Coube a Ernst Bloch elaborar não só um "princípio esperança" para o homem, mas também uma ontologia da possibilidade para o mundo. A consciência antecipante é uma forma de ruptura com o nosso tempo metabolicamente reduzido. A consciência humana é socialmente utópica quando não se refere a um estado social passado ou presente, mas quando considera uma vida social futura ainda-não-existente. As utopias são antecipações de um estado futuro, desejado, que, por comparação com a situação de miséria presente, oferece uma vida melhor, mais livre e mais humana. Bloch distingue dois tipos de utopias: as utopias abstractas, cujo projecto é completamente desligado da realidade presente e das possibilidades oferecidas pelo princípio de realidade, para construir em espírito os castelos de areia de um "outro mundo", e as utopias concretas, cujo espírito ultrapassa a realidade presente e considera o futuro, relacionando esse projecto com as contradições e os sofrimentos do presente, a fim de os vencer. Estas últimas utopias não jogam com possibilidades irreais, mas com possibilidades dialécticas de uma realidade objectiva, procurando novas alternativas sociais na esfera do que é realmente possível e motivando assim mudanças concretas. Só desejando o que parece impossível é que se atinge realmente as fronteiras do possível. A transformação qualitativa do mundo deve manter a visão utópica de um outro mundo, de um outro princípio de realidade. Sem a utopia não é possível mudar o mundo. A esperança tem sido classificada entre os afectos e as disposições anímicas do homem e descrita exclusivamente do ponto de vista psicológico. Espinoza associava a esperança com o medo e via nestas duas disposições a impotência da nossa alma. A esperança representava o ópio dos homens que desejavam evadir-se da realidade. Contudo, Dostoiévski entendeu a esperança de um modo diferente: A formiga conhece a estrutura do seu formigueiro e a abelha, da sua colmeia, enquanto o homem desconhece a sua própria estrutura. Isto significa que o homem não é um ser acabado, como a formiga ou a abelha: o seu ser não lhe foi dado, mas recomendado como uma tarefa a realizar. O homem permanece oculto a si mesmo e, por isso, procura sempre o seu verdadeiro ser. O homem é, para si mesmo, uma questão aberta, um enigma e frequentemente um espectro. É forçado a dar a si mesmo a resposta da sua humanidade, sem poder continuar e permanecer na história com nenhuma dessas respostas. O homem é, na sua mera existência factual, uma experiência aberta. Esperar não significa ter todas as esperanças que se desejam, mas estar aberto, em atitude expectante. Desespero não significa sepultar certas esperanças ou destruir certas ilusões, mas desistir da sua própria latência, o que ainda não é mas deveria ser, e, portanto, renunciar a si mesmo. Estar expectante significa estar em estado de disponibilidade, não estar vinculado nem ao passado nem a sonhos dourados, mas consentir a experiência aberta que somos. Neste sentido, a esperança não é algo que uns possuem e outros não possuem, mas uma situação fundamental ou simplesmente o mais importante elemento constitutivo da existência humana. O homem espera enquanto vive e vice-versa, vive enquanto espera. Os animais têm o seu próprio meio vital específico da sua classe, o qual lhes pertence intrinsecamente como a parte exterior dos seus instintos. O homem é o único ser que não está sujeito a nenhum meio ambiente determinado. É um ser aberto ao mundo, que tem necessidade e capacidade para construir em qualquer local o seu mundo cultural, o seu próprio meio vital. Porém, existe um elemento e um meio ambiente sem os quais o homem não pode viver de modo humano: é a esperança que constitui o seu hábito de vida. Neste contexto, a esperança designa uma peculiaridade do ser especificamente humano e o meio, elemento ou fluído, exigido pela existência especificamente humana. Afirmar que o homem é um ser escatológico é superar todas as antropologias que tratam o homem como ser da palavra, ser político ou ser instrumental, sem levar em conta a sua abertura ao tempo. Na esperança, o homem não conhece experiências definitivas, mas capta novos obstáculos, impulsos e ocasiões para evidenciar a sua vitalidade. É um ser descobridor, um