domingo, 17 de fevereiro de 2008

Salomon Maimon e Diferencial da Consciência

Salomon Maimon (1754-1800) era um judeu lituano sujo, faminto e doente quando, em Königsberg, ainda sem dominar a língua alemã, se apresentou diante de Kant para oferecer o seu respeito e, por mais surpreendente que possa parecer, Kant admitiu-o como ouvinte.
Nas suas primeiras obras parece estar muito próximo da filosofia transcendental de Kant, mas acabou por romper com o idealismo do seu anfitrião, pelo facto deste reconhecer como "dado" a matéria das sensações que não são produzidas pelo entendimento, para as quais este se limita a produzir as formas, sob as quais os conteúdos individuais são percebidos e aparecem como experiência. Ora, Maimon pretende superar precisamente este dualismo do pensamento e da intuição que Kant tinha oposto à teoria de Leibniz da actividade absoluta das mónadas, abrindo assim a via do idealismo mais radical: o idealismo lógico.
Kant tinha advertido que a sensibilidade e o entendimento poderiam ter uma raíz comum, sem excluir a possibilidade de ocorrer uma produção comum das coisas individuais sensivelmente percebidas e das formas ou categorias do entendimento. Maimon levou esta admissão a sério e introduziu o conceito leibniziano de "petites perceptions", as pequenas percepções subconscientes e, portanto, inconscientes, para dissolver o dado, o qual, na sua multiplicidade empírica, constitui o "diferencial da consciência", derivado também do conceito de Leibniz de "diferencial". Isto significa que também o sensível é produzido por nós, mas de uma forma inconsciente e, portanto, esquecida no sentido de uma completa inconsciência. Os conteúdos sensíveis foram produzidos por nós, mas, como nos esquecemos dessa produção, eles aparecem como se fossem dados e, por isso, se impõem como objectos. Da produção inconsciente que não sabe o que fez surge a "aparência de receptividade". Porém, a receptividade é a mesma coisa que a espontaneidade, que se distinguem entre si somente no grau de consciência. A receptividade é uma espontaneidade débil, à qual corresponde uma consciência fraca, que decresce até zero; o entendimento é, pelo contrário, a espontaneidade forte, ao qual corresponde uma consciência forte da atenção científica. Da formas simples da sensibilidade, o espaço e o tempo, até à sensação espacial matematicamente configurada, existe um longo caminho de fortalecimento e de aperfeiçoamento da consciência.
Desta perspectiva resulta que o último dado, a "coisa-em-si", que, para Kant, era algo não produzido, é considerado por Maimon como um conceito inaceitável ou absurdo. Assim, Maimon rejeita o tributo do idealismo à verdade real: o mundo é eliminado, tornando-se uma magnitude tão imaginária como a raíz quadrada de "menos a". O seu conceito de "diferencial da consciência" mostra que temos diferenciais da consciência enquanto movimento de produção do mundo, introduzidos no começo ou no final do movimento. A coisa-em-si é uma consciência diferencial, com a qual o inconsciente só se expressa matematicamente como consciência infinitamente pequena. A consciência infinitamente pequena aparece-nos na receptividade como coisa-em-si.
Contudo, para Maimon, toda a experiência é conhecimento imperfeito. Por isso, chama ao seu ponto de vista "cepticismo empírico", porque, ao contrário da dúvida anticrítica de Schulze, contra Kant, a sua dúvida dirige-se justamente contra a realidade objectiva do conhecimento empírico dos factos, o qual não é "consciência perfeita", à qual pertenceria o conhecimento perfeito das formas a priori que produziram os factos, mas "consciência imperfeita". Para Maimon, só a matemática tem juízos sintéticos a priori. Isto significa que o "cepticismo empírico" de Maimon é, no fundo, puro apriorismo ou apriorismo racional, a priori ou transcendental, e, portanto, distinto do cepticismo empírico de Hume, porque integra os fundamentos racionais leibnizianos-kantianos.
Sem este contributo importante de Maimon, bem como de Reinhold, Schulze, J. S. Beck, Jakobi ou mesmo de Bardilli, o idealismo alemão dificilmente seria aquilo que foi: um dos maiores movimentos filosóficos de todos os tempos, encabeçado pelas figuras de Fichte (idealismo subjectivo), Schelling (idealismo objectivo) e Hegel (idealismo absoluto).
J Francisco Saraiva de Sousa

5 comentários:

Manuel Rocha disse...

Pena que só agora tenha lido este seu post...:(
Tinha-me dado imenso jeito o conceito de "diferencial de consciência" de Maimom para melhor esclarecer a nossa dificuldade de percepção das questões de escala associadas ao consumo de combustiveis, e por arrastamento da inconsistência das "alternativas" que estão equacionadas!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É um conceito curioso, susceptível desse desenvolvimento, mas essa é a sua área! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Agora tenho estado a pensar que quando Hegel consuma a sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas a Filosofia da Natureza entra em declínio acelerado e, em seu lugar, surge o mundo social e histórico como produção do trabalho e da luta do homem. Contudo, se regredirmos atrás temos ou Schelling ou Maimon que vêem a natureza como produção humana. Afinal, é uma ideia antiga esta de que a natureza tal como a conhecemos é resultado da acção dos seres vivos: a "biologia" produz "natureza". Muito eco! :)

Manuel Rocha disse...

Pois...

Daí a a minha ideia de que terá havido um momento em que se começou a olhar o mundo a partir de uma matriz que não leva na devida conta o determinismo geográfico das nossas interacções...:(

E eu fiquei a pensar naquele diferencial de consciência...:)
Sobretudo nas suas implicações na praxis politica. Como decidir bem com consciência incipiente das questões ? E como é que se informa essa consciência quando as matérias em apreço transcendem a nossa capacidade de compreensão dos fenómenos a que reportam ?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Exacto, é um conceito fértil... E está ligado ao cálculo diferencial ... Mas é um conceito que promete! :)