatal. A minha hipótese de trabalho é a de que podemos completar a teoria da ideologia integrando-a na teoria sintética da evolução: os memes ou as ideias inscrevem-se em práticas sociais inseridas numa totalidade negativa, atravessada por contradições e conflitos sociais. Assim sendo, o valor de sobrevivência do meme para a ideia de Deus não é o mesmo para todos os homens no espaço e no tempo: a ideia de Deus até pode assegurar o lugar de todos os homens num destino imanente, apaziguando a sua angústia, como sugeriu Monod, mas o seu valor de sobrevivência é desigual em função da posição ocupada pelos indivíduos no processo de produção. O Deus dos proprietários dos meios de produção - o "deus" da opressão - é diferente do Deus daqueles que foram violentamente despojados dos mesmos - o "deus" da consolação escatológica ou o Deus da libertação efectiva, ou, sendo aparentemente o mesmo Deus, ele ajuda a reproduzir a formação social que explora e oprime a maioria da população a favor de uma minoria de aves de rapina. De certo modo, ao inscrevermos as ideias nas práticas e nas instituições sociais, somos levados a descobrir vários alelos rivais que competem pela ocupação da mesma fenda cromossómica: um exemplo disso reside na filosofia de Ernst Bloch, onde a teologia conduz à revolução através de sucessivas mutações. O Deus da libertação exerce maior atracção psicológica sobre os cérebros humanos do que o "deus" da opressão, e, no entanto, este último tende a dominar o seu alelo rival devido ao poder político efectivo que a sociedade antagónica lhe confere: um é dominante, o outro é recessivo ou, como dizem os marxistas, dominado. A competição entre memes é muito mais complexa do que pensa Dawkins. A teoria da ideologia permite levar mais longe a analogia entre genes e memes, dando-lhe um outro fundamento mais próximo da teoria da natureza humana elaborada pela sociobiologia. Dawkins rejeita a aplicação da sociobiologia aos seres humanos, abdicando assim da busca das vantagens biológicas dos memes e dos vários atributos da civilização. O seu darwinismo entusiasta implica libertar a teoria da evolução por selecção natural do seu confinamento ao contexto limitado dos genes: o princípio fundamental de que toda a vida evolui pela sobrevivência diferencial de entidades replicadoras é suficiente para garantir uma explicação darwinista tanto da evolução genética como da evolução cultural. De certo modo, Dawkins aproxima-se da concepção de Arnold Gehlen, segundo a qual o homem é, por natureza, um ser-de-cultura. Mas esta aproximação é mais aparente do que real, porque Gehlen procura elucidar a posição peculiar que a homem ocupa no reino animal, a partir da sua constituição biológica específica. A antropologia filosófica de Gehlen foi retomada por Peter Berger e Thomas Luckmann para mostrar que o Homo sapiens é sempre homo socius: a especificidade humana aparece assim ligada ao reino social e não ao ser humano solitário. A teoria dos memes só pode ser compreendida em articulação com a teoria marxista da sociedade e da história: a vantagem dos memes é fundamentalmente vantagem social. O livro de Dawkins termina com estas palavras: «Somos construídos como máquinas génicas e cultivados como máquinas mémicas, mas temos o poder de nos revoltarmos contra os nossos criadores. Somente nós, na Terra, podemos rebelar-nos contra a tirania dos replicadores egoístas». Quando li pela primeira vez o livro de Dawkins, anotei em rodapé da página: a teoria de Dawkins possui um trunfo em relação à teoria sociobiológica de Wilson - não anula as ciências sociais. Hoje sou levado a lamentar o facto dela não ter conseguido aprofundar a integração das ciências sociais na nova síntese. O optimismo de Dawkins é eclipsado por aquilo a que Wilson chamou a necessidade humana de acreditar: «os homens preferem crer a saber». Edward Wilson definiu o marxismo como «uma sociobiologia sem biologia». De facto, os marxistas privaram o materialismo histórico da sua base na ciência natural, mais precisamente na biologia, esquecendo que há na obra de Marx uma concepção latente da ideologia descrita em termos de "ideias fixas", "ilusões", "espíritos" ou "fantasmas" que circulam pela sociedade para despertar nos seus membros superstições e preconceitos que bloqueiam o desenvolvimento social. Este cenário de indivíduos prisioneiros de imagens e expressões do passado só pode ser explicado pela biologia, isto é, pelo conjunto de trajectórias evolutivas cujo pleno ordenamento está limitado pelas regras genéticas da natureza humana. A natureza humana é uma mistura de adaptações genéticas especiais a um meio ambiente que, em grande medida, já desapareceu, o mundo dos caçadores-recolectores da Idade Glacial. A evolução cultural não é linear: nem a filosofia substituiu a religião, nem a ciência eliminou a metafísica. Nos nossos dias indigentes, a mitologia renasce, ameaçando o destino da filosofia e da ciência.