conquistador, um criador de símbolos e de obras, um jogador. É um ser que se olha a si mesmo por cima do homem e que projecta o seu olhar para o futuro para além do presente: a sua manifestação vital é um compromisso com o futuro para o qual caminha. Como não está essencialmente determinado, o homem revela sempre um novo rosto através das suas culturas e da sua longa história. Porém, é possível assinalar a direcção em que o homem se move. A essência do homem consiste mais numa orientação e perspectiva do que num traço definível. Na esperança, o homem reconhece cada situação em que se encontra como uma estação no caminho que tem de superar e deixar para trás de si, afim de realizar o seu ser humano. Esta direcção domina o espírito e o corpo do homem, porque, nesta orientação, o homem sofre e actua como um todo. Quando resiste a esta orientação da sua conduta total, o homem adoece e o seu comportamento torna-se retrógrado: os homens morrem na e para a vida, como se se movessem numa rua sem saída, quais seres autofóbicos. Este desespero que tomou conta do homem metabolicamente reduzido induz a delinquência e a criminalidade. A morte por desespero e a criminalidade por falta de esperança revelam que o homem, como ser temporal, está orientado para o futuro e que a esta orientação corresponde a esperança. Ao contrário do animal, o homem pode errar e equivocar-se de maneira total e absoluta. A sua esperança representa o risco da sua vida e, neste jogo arriscado da vida, o homem pode conquistar-se ou perder-se: a sua pessoa está sempre em jogo, portanto, em risco. (CONTINUA) J Francisco Saraiva de Sousa
domingo, 27 de julho de 2008
Antropologia da Esperança de Ernst Bloch
Coube a Ernst Bloch elaborar não só um "princípio esperança" para o homem, mas também uma ontologia da possibilidade para o mundo. A consciência antecipante é uma forma de ruptura com o nosso tempo metabolicamente reduzido. A consciência humana é socialmente utópica quando não se refere a um estado social passado ou presente, mas quando considera uma vida social futura ainda-não-existente. As utopias são antecipações de um estado futuro, desejado, que, por comparação com a situação de miséria presente, oferece uma vida melhor, mais livre e mais humana. Bloch distingue dois tipos de utopias: as utopias abstractas, cujo projecto é completamente desligado da realidade presente e das possibilidades oferecidas pelo princípio de realidade, para construir em espírito os castelos de areia de um "outro mundo", e as utopias concretas, cujo espírito ultrapassa a realidade presente e considera o futuro, relacionando esse projecto com as contradições e os sofrimentos do presente, a fim de os vencer. Estas últimas utopias não jogam com possibilidades irreais, mas com possibilidades dialécticas de uma realidade objectiva, procurando novas alternativas sociais na esfera do que é realmente possível e motivando assim mudanças concretas. Só desejando o que parece impossível é que se atinge realmente as fronteiras do possível. A transformação qualitativa do mundo deve manter a visão utópica de um outro mundo, de um outro princípio de realidade. Sem a utopia não é possível mudar o mundo. A esperança tem sido classificada entre os afectos e as disposições anímicas do homem e descrita exclusivamente do ponto de vista psicológico. Espinoza associava a esperança com o medo e via nestas duas disposições a impotência da nossa alma. A esperança representava o ópio dos homens que desejavam evadir-se da realidade. Contudo, Dostoiévski entendeu a esperança de um modo diferente: A formiga conhece a estrutura do seu formigueiro e a abelha, da sua colmeia, enquanto o homem desconhece a sua própria estrutura. Isto significa que o homem não é um ser acabado, como a formiga ou a abelha: o seu ser não lhe foi dado, mas recomendado como uma tarefa a realizar. O homem permanece oculto a si mesmo e, por isso, procura sempre o seu verdadeiro ser. O homem é, para si mesmo, uma questão aberta, um enigma e frequentemente um espectro. É forçado a dar a si mesmo a resposta da sua humanidade, sem poder continuar e permanecer na história com nenhuma dessas respostas. O homem é, na sua mera existência factual, uma experiência aberta. Esperar não significa ter todas as esperanças que se desejam, mas estar aberto, em atitude expectante. Desespero não significa sepultar certas esperanças ou destruir certas ilusões, mas desistir da sua própria latência, o que ainda não é mas deveria ser, e, portanto, renunciar a si mesmo. Estar expectante significa estar em estado de disponibilidade, não estar vinculado nem ao passado nem a sonhos dourados, mas consentir a experiência aberta que somos. Neste sentido, a esperança não é algo que uns possuem e outros não possuem, mas uma situação fundamental ou simplesmente o mais importante elemento constitutivo da existência humana. O homem espera enquanto vive e vice-versa, vive enquanto espera. Os animais têm o seu próprio meio vital específico da sua classe, o qual lhes pertence intrinsecamente como a parte exterior dos seus instintos. O homem é o único ser que não está sujeito a nenhum meio ambiente determinado. É um ser aberto ao mundo, que tem necessidade e capacidade para construir em qualquer local o seu mundo cultural, o seu próprio meio vital. Porém, existe um elemento e um meio ambiente sem os quais o homem não pode viver de modo humano: é a esperança que constitui o seu hábito de vida. Neste contexto, a esperança designa uma peculiaridade do ser especificamente humano e o meio, elemento ou fluído, exigido pela existência especificamente humana. Afirmar que o homem é um ser escatológico é superar todas as antropologias que tratam o homem como ser da palavra, ser político ou ser instrumental, sem levar em conta a sua abertura ao tempo. Na esperança, o homem não conhece experiências definitivas, mas capta novos obstáculos, impulsos e ocasiões para evidenciar a sua vitalidade. É um ser descobridor, um conquistador, um criador de símbolos e de obras, um jogador. É um ser que se olha a si mesmo por cima do homem e que projecta o seu olhar para o futuro para além do presente: a sua manifestação vital é um compromisso com o futuro para o qual caminha. Como não está essencialmente determinado, o homem revela sempre um novo rosto através das suas culturas e da sua longa história. Porém, é possível assinalar a direcção em que o homem se move. A essência do homem consiste mais numa orientação e perspectiva do que num traço definível. Na esperança, o homem reconhece cada situação em que se encontra como uma estação no caminho que tem de superar e deixar para trás de si, afim de realizar o seu ser humano. Esta direcção domina o espírito e o corpo do homem, porque, nesta orientação, o homem sofre e actua como um todo. Quando resiste a esta orientação da sua conduta total, o homem adoece e o seu comportamento torna-se retrógrado: os homens morrem na e para a vida, como se se movessem numa rua sem saída, quais seres autofóbicos. Este desespero que tomou conta do homem metabolicamente reduzido induz a delinquência e a criminalidade. A morte por desespero e a criminalidade por falta de esperança revelam que o homem, como ser temporal, está orientado para o futuro e que a esta orientação corresponde a esperança. Ao contrário do animal, o homem pode errar e equivocar-se de maneira total e absoluta. A sua esperança representa o risco da sua vida e, neste jogo arriscado da vida, o homem pode conquistar-se ou perder-se: a sua pessoa está sempre em jogo, portanto, em risco. (CONTINUA) J Francisco Saraiva de Sousa
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18 comentários:
André
Dedico-lhe esta série de posts antropológicos. Aguardo seu Miguel Torga.
A Papillon deve estar com as asas queimadas. :)
E a Denise perdeu-se no Tobias... :)
Abraço para todos e para o Manuel Rocha e o Fernando Dias... :)
Boa noite F.!
Nada disso! As minhas asas são brancas de neve e, também por isso, não as estiro ao Sol!
Hoje foi dia de celebração de Amor e Amizade! Um grande amigo meu casou-se! :) Até lacrimejei e tudo! snif snif :(
Fräulein Else sai a sonhar com pétalas de rosas vermelhas a chover em campos de algodão ou um "princípio esperança". :)
Belíssima passagem:
"Esperar não significa ter todas as esperanças que se desejam, mas estar aberto, em atitude expectante. Desespero não significa sepultar certas esperanças ou destruir certas ilusões, mas desistir da sua própria latência, o que ainda não é mas deveria ser, e, portanto, renunciar a si mesmo"
"
Olá, Francisco!