Advertência. Estou a abordar um problema extremamente complexo e difícil, para a resolução do qual ainda não temos todos os instrumentos científicos adequados. Penso que estamos no limite do projecto científico: a atracção pela tecnociência implica precisamente o esgotamento do programa científico. A dissolução da ciência na estrutura da tecnociência é o triunfo total da racionalidade instrumental. Infelizmente, o pensamento de esquerda produzido nas últimas décadas do século XX é uma espécie de suicídio. Para revitalizar a ciência e a filosofia - a sua aliança, é necessário queimar toda essa literatura que corrompe o espírito humano. Devemos ser ultra-selectivos nas leituras que fazemos: não vale a pena ler filósofos e literatos que intoxicam as mentes jovens com palermices suicidas. Os nossos problemas surgiram no século XIX. Daí a necessidade de fazer um ajuste de contas filosófico com o pensamento das suas grandes figuras intelectuais, entre as quais destaco Marx e Darwin. Marx era infinitamente mais optimista do que Darwin, embora nunca tenha excluído a possibilidade de regressão. Paradoxalmente, na era da educação e da comunicação generalizadas a mente humana regrediu. Se destruíssemos as estruturas que ainda suportam a civilização, a humanidade recuaria até à pré-história: a semente da igualdade institucionalizada produz regressão mental e cognitiva. A natureza não produz todos os homens iguais e, sempre que se tenta igualar todos, pelo menos no espírito das instituições sociais, o resultado é a regressão. É impossível conservar a civilização quando todos os homens se iludem: o pensamento de muitos é a catástrofe civilizacional. A essência do totalitarismo reside neste efeito de manada. Não estou seguro do sucesso deste empreendimento de fusão das teorias de Marx e Darwin: a vitória da estupidez humana fechou as portas ao futuro. Vivemos mergulhados na escuridão total. Ontem fui confrontado com uma versão da crise exposta por agentes da extrema-direita que responsabilizam a democracia pela situação obscura vigente. Embora tenha revelado outras conexões para a explicar, senti-me incapaz de fazer uma defesa da democracia em abstracto. Neste campo de batalha, a extrema-direita também tem os seus argumentos de peso. A esquerda converteu-se efectivamente em lixeira, tendo destruído tudo aquilo em que tocou, a começar desde logo pela educação. O ódio da esquerda pela biologia é absolutamente patológico: a esquerda deixou de estar ao serviço da vida quando se aliou às forças da destruição. A esquerda alucinada que se manifesta por esse mundo fora é de tal modo amiga da amputação que, para abolir a diferença biológica, está pronta para castrar os homens. O carácter regressivo da esquerda revela-se neste desejo de regressar ao indiferenciado. Uma noologia bem construída permite fundar uma patologia noológica, capaz de identificar as doenças do espírito humano, de as tratar e de as eliminar: há ideias letais que devem ser eliminadas. De certo modo, o mundo cerebral contemporâneo foi contagiado por uma terrível epidemia noológica que parasita sobretudo os cérebros mais indigentes e atrofiados. Compreendo a revolta dos extremistas de direita: ela é a voz da revolta da natureza contra a acção irracional do homem. Precisamos de uma nova teoria política. Precisamos acima de tudo de cérebros inteligentes e cultos, capazes de produzir as teorias de que necessitamos para salvar a humanidade e o mundo.
J Francisco Saraiva de Sousa