Grato pela sua série de posts antropológicos. Aprendo muito com os seus textos.
Não me esqueci do texto sobre Torga. Estou lendo as obras de Torga para poder lhe dar uma boa homenagem. É necessário, em primeiro lugar, formar uma visão panorâmica da obra de Torga
Bom dia Papillon e André
A nossa tradição ocidental é um tesouro que está a ser maltratado pelos animais metabolicamente reduzidos. Não estou nada satisfeito com o rumo das nossas sociedades ocidentais e com a sua passividade perante culturas inferiores. A minha bioconsciência está cada vez mais apurada e atenta.
Sim, Papillon, a vida é assim: um caminhar para a morte. O seu amigo passou para outra fase e fez o luto da vida de solteiro.
Sim, André, Torga está a tornar-se muito importante. E estou ansioso por ler os seus textos.
A vida é triste e dolorosa! Só partidas! :(
Papillon
Leio mais atentamente Ernst Bloch e vou fazer um estudo compacto do seu pensamento para publicar. O seu optimismo militante seduz-me e penso que é o filósofo que devemos reanimar e trazê-lo para o nosso presente século. Está a ter um efeito positivo sobre mim: sonhar acordado é desejar e querer um mundo melhor. Estou a ficar mais atento e acordado com vontade de fazer coisas novas. :)
Ainda bem, fico contente por si.
Hoje estou pessimista militante, pessimista histórica, etc. Estou em retiro. bye
Bom dia Francisco e Papillon!
Francisco, Torga é um pensador cuja obra merece uma atenção delicada e persistente.
Em seu Diário, ele aborda, de forma muito criativa e profunda, inúmeros temas relevantes.
Detenho-me, sobretudo, nos doze volumes de seu Diário (aqui não se encontram os outros volumes), obra densa e multifacetada.
O que me desanima é a dificuldade de encontrar as obras de Torga (principalmente os volumes do Diário) nas principais livrarias e Sebos de São Paulo.Optei por uma tarefa mais árdua, mas talvez mais gratificante: tomo por empréstimo os volumes do Diário que se encontram em uma biblioteca pública daqui e lentamente transcrevo para o Word os textos que me chamam a atenção :)
Tendo em vista o pouco tempo de que disponho para me consagrar às minhas atividades preferidas, esta pesquisa tem sido um trabalho considerável.
Após reunir uma compilação consistente da obra de Torga, começarei a escrever os textos.
O que me desanima é ser forçado a lutar contra a ignorância e o desprezo pela cultura. Mesmo em São Paulo, que é considerada uma das cidades mais desenvolvidas do Brasil, a incultura e a indigência cognitiva podem ser facilmente verificadas.
Por falar em Esperanç, ofereço-lhe uma pequena pérola de Torga:
Silvo
Vou convosco, invisíveis companheiros.
Ouvi o apelo, e sigo nestes versos
Ao vosso encontro.
A noite é um largo leito de renúncias
Adormecidas,
Mas nós não temos sono
E abrasa-nos a fé na madrugada.
Vamos! Vamos, fraternos,
Paralelos nos trilhos do destino,
Dizer bom dia ao sol, o deus menino,
Eternamente loiro e renascido
No presépio dos mundos apagados.
Saudar a esperança é o prêmio concedido
Aos acordados!
(Diário, v. IX)
"Saudar a esperança é o prémio concedido/ Aos acordados!"
Ernst Bloch teria gostado destes versos :)
André
Penso que saiu uma edição num único e enorme volume, mas não estou a par. Apenas vi uma nova edição de Torga em volumes enormes... :)
Ya, a esperança pertence aos "acordados": os sonhos diurnos de Bloch são sonhos de um mundo melhor! Torga interessante... :)
Boa tarde, amigos!
Não me perdi no Tobias. Ando submersa em papelada que tenho de organizar e entregar na escola antes de entrar de férias. O famoso serviço ultraburocrático, e nada verde, que sufoca os professores no final de cada ano lectivo...
Regressarei, claro! E, até lá, ...um abraço para todos!
Bom dia Denise
O meu comentário era uma brincadeira consigo. :)
